O Professor de Geografia
Renato Stempniewski e Eli Piccolo. Se você conhece estes dois, então, meu amigo,
você não é mais tão jovem assim. Sem ofensa. Quando eu estava no antigo
“ginasial” eles eram praticamente os únicos autores de livros didáticos de
geografia. A capa não mudava e tampouco o conteúdo. Ano após ano. Lá estava
tudo. Montanhas mais altas: Monte Everest, 8858 metros, K2, 8611 metros e assim
ia. Rios mais extensos do mundo: Nilo, 6650 quilômetros, Amazonas, 6400 quilômetros, Mississippi,
etc... Descrições extensas e técnicas de sistemas tropicais, subtropicais, a
caatinga e o cerrado, bacias hidrográficas e muito mais. População, densidade
demográfica, área geográfica, divisão política, tudo, tudinho. Estava tudo
escrito e registrado pelo Renato e pelo Eli. O nosso professor, de um daqueles
países eslavos, um sobrenome difícil de pronunciar – o nome era impossível –
simplesmente lia o livro para nós. Sua aula era ler, contínua e
ininterruptamente todos os dados, metragens, quilometragens. Era implacável.
Era lento, mas não parava. Tinha um sorriso infantil e ingênuo no rosto redondo.
Os cabelos haviam desistido de crescer há muito tempo. Daí tínhamos de decorar
tudo, item por item, para poder passar na prova. Naquela geografia não havia
porquês, nem causas, nem consequências, nem mesmo interação com o ser humano,
só números, puros, incontestes, absolutos. Não me lembro de mais nada. O pouco
que sei, aprendi depois de adulto, aqui e ali, consultando.
Não quero difamar o pobre do professor. Acho que ele nem
era professor formado. Ele fazia o que fazia, achava que era certo. Além do
mais, não devemos falar mal de quem não está mais presente. Certamente ele já
faleceu e, sendo um bom homem, além de padre, está no paraíso. Entretanto,
tenho certeza de que lá não está lendo os números do Stempniewski e do Picollo.
Lá de cima, ele tem outra visão. Pode ver a graça ao mesmo tempo suave e
estupenda da neve que cobre as montanhas, e que têm um tom sutil de azul, quase
imperceptível. Pode ver que os rios, de qualquer tamanho, serpenteiam sempre
graciosos entre as montanhas e os vales. À s vezes se lançam em quedas loucas,
em cascatas e cataratas, só para fazer graça. Que o mar, independentemente da
profundidade, na verdade tem tons mil. Que a luz do sol, de dia, reflete em
suas águas e cria milhões de pontos luminosos, que mais parecem diamantes. Que, à noite, os raios de luz da lua, refletidos nas ondas, parecem pedras
preciosas num fundo de veludo. Que a profundidade dos oceanos enumerada nos
livros do escritor era irrelevante perto da riqueza escondida lá no fundo. Que
a areia dos desertos, iluminada, de cima parece uma grande placa de ouro. Que,
lá do alto, as divisas geográficas não podem ser vistas. É um mundão só,
contínuo, belo, multifacetado, colorido... Que os homens, bons ou maus, não
podem ser vistos lá de cima. A maldade não parece existir, quando você olha de
lá.
Não faz mal, professor, nem ligue para meus comentários
sobre suas aulas. Desculpe a interrupção, descanse em paz, e aproveite ao
máximo essa geografia abstrata aí do céu: sem números, sem estatísticas, sem
comprimento, sem altura, sem densidade demográfica, nem coordenadas nem
paralelos...Só uma bola azul pairando no infinito...
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Essa vida da gente
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