Joana, Jerônimo, e o Caleidoscópio
Não é preciso apagar a luz
Eu fecho os olhos e tudo vem
Num caleidoscópio sem lógica
Eu quase posso ouvir a tua voz
Eu sinto a tua mão a me guiar
Pela noite a caminho de casa
(Herbert Vianna - Caleidoscópio)
Não sei que loucura deu na cabeça do seu Juvenal. O
lugar onde ele e dona Maria moravam já era um fim de mundo. E, mesmo assim, ele
resolveu se mudar para mais longe. A Maria aceitou, porque ela era mulher de
aceitar, mas não conseguia entender a cabeça do marido. Em parte, ela sabia
sim. Era um danado de um eremita, parece que tinha medo de gente. Por ela, não
ligava não. O que mais a preocupava, era a criança. O que a Joana, uma menina
de três anos, ia fazer num lugar daqueles?
Criança acaba sobrevivendo a tudo. E Joana criou seu
mundinho de fantasia ali mesmo. Os vizinhos mais próximos não tinham nada de
próximos, estavam bem longe. O Jerônimo
era mais fácil de se ver do que eles. Ele tinha uns 20 anos e seguiu a carreira
do próprio pai. Uma espécie de caixeiro-viajante do sertão. Trazia coisas que
as pessoas que moram no fim do mundo precisam. Um pouco de sal, tempero,
pimenta. Sim, claro, farinha de trigo, que as outras, de mandioca e milho, a
Maria mesmo fazia. Pedaços de pano, retalhos, às vezes trazia igualmente. Não
havia vaidade naquelas pobres mulheres, perdidas naquele buraco. Mas um
pouquinho sempre há, acho que é antropológico.
Um dia, o Jerônimo, que gostava de crianças, trouxe
para a Joana um brinquedo. Foi presente mesmo, não cobrou. Imagina só que
coisa, um caleidoscópio. Naquele lugar sem cor e sem sabor, podia haver algo
melhor? A menininha ficava o dia todo mexendo naquele tubo. As cores mudavam,
mudavam as cores, mudavam as formas. Diferente daquele vazio sem fim. Pai e mãe
tentaram ver o que a menina via. Qual era a graça daquilo? Ou por ser coisa de
criança, ou por serem de vista fraca, ou por não acharem mais graça na vida,
eles nada enxergavam. Mas a Joana, sim. O milagre para ela, era que aquilo
nunca repetia o mesmo desenho. Como pode? Como o pintor, que pintou aquilo,
pintou tantas coisas, tantas coisas sem fim, sem repetir? Era mesmo de se admirar. Era o cinema que ela
não conhecia.
O caleidoscópio salvou a infância da Joana. Criou a
cor de que ela precisava. Substituiu a escola que ela não fez, a escrita que
ela não escrevia, as letras que ela não conseguia ler.
Mesmo onde o judas perdeu as botas, as coisas vão
passando e lá passaram também. O Jerônimo continuou vindo com suas tranqueiras,
que muito bem vindas eram para os três. Outros presentes trouxe para a menina,
bonitos sim, mas nunca nada como o caleidoscópio.
Joana chegou na adolescência e virou jovem quando tinha então 13 anos. Foi uma coisa
gozada. Aquilo tudo acontecendo com seu corpo e, ao mesmo tempo, uma tristeza
aconteceu na sua vida. Uns bichos roeram seu caleidoscópio. Daí ela viu o que
tinha dentro. Pedrinhas e vidrinhos. O bom foi que aprendeu que pode existir
beleza sem fim em coisas simples como pedrinhas e espelhinhos. Ela não entendia
como mas sabia quê. Assim aprendeu também que o corpo dela às vezes ficava
gozado, mas não sabia como.
Deu uma vontade forte de pedir outro para o Jerônimo,
mas ela, como sua mãe, não tinha boca para nada. E ela foi crescendo. Daí ela
notou que o Jerônimo agora era diferente. Tinha uma barba mais comprida, o seu
corpo era um pouco mais curvado. Estava mudado, mas ainda assim, muito mais
forte que seu pai, com certeza.
Joana estava com dezessete anos, mas ainda era uma
criança. Nesses lugares, a alma só cresce o necessário. E assim é que é.
Notou que agora o Jerônimo vinha mais amiúde. E
conversava mais com o seu pai. Interessante que o Juvenal, antes, não era de muita conversa. Talvez seja coisa
de quem fica velho.
Um dia, seu pai falou que na semana seguinte vinha o
Jerônimo de novo, e ele tinha acabado de vir. Era estranho, pois, por mais
amiúde que ele viesse, não era tanto assim. E disse mais, que ela podia
escolher um presente, que não ia ser presente dele não, era um presente do
Jerônimo. A menina não sabia que o Jerônimo tinha uma afeição por ela, não? Não
percebia? E era para arrumar as pouquinhas coisas que tinha, que dava para
levar no cavalo, que ela ia embora com ele. Com o Jerônimo, sim senhor.
A Joana não entendeu direito, pois ela era menina de
dezessete anos e era mais menina do que os dezessete. No corpo não, mas na
cabeça, sim.
O Jerônimo era um bom homem, mas ele não entendia de
cabeça de mulher, só entendia do corpo. E o corpo da menina, para ele, estava
bom demais, mais do que um caboclo como ele poderia querer. Muito mais.
Até que vai ser bom, pensou a Joana. Ver coisas
diferentes. Foi assim que a mãe explicou também. E ela disse mais, que estava
triste, pois gostava da filha. Mas mais alegre estava, que ela ia poder sair
daquele buraco, para onde ela nunca quis que seu rebento tivesse vindo. Ia ser
bom.
Quando os dois, Jerônimo e Joana, partiram a cavalo,
chorou a mãe e chorou a filha. O pai fingiu que não chorou, pois nunca havia
chorado antes e não era de chorar. A “dona” Maria chorou, mas chorou feliz.
Foi daí que o Jerônimo, envergonhado, ela não sabia
por quê, perguntou qual o presente que ela queria ganhar. Ela pensou um
pouquinho, mas só para fazer de conta, pois já sabia o que queria. Um
caleidoscópio. O Jerônimo deu um sorriso maroto e disse, então, que nem aliança
não precisava não, porque ele ia lhe dar o caleidoscópio mais bonito da vida,
mais bonito do mundo, ele ia sim. A parte da aliança, a Joana não entendeu, mas
a do caleidoscópio, ela entendeu muito bem. E enquanto seu cavalo ia andando,
par a par com o do Jerônimo, ela não via mais nada. Nem o córrego, nem os
cascalhos da trilha, nem o barulhinho das águas do rio. Só antecipava. Uma
antecipação gostosa, como um gozo. Ela só via aquelas cores bonitas, se
misturando, se mexendo, se multiplicando em formas mil. E a vida pareceu ainda
mais bonita do que é. As pedrinhas e os espelhinhos, que agora ela conhecia
como sendo o segredo de tudo, iam se misturando, coloridos, brilhantes, num
remexer sem fim. Pedrinhas coloridas, como um
milagre, e os vidrinhos repetindo a fantasia da vida. Multiplicando. Que
tudo é fantasia, nesse sertão sem fim, nesse sertão imenso de Deus. Mentiras da
vida, miríades.
Eta vida bonita! Belezura sem fim.
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