Demônios do Alabama
Samuel
estava sentado sobre a sela de um cavalo naquela manhã longínqua de primavera. As pessoas à sua volta
gritavam, excitadas, palavras de insulto, xingamentos e outras impropriedades.
Ele mal entendia o que estava acontecendo, mas sabia que não era nada bom. Em
volta de seu pescoço havia uma corda que, mais acima, estava amarrada ao galho
de uma árvore. Era o começo do século 19 numa pequena cidade do interior do
Alabama, nos Estados Unidos, e ele estava aguardando sua execução.
O povo
tinha verdadeira obsessão por enforcamentos e é por isso que muita gente havia
se juntado na pequena praça. O carrasco e mais as autoridades estavam aguardando
a chegada de alguém importante para presidir o ato e o povo estava ficando
impaciente. Queriam ver o espetáculo.
Samuel
tinha retardamento mental e era uma espécie de vagabundo que vivia pelas ruas à
procura de alimento. Seu rosto e seu corpo tinham deformidades acentuadas e não
era, definitivamente, uma figura bonita de se ver. Ninguém escondia o alívio de
ver aquele ser horrendo desaparecer da paisagem local. Alguns chegavam a falar
até que ele era o próprio demônio em forma de gente.
Samuel,
entretanto, não conseguia entender todo aquele alvoroço, toda aquela confusão.
Estava com fome, isso sim, estava. Tinha passado três dias na cadeia local e mal
lhe deram algum alimento. Sua vida nunca
tinha sido boa. Para dizer a verdade, sempre fora abaixo de miserável, mas há
alguns dias atrás tinha se tornado ainda pior. Na tarde do sábado passado,ele
estava tentando encontrar algo para matar a fome na parte de trás de um bar, quando se deparou
com um corpo no chão. Havia muito sangue saindo do peito do pobre homem. Tinha
levado um tiro ou uma facada. Samuel se ajoelhara para vê-lo e verificar se
ainda estava vivo. Assim que se abaixou, ouviu gritos de “assassino,
assassino”. Não demorou muito para que o agarrassem e o levassem para a cadeia.
Lembra-se vagamente de ter sido acusado do assassinato daquele homem e de ter
sido condenado à morte. Era por isso que estava ali.
Ia ser
rápido agora.
Tinha
chegado quem faltava, as pessoas urravam. Era só o carrasco dar uma chicotada
no cavalo que o mesmo iria para a frente e seu corpo cairia pesado, quebrando
seu pescoço e tirando sua vida. O barulho era infernal. Suas mãos estavam
atadas atrás por uma corda. No último minuto, tinha percebido que ela estava
frouxa. Poderia facilmente libertar-se dela. Tinham feito um serviço grosseiro,
porque estavam com pressa de acabar com ele e por saberem que ele era um pobre
coitado que jamais reagiria.
A
autoridade fez um sinal para o carrasco e esse levantou o chicote para açoitar
o cavalo. Samuel instintivamente livrou suas mãos e levou-as acima de sua
cabeça, agarrando-se na corda que pendia do galho da árvore. Com uma força que
não sabia possuir, ato contínuo, deu um impulso no corpo, como se fosse um gato
e subiu na árvore.
As
pessoas, antes barulhentas, agora estavam mudas de pavor. Os palavrões foram
substituídos por clamores a Deus e quase todos saíram correndo. Alguns permaneceram
ali, petrificados. Lá de baixo dava para ver a figura de Samuel, de cócoras,
escondido entre as folhas e os galhos. Começou, instintivamente, a uivar. Seu sentido de
autopreservação deu-lhe forças descomunais. Seus gritos aumentaram e finalmente
afugentaram o resto dos assistentes. Saíram fazendo o sinal da cruz,
aterrorizados.Todos, incluindo as autoridades e o carrasco. Ele tinha se
transformado no diabo, pelo menos para quem estava ali. Quando se sentiu
seguro, Samuel desceu e penetrou na mata, que começava não muito longe dali.
A lenda
ficou. A cidadezinha tentou enforcar o demônio e não conseguiu. Dali para a
frente, nas noites escuras, muitos garantem que veem a figura do demo e ouvem
seus uivos lancinantes.
Samuel,
entretanto, era um anjo por dentro e ele, sim, tinha visto muitos demônios
naquele dia. Estava agora longe, seguro, em outra cidade, em outro estado, mas
a sua imagem ficou lá atrás, na perdida cidade do Alabama. Por décadas, desde o
incidente, os habitantes tiveram de lidar com seus próprios demônios.