Há alguma coisa
errada com o céu do Raymond
Ele sabia que havia
algum problema. Estava fazendo um esforço enorme para se lembrar. Andava numa
estrada que ele parecia conhecer, mas não sabia exatamente para onde ia. Tinha
aquela sensação interior de que, em alguns instantes, tudo voltaria à sua
mente. E mais: sabia que algo semelhante havia acontecido antes. Continuou a caminhar, devagar,
tentando se recompor, tentando entender o momento. Não sentia dor nenhuma, ao
contrário, um bem-estar quase irresponsável, levando-se em conta a situação em
que se encontrava. Olhou a paisagem dos dois lados e imediatamente reconheceu
que estava numa região árida. Deveria se preocupar? Talvez sim. Entretanto sua
mente estava tranquila.
Agora Raymond
estava olhando para o céu. Não havia nuvens e o ar estava parado. Pelas imagens
que via, provavelmente estava muito quente, mas ao contrário, ele poderia jurar
que aquela era a melhor temperatura que um ser humano poderia sentir. Tanta
perfeição para quem nem sabia onde estava, chegava a preocupar. Esse pensamento
acabava de vir à sua mente, quando finalmente notou algo que o inquietou.
O céu. Algo não
estava certo. Raymond tinha certeza de ter arquivado em sua mente qualquer
matiz de céu possível, em qualquer condição climática, sob qualquer combinação
imaginável de condições atmosféricas. Havia algo naquela cor que não ia bem. Ao
mesmo tempo que pensava isso, começava a recuperar a memória. Nada recente, mas
sua história, sua meninice, sua juventude, sua formação, já apareciam vivas e
com detalhes. E isso explicava, de certa forma, porque estava tranquilo. Sabia
que era extremamente inteligente e certamente iria entender o que havia de
errado com o firmamento.
E assim fez.
Pensou bastante e chegou a uma conclusão óbvia, porém assustadora. Aquele céu
não era real. Não podia ser. Esta verdade, incrivelmente óbvia, ao invés de
assustá-lo, deixou-o excitado. Tinha ali, à sua frente, um enigma para
resolver.
Partindo do
princípio básico de que uma parte da paisagem não era real, não havia dúvida de
que o resto também não era. Difícil de imaginar, uma vez que podia sentir seu
corpo, seu coração batendo... Podia agora sentir uma brisa que trazia consigo o
perfume de alguma planta, de uma flor. Abaixou-se, pegou uma pequena pedra
pontuda e riscou o seu braço. Imediatamente viu uma pequena linha vermelha se
formar sobre a pele. Era seu sangue, sem dúvida. Deu um beliscão em sua
bochecha e sentiu também. Ele existia, estava vivo. Será? Lembrou-se
vividamente de ter visto filmes, lido livros sobre realidade virtual. Ele
poderia estar sendo “vítima” de um experimento. O céu, um pequeno erro no
sistema? Talvez a cor do céu estivesse
certa e a sua lembrança dela é que estava errada. A cor estava certa, o que ele
lembrava dela é que era diferente?
De qualquer
forma, estava impressionado com a própria inteligência. Ou, conforme ele mesmo
pensou, com a inteligência que o criou. Enquanto analisava o resto da paisagem,
considerou que talvez fosse impossível se chegar a uma conclusão. Se ele fosse
parte de algum projeto, ele nunca poderia sair daquela “prisão”, para poder ver
de fora, fazer uma análise da própria realidade. Como você mesmo pode dizer se
você é real?
Enquanto
continuava a caminhar, deu um pequeno descanso à mente. Podia ser que alguma ideia, ou uma intuição,
surgisse para esclarecer o impasse. Quando começou novamente a pensar quase se
irritou com o óbvio. Havia outras possibilidades a considerar. Claro que ainda
não havia abandonado a ideia de ser apenas um elemento de uma realidade criada
por alguém. Talvez por um cientista maluco.
