O das
trevas, o tinhoso
O
tinhoso é cheio de artimanhas, cheio de história mal contada. Assim ele estava
fazendo com o Timbé. Timbé já tinha sido da luz, mas já fazia muito tempo. Daí
seu pensamento virou do avesso e ele mergulhou na escuridão. Depois ficou
assim-assim com o canhoto, com o sujo. Conversavam até, tal qual um camarada
conversa com outro. Ultimamente estavam cheios de fazer acordos. Trocar
mentiras.
Assim
foi que o capeta chamou o Timbé de lado e confidenciou umas coisas daquelas que
não se falam em voz alta. Era uma experiência de três etapas. Coisa do demo,
mesmo. Ele é cheio de numerologia, cheio de símbolos enganosos, que é para
atrair os incautos. Esse coisa a toa, o da escuridão, é realmente uma coisa a
toa, se é que você me entende. Flor que não se cheira. O Timbé, você sabe, já
estava bem lá no fundo do poço, nem mais discutia, nem mais negociava. Caía
direitinho, toda vez, no ardil do maldito. Toda vez. Não aprendia nunca, não
adiantava. Já começou com essa história de três etapas. Três etapas nada, o que
ele queria eram três pessoas mesmo. Pessoas já na meia escuridão, tal qual o
Timbé, embora esse já tinha passado mais da metade. Coitado do Timbé, dá até dó
quando a gente pensa que uma vez ele até via luz. Não mais. Agora só aquelas
sombras escuras que vêm do outro lado, do lado para onde ninguém quer ir, o
lado do engano, o lado negativo, a casa do medo.
O
safado sabia muito bem que o Timbé era cheio de conhecer gente de meia
escuridão. Gente que está com um pé aqui e outro lá. Gente que não decidiu. Gente
que sabe que existe o bem mas não tem força de resistir aos enganos do que vem
da noite, da morte, das profundas. O Timbé conhecia muita gente assim, e cada
vez conhecia mais. É sabido que o excomungado não tem parada, quer sempre mais.
Ele queria mais Timbés, porque Timbé é bom de enganar e bom de se enganar.
Arrumar três pessoas era uma moleza para o Timbé. E num instante ele arrumou.
A
serpente detalhou para Timbé as entrelinhas do acordo. Manhosa, ela escondeu o
que tinha de esconder e mostrou o que era para ser mostrado. Parecia coisa
vantajosa para o Timbé. As coisas da cobra nojenta são sempre assim. Lustrosas
por fora, repugnantes por dentro. As três pessoas, amigas de Timbé, tinham de
passar por uma tentação. Dos sete pecados capitais, o demo ia usar só três.
Para que mais? E a escolha dele foram a
inveja, a luxúria e a ira. Os outros vícios iam ficar para depois, ocasião não
ia faltar. Para cada amigo do Timbé, uma tentação, um pecado. Se eles caíssem,
como a Eva caiu, iam para as trevas, para as chamas do inferno tenebroso. Se
conseguissem sair ilesos, ficavam por aqui para enfrentar outras tentações no
futuro. É assim esse mundo, desde que foi criado, quando aquela mulher virou a
cabeça do Adão. Se a maioria dos três, dois ou mais, caísse na tentação, era
vitória do Timbé. Um cordão, grande, bonito, de ouro verdadeiro, ele ia ganhar.
Botar no pescoço e se exibir. Ele ganhava, mas o tinhoso ganhava também: mais incautos
nas labaredas. O demo sempre ganha, sempre leva vantagem. Mas nisso o Timbé não
pensava, a única coisa que ele tinha na cabeça era aquela coisa dourada no
pescoço, ofuscando as trevas de seu coração. Alma perdida não tem jeito, não há
o que fazer. É um vício. O consolo é que nem dá para piorar. Ou dá?
Era
um por semana, de acordo com o manda-chuva, o da escuridão. O primeiro, passou
pela luxúria. Uma mulher ardente, esposa de um amigo, esperava por ele no
motel. Adultério. E o Timbé ainda falou para ele: “Não dá para aguentar não.
Aquela mulher é quente, é um trovão e ela te quer”. Como se precisasse. Ele já
estava vencido e seduzido antes de começar. Mulher era coisa que ele não
deixava de lado. Mulher de amigo, ao invés de ser homem, como dizem verdadeiros
amigos, para ele era mais tentação. E foi. E foi pecar. Estava até suando,
pensando nas partes deliciosas daquela mulher. Nas partes íntimas, deliciosas
da mulher de seu melhor amigo. Cara safado. O tinhoso nem deu o gosto dele
pecar de vez. Fez acontecer um desastre com um bêbado na direção a caminho da casa,
da alcova. Os dois morreram: o pecador e o outro motorista. Nem se deliciou com o prazer da luxúria. Para
as leis do do além, porém, ele já tinha pecado. Um ponto para o Timbé. O
primeiro dos três no cemitério, o primeiro dos três nas profundezas do inferno.
