Os dados de Chíntia
Cínthia sabia que alguma coisa estava errada. Estava
preocupada mas não a ponto de tomar uma atitude radical. Na verdade, ela nem podia fazer algo a respeito. Melhor ficar quieta e não
ir atrás do que realmente acontecia. Descobrir algo que não tem solução? Muito melhor nem ficar sabendo. Era o que seu
avô sempre dizia e contra o que sua avó sempre se rebelava. Mas eles, quando
eram vivos, tinham tanta idade e pertenciam a uma geração tão diferente que não
serviriam como referência.
Vamos considerar os dados, ela sempre pensava. O que ela
sabia e o que ela não sabia. Tinha consciência de que tinha uma doença muito
grave, um câncer no cérebro. Nem por isso era questão para se desesperar. A
ciência estava avançadíssima e isso não seria fatal. Não havia mais câncer
incurável. Entretanto, em seu caso, havia agravantes. O primeiro era que, mesmo
sabendo do problema, não procurou assistência médica até o “sistema” por si
mesmo detectar o caso e obrigá-la a se submeter a um tratamento. Como lhe
dissera a cientista do Departamento de Medicina Pública, ela estava num estágio
tão avançado, tão avançado, que teria de se submeter a um tratamento
completamente diferente. E não era só isso. Os exames mostravam que ela tinha
algo mais do que essa doença. Havia alguma outra coisa em seu cérebro que,
até para eles, cientistas, era uma novidade. Tinha a ver com partículas
subatômicas que compunham os átomos de suas moléculas ou algo assim. Ela nunca
fora boa em ciência. Sabia também que o “sistema” não cuidava de casos assim, pois era um tratamento experimental e eles não queriam assumir responsabilidade.
Com certeza isso era “conversa fiada”. Recomendaram que fosse cuidar de sua
cabeça num instituto particular. Não teria de se preocupar com custos ou nada
assim pois o “sistema” pagaria tudo. O lugar se chamava “Alexandria” e não era
apenas um prédio. Era como se fosse um grande parque de diversões, só que as atrações
ou os “brinquedos”, eram na verdade unidades de tratamento, mais precisamente, “unidades
alternativas de tratamento”. Assim que entrou pelo portão principal e procurava
pelo escritório de atendimento, pôde ver uma placa: “Unidade de Reconstrução Total”. Mas havia outras placas, quase
todas com nomes estranhos.
Não se intimidou e procurou a sala onde deveria fazer a
inscrição para o programa. Além de dizer o próprio nome, não precisou dizer
mais nada. Extraíram tudo do seu chip de identificação. Daí foi para outra sala
onde deitou-se numa cama. As duas atendentes falaram para ela ficar relaxada. A
luz diminuiu e então elas saíram.
Foi aí que começaram
as coisas que ela não sabia. Quando acordou, não sabia onde estava. Tinha uma
vaga noção de quem era. Não sabia se estava curada. Apareceu em outro lugar mas
não sabia onde. Não sabia quem eram as pessoas também. Às vezes parecia que elas
a entendiam, que elas a podiam ver. Outras vezes parecia que ela era um
fantasma, ninguém notava sua presença. Realmente havia muita coisa que ela
precisaria saber. No geral, porém, sentia um grande bem-estar. Não havia dores.
Podia se dizer que havia até um princípio de felicidade.
Desconfiou que talvez estivesse em coma. Talvez estivesse
sob efeito de drogas fortíssimas. Alguma coisa estava errada. Queria voltar.
Embora ela não soubesse, havia uma chance de voltar à realidade. Alguns
meses haviam se passado e finalmente seu irmão estava conversando com uma
técnica na recepção do instituto. A senhorita Robin, cabelos loiros e curtos, jovem
e sorridente, explicava para o irmão de Chíntia o que havia ocorrido:
-Infelizmente o corpo estava irrecuperável. Ela deixou a
doença danificar seus neurônios de tal forma que, mesmo com os recursos
moderníssimos que existem, é impossível recuperá-los.
Sorriu e continuou:
-Entretanto, agora que você está por aqui, há uma solução.
Como a sua carga genética é bastante semelhante à dela, podemos criar um “clone”
com material extraído de você e posteriormente fazer nele o “input”.
Diante do ar interrogativo de Samuel, Robin explicou melhor:
-Temos tudo dela salvo num “hardware”.Qualquer dado genético
ou psicológico imaginável. Desde a “careta” que ela vai fazer quando chupar um
gomo de limão até seus mais secretos desejos. Temos guardada a informação de
como ela gosta de dormir, de lado ou de bruços, temos a exata sensação que
passa pelo seu corpo quando ela vê um pássaro cantar. Tudo.
Samuel já tinha lido sobre essas coisas. Ele pensava,
entretanto, que era tudo experimental, que ainda não estavam fazendo no dia a
dia, com pessoas normais, muito menos com sua irmã. Enquanto sua mente divagava
ainda um pouco confusa com as novidades, Robin entregou-lhe uma pequena caixa
metálica.
-Pode abrir, disse Robin.
Samuel apertou um botão preto e a tampa abriu-se
automaticamente. Dentro podia ver um pequeno cilindro de 1 centímetro de
diâmetro por 8 de comprimento. Parecia cristal e dentro dele havia minúsculos
circuitos feitos com fios de ouro, minúsculas esferas cor de bronze e outros
pontos minúsculos que não podia identificar.
-Está tudo aí, Samuel. Pode levar, guardar em temperatura
ambiente e, quando você estiver pronto, volte aqui para colhermos seu material.
Demora no máximo uma hora.
Samuel agradeceu, colocou a preciosa caixa no bolso de sua
túnica e despediu-se da senhorita Robin. Saiu pela porta central e dirigiu-se
para seu veículo “carregando” sua irmã no bolso.
Tinha de pensar muito, não sabia se seria capaz de fazer
isso. No fundo ele sabia que acabaria fazendo. Ele sentiu muita falta da irmã
todo esse tempo e, de certa forma, estava se sentindo poderoso. Era como se
pudesse ser Deus, como se pudesse devolver a vida para um ser usando sua
própria carne. Por alguns segundos lembrou-se de uma passagem daquele livro
antigo onde o Criador fez a mulher da costela do homem. Sorriu. Ele sabia que
iria concordar. Estava só “dando um tempo” para se acostumar com a ideia.
A temperatura era maravilhosa e uma brisa suave acariciava o
ar. Era a primavera do ano 2365.
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Histórias do Futuro
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