Como não tinha
pensado nisso antes? Ele podia ser um clone. Talvez mantido em estado de hibernação
por um longo tempo, até chegar a hora de precisar substituir sua “matriz” que
talvez tenha morrido ou se acidentado de tal forma que não podia ser
recuperada. Fizeram então a transferência de memória, sensações, tudo que sua
“matriz” tinha. Na própria memória que havia sido transferida para seu corpo
havia aquela ideia sobre clones, como funcionavam, como a sociedade científica
estava usando essa “tecnologia”. Sim, era bem possível. E o “defeito” no céu?
Algum problema na hora da transferência dos dados para o novo corpo. A
realidade tinha de estar certa, o que estava errado era a percepção que ele
tinha dela. Além disto, isto explicaria aquele tipo de “intuição” que ele às
vezes tinha. Um clone certamente poderia ter intuição. Faz parte do que é um
cérebro. Já na realidade virtual... Bom, depende, eles podem simular tudo, por
que não uma “realidade virtual intuitiva”?
Definitivamente,
as duas possibilidades, clonagem e realidade virtual, tinham chances iguais de
serem corretas. Qualquer uma das ideias era viável.
Talvez fosse um
personagem criado para participar desses moderníssimos jogos que haviam
desenvolvido há algum tempo. Os fabricantes
eram extremamente competitivos e havia boatos que estavam usando
cérebros humanos, de corpos irrecuperáveis, para criar essas peças do jogo,
numa interação dos neurônios humanos com os avançadíssimos equipamentos já
desenvolvidos. Tudo para que os participantes virtuais dos jogos agissem como
humanos, pensassem como tal, e, assim fossem realmente um páreo para os
clientes cada vez mais exigentes.
Sim, poderia ser
isso. Sua intuição, embora não totalmente, estava flertando com essa hipótese.
Ficou até imaginando uma luta dele com algum participante. Talvez uma caça no
deserto onde ele fosse a caça. Explicaria por que ele apareceu, ali, de
repente, naquela região sequíssima. Olhou para o horizonte na expectativa de
aparecer algum caçador com alguma arma. Tentou vislumbrar as chances de escapar e vencer seu algoz. Depois pensou,
para quê? Se fosse verdade essa
possibilidade de ser apenas uma peça num jogo, era melhor se entregar e
acabar de vez com a história. Mas talvez
os seus “donos” o pusessem de volta no jogo, repetidamente... Não, não era uma
boa ideia.
Ainda bem que
essa possibilidade era remota. Tinha quase certeza de que havia outra
explicação.
Raymond não
entendia por que aquela ideia não lhe havia ocorrido antes. Certamente era a
mais óbvia, a mais verossímil. Talvez seu subconsciente não lhe estivesse
sequer permitindo considerar essa possibilidade: estaria ele dormindo? Por
alguma razão estaria tendo um sonho induzido. Não poderia ser um sonho natural,
ele podia sentir isso. Era extremamente vivo, e certamente teria sido criado
artificialmente. Por que teriam feito isso? Talvez para curar uma doença
mental? Ou curar um trauma terrível?
Teriam transferido uma memória “inventada” para substituir alguma outra
experiência desastrosa da vida real? Se fosse isso, eles tinham realmente
criado um software extraordinário. A sensação de realidade era quase perfeita.
Talvez ele fosse um criminoso, um monstro, que precisasse de conserto. Estava
ali, no nível mental, reaprendendo as regras sociais, uma maneira aceitável de
viver. Isso explicaria aquela paz, aquela serenidade que ele sentia. Tudo
estava sendo “plantado” em seu cérebro, durante o sono, para criar um novo
homem, um novo ser social. Era bem possível, o homem sempre sonhara com uma
sociedade perfeita, sem crimes, sem problemas. Talvez aquela fosse a solução.
Ao invés de ser executado ou ir para a prisão para sempre, ele estava ali sendo
consertado através do sonho, da implementação de uma nova “história”, de uma nova “memória”. Quando
voltasse, seria outro homem. Sem perigo para a sociedade.