O
segundo tinha de passar pela inveja. O primo dele tinha conseguido ficar com
uma boa parte da herança que seus pais tinham deixado. Coisas de família, eles
tinham seus motivos. Estava se comendo de inveja. Ardia por dentro. No entanto,
tinha tanta gente rezando e orando para acalmá-lo, que ele se segurou. Um caso
raro. Valeu a oração. O Timbé não marcou o segundo ponto, esse amigo não
morreu, resistiu à tentação. O cordão de ouro não estava mais garantido. Ainda
não era dele.
E
agora vinha a ira. O amigo de Timbé, escolhido para o terceiro teste, estava
furioso. Estava armado e estava se dirigindo, a pé, na direção do objetivo de
sua ira: a esposa que o traíra. Subiu as escadas e estava pronto para entrar no
covil da traição. Abriu a porta e, antes que pudesse matar os dois, a mulher e o
amante, levou um tiro desse último. Morreu na hora e já caiu direto nas
profundas. A mesma lei da intenção, uma lei do outro mundo. É o que vale, a
intenção. Na cabeça, ele já tinha matado, já tinha pecado. Mas não matou não,
morreu. O Timbé tinha desempatado e a única coisa em que ele pensava agora, era
sua peça de ouro. Dois a um. Números certos, não tinha como o excomungado inventar
história. Matemática fria. Nos arranjos que tinha feito com o tinhoso, o
“prêmio” ia ser entregue na próxima sexta-feira. De madrugada. O sem-vergonha
gosta da escuridão da noite, gosta da sexta.
Antes,
Timbé, que já tinha ido no enterro do primeiro amigo, agora teve de ir para o
segundo enterro. Todo mundo estava chorando. Ele tentou fingir umas lágrimas,
mas seu coração estava muito seco. Há muito tempo estava assim. Contorceu a
cara na tentativa, mas nada saiu. Fingimento faz parte desse palco da maldade e
ele só fez seu ato.
Chegou
finalmente a sexta. Ele foi se deitar, o Timbé. Sabia que o rabudo não ia falhar.
Não era coisa que ele fazia. Sua joia estava garantida. Dormiu. Não posso dizer
que dormiu como um anjo, devido a sua parceria permanente e segura com o
tinhoso. Nem como força de expressão, ficaria bem. Não se sabe há quanto tempo
estava dormindo, quando, de repente, acordou. Logo sentiu que estava muito
abafado. Muito calor. Tentou se mexer e viu que não podia. Estava num caixão de
madeira. Trancado, bloqueado. Claustrofóbico. Dava até para ver uma pequena
linha de luz na parte de cima. Uma fresta. Pensou “Que diabos?”, o que era
apropriado nas circunstâncias. Tentou entender. Obviamente o das trevas estava
aprontando mais uma das suas. E o cordão de ouro? Iria ele cumprir sua
promessa? Ele estava tão de intimidades com o tinhoso que ele respondeu à sua
pergunta pelo pensamento. Isso mesmo, eles “estavam ali, um com o outro”. De telepatia
e tudo. Foi então que entendeu que o “prêmio” ia ser entregue sim, mas a
cerimônia ia ser lá embaixo, nas cavernas de fogo, de onde nunca mais ele poderia
sair. Pensou em reclamar, mas sabia que com o mofento não ia ter jeito. Safado.
Era mais uma artimanha. Ia dar um grito, mas o demo deu um berro antes. Uma
gargalhada. Deve ter ecoado até nos quintos. Daí escutou o barulho de terra
caindo sobre o caixão. E mais, e mais, até ficar um silêncio tal que nem o
tinhoso se ouvia. Em questão de segundos
iria parar de respirar. Poderia, então, pegar a sua joia de ouro lá no inferno,
mas ia estar tão quente, tão quente, que daria para furar suas mãos, se
tentasse. Esse bode preto, esse capeta, esse das trevas, não tem jeito. É cheio
de enganos, é cheio de manhas. Cheio de histórias mal contadas. O Timbé foi
enterrado vivo. Tinha ficado lá em cima, na terra dos homens, um de aprendiz para
tomar seu lugar. O Timbé já estava garantido lá embaixo nas profundezas. O
coisa-ruim não quis arriscar. De repente uma reza brava em cima dele e ele
resolve voltar para a luz? Pode, não. Tinha de garantir o Timbé lá embaixo. Mortinho,
com um cordão de ouro queimando no pescoço. Não é mesmo cheio de histórias esse
tinhoso? Cheio de histórias mal contadas. É o que sempre falo, esse medonho não
tem jeito, não... Não dá para confiar.
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