As
Marmitas do Senhor Bonifácio
A
marmita que a dona Eleta preparava para o senhor Bonifácio era uma obra de
arte. Tinha cinco andares. Cinco vasilhames redondos de alumínio com alças dos
dois lados. Eu era
muito criança e a marmita era desproporcional para o meu tamanho. Eu tenho
certeza de que uma delas tinha
feijão e a outra tinha arroz. Isso era sagrado. As outras três levavam as
misturas. Era um cheirinho muito gostoso. Ah, havia também, amarrada pelo
gargalo, uma garrafinha verde com uma rolha de cortiça, que continha o café,
que, após minha longa jornada, ainda chegava quente na fábrica de cimento. Garfo
e colher eram seguros por um elástico num dos lados. Não me lembro da data
exata, mas com certeza eram os anos cinquenta.
O
roteiro era perigoso para um garoto com menos de 10 anos. Mas ninguém temia,
nem as mães nem as crianças. Acho que havia mais anjos da guarda naquela época
ou, pelo menos, menos demônios. Saía de casa sempre no mesmo horário e começava a
minha jornada. Descidas, curvas para a direita e para a esquerda, um casarão, o correio e lá no final havia uma esquina e depois começava uma reta.
Nessa
época acho que nenhuma rua era asfaltada. Algumas eram cobertas com
paralelepípedos e outras ainda eram de terra ou cobertas com cascalho. Quando
chovia, as ruas de terra lá do alto eram perigosas porque eram um barro só e as
lá de baixo se enchiam de água. Alternávamos nossas pequenas tragédias e
continuávamos nossas vidas.
E
eu também continuava meu caminho até atravessar uma pequena ponte e dali a pouco
atingir a parte mais arriscada da viagem: um túnel que passava por baixo da
estrada de ferro e que era usado para conduzir as águas do rio do nosso bairro.
No cantinho havia uma pequena passarela por onde eu andava com cuidado, olhando
para as correntes de água passando quase junto a meus pés. A seguir já era
possível se ver as grandes chaminés da fábrica de cimento. Caminhava então pelo
chão coberto pelo pó cinza, quase verde, enquanto ouvia o apito anunciando o horário do
almoço. Do meu lado esquerdo estendia-se uma grande cerca de arame. Os fios
eram muito grossos , cobertos que estavam com o mesmo pó.
Após
algum tempo podia ver pai me esperando. Ele dava um largo sorriso. Também quem
não daria, faminto, vendo chegar um
almoço gostoso daqueles? Sentávamo-nos no refeitório. Enquanto ele fazia seu
ritual, escolhendo as marmitas, pegando os talheres, eu observava os outros
trabalhadores. Conversando, rindo, apesar do cansaço. Eu tinha certeza de que
meu pai era o mais importante de todos, o mais forte de todos, o mais... tudo.
Era uma parte gostosa do dia. Afinal eu estava lá cumprindo a minha importante
missão. Depois de algum tempo ele encerrava sua refeição, arrumava toda a
tralha, dava um tapinha nas minhas costas e me mandava de volta para casa. De
novo, aquele sorriso de felicidade. Não que ele sorrisse sempre. Mas quando
sorria, você dava valor. Ele também não era
de ficar fazendo carinho, dando abraços o tempo todo, etc... Ainda assim eu
achava que ele era o paizão mais afetuoso de todos, o senhor Bonifácio.
O
tempo passou.
Já
tinha dois filhos e com eles ia sempre visitar meus pais em Perus, que era
perto de onde eu morava. Não havia mais fábrica de cimento, nem marmita, nem a
caminhada, e a infância, então, já tinha ido embora há muito tempo e agora era
de propriedade dos meus filhos. Quando abria o portão, deixava os dois correrem
para frente. Meu pai, que estava sempre abaixado, cuidando de sua horta,
levantava-se, firmava a vista e dava um sorriso. Era exatamente o mesmo sorriso
de quando eu ia levar suas marmitas. E esse sorriso era diferente dos outros
seus sorrisos.
Foi
só aí que eu entendi. O sorriso não era por causa do almoço que eu estava
trazendo. O sorriso era para mim. Era a alegria de me ver. Agora que eu tinha
crescido, ele havia transferido esse presente para os netos. Era um sorriso
quieto, mas enorme. Era do tamanho do mundo. Agora, que eu estou aqui
escrevendo, mais velho do que ele, eu posso sentir... sentir que ele está olhando de novo para mim, sorrindo... de novo,
como se eu fosse ainda uma criança.
ooooooOOO0OOOooooo
GERMÂNIKA
Imagine um país que vai de São Paulo até o Uruguai, numa outra realidade. Imagine agora que este país foi dominado pelos alemães e agora são seus habitantes. Esta nação é GERMÂNIKA e pertence a um universo paralelo ao nosso.
Leia GERMÂNIKA, disponível no Amazon.
Lembranças boas,acho que nossos anjos ainda continuam por ai mas nós não temos mais tempo para eles......Lembro também de uma lenda de que logo após a portaria haviam alguns eucaliptos e diziam que a meia noite eles deitavam na estrada..nunca fui la para ver kkkkkk.
ReplyDeleteCarlos Espindola
Lembrança gostosa que você compartilhou! Pude seguir junto com você pelos caminhos que transitou. Percebi o sorriso que seu pai e senti o orgulho dele por você. Assim como você, eu também levei essas marmitas só que era para o meu avô; Deixava na marmitaria da Portaria 1, no bairro da Fábrica. Tempos idos, guardados com carinho na memória e no coração.
ReplyDeleteObrigado pela leitura, Oswaldo! Eu quase nem me lembrava dessa crônica, mas dos fatos eu me lembro como se fosse ainda hoje!
ReplyDelete