Foi então que
Raymond sentiu que alguém estava “mexendo” com ele. Até então, por mais
estranha que fosse a situação, era só ele, o que era quase um consolo. Estava
vivendo bem naquele mundo, sem se preocupar. E agora? Que tipo de interferência
haveria? De qualquer forma, teria de enfrentar a situação. Resolveria a
questão, acabaria a dúvida. Ele podia sentir as pessoas, mas não as via nem as
ouvia. Estranho, porém compreensível. Mais uma prova, definitiva, de que ele
não era simplesmente uma pessoa, um ser humano normal. Sim, a essa altura isto
já estava claro. Sob este novo ponto de vista, o que é normal? Talvez a
realidade virtual pudesse ser mais “normal” do que as outras...
Estavam para
fazer alguma coisa, podia sentir. As vibrações que vinham do cérebro daqueles
dois mostrava uma certa excitação, como se estivessem para experimentar algo
novo, algo que nem eles mesmo conheciam. É, ele tinha registro disso, essa
“excitação” por criar coisas novas, por inventar. Certamente ele era objeto de
um experimento. Isso estava claro. Já não estava mais no deserto. Estava em
lugar nenhum agora. Era uma paisagem vazia, abstrata.
Na verdade havia
dois especialistas conversando. Eles estiveram ali o tempo inteiro. Antes ele
não os ouvia. Agora não só estava escutando a conversa, como também podia
vê-los, mas não como se estivesse com eles, podia vê-los em sua mente. Ambos
usavam um uniforme. Sim, lá estava no crachá:
ULTRALIFE.
Inteligente que
era, Raymond imediatamente entendeu que era algum projeto com mentes humanas.
Ele era um cérebro humano, ou o que havia dentro dele. Para dizer a verdade,
esse cérebro, agora estava sem corpo. Isso ele podia garantir. Talvez isso
explicasse por que ele via, sentia e ouvia as pessoas em sua cabeça, mas não
diretamente.
-O que você
acha, Dr. Stelth?
-Obviamente as
coisas não funcionaram do jeito que queríamos. Está claro que há alguns
problemas de transferência. A “realidade” do Raymond está com falhas.
-É, eu sei. Se
pudéssemos fazer um novo upload, tudo ficaria bem. Mas o corpo deteriorou
muito, agora não dá mais.
-Resumindo,
temos só duas opções. Ou completamos o processo do jeito que está, com essas
pequenas falhas de realidade virtual ou abandonamos o caso.
-Para ser bem
honesto com você, acho melhor abandonarmos o caso. Não é nossa falha o que aconteceu com o
original. Por outro lado, se permitimos que Raymond saia por aí com um defeito
desses, não vai ser bom para a ULTRALIFE.
-Concordo
totalmente!
-Ok, vamos fazer
o processo de terminação para o corpo do Raymond. Quanto aos dados...
-Você quer
guardar por um tempo ou simplesmente deletamos tudo?
-É melhor
deletar. Alguém da comissão pode querer examinar os dados e ter uma opinião
diferente, só por motivos políticos, e nós vamos ficar o tempo todo com esse
problema das falhas por aí... Você sabe, algum idiota é capaz de falar que foi
culpa nossa e... enfim, é melhor garantir. Delete tudo e devolva o aparelho
para o setor de equipamentos usados.
Foi aí que
Raymond finalmente entendeu tudo. As coisas se encaixavam completamente. Não
estava apavorado, mas não concordava com os doutores. Achava melhor guardar
seus dados. Nunca se sabe. Claro, essa tal de ULTRALIFE deve ter seus
protocolos. A realidade que ele sentia estava boa assim, nem precisava de
corpo. Era só um probleminha com o firmamento. Ele nem ligava para isso. Quem
precisa da cor exata do céu?
De repente
Raymond sentiu que alguma coisa muito importante estava acontecendo. As coisas
não estavam mais claras como antes, não conseguia raciocinar. Já não se
lembrava mais da infância. Agora nem mais de seu nome se lembrava.
No monitor do
Dr. Stelth, havia uma linha horizontal, igual essa dos hospitais, quando uma
pessoa morre. No canto da tela, do lado direito, dizia: processo completo.
Foi assim que terminou a história do Raymond. Tudo por causa de um defeito no céu.
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