Monday, March 23, 2020

A República dos Prazeres


A República dos Prazeres
autor: Flávio Cruz
Era uma vez uma república. Muito grande, muito rica, fabulosa. Trabalhava-se muito, ganhava-se muito e comia-se bem e bastante. Ah, sim, comida era algo muito especial. Como ninguém tinha tempo de prepará-la pois precisavam ganhar dinheiro, modernas fábricas se encarregavam disso. Elas faziam alimentos saborosos. Uma delícia. Especiarias crocantes, apimentadas e salgadas. Os doces então, não dá nem para descrever. O que não se economizava era o açúcar. Era tudo muito doce e isso era necessário porque antes o salgado e o crocante já tinham atiçado o paladar. Muito importante igualmente era o o óleo. Tudo precisava ser muito bem frito e ter aquele colesterol gostoso e indispensável. Outra coisa muito interessante era que eles colocavam sal nos alimentos doces para contrabalançar um pouco – era muito doce – e colocavam açúcar nos alimentos salgados, também para contrabalançar. Eram uns gênios em termos de culinária industrial.
Havia no entanto um pessoal chato e desmancha-prazeres. Inventaram uma história ridícula de que essas coisas não eram boas para a saúde e que até as crianças estavam ficando gordas. Conversa fiada.Todo mundo estava feliz, por que se preocupar? Existe gente que consegue ver problema em tudo. Esse pessoal que estava reclamando era muito chato e não parava. Eles eram iguais aos comunistas e subversivos. Estão sempre querendo mudar a ordem vigente. O pessoal não estava dando muita bola para eles. Se gostavam de falar, que falassem. O problema é que eles eram muito insistentes. Começaram a fazer estísticas. Pior que isso, ficavam falando das mesmas para todo mundo: nos jornais, na televisão. Alguns abusados escreveram até livros. Tem gente que não pode ver felicidade dos outros que quer estragar. Que mal pode haver no doce, no salgado, no azeite?  Afinal de contas, tudo vem da natureza.
Alguns mais chatos que os outros, começaram a fazer umas contas esquisitas. Que muita gente  estava com diabetes (imagina culpavam o coitado do açúcar!) e com pressão alta (imagina que falavam que era por causa do sal).Chegaram ao absurdo de dizer que tinha gente com problemas no coracão por causa do colesterol! Tudo isso dava para aguentar, mas quando falaram que, no final das contas isto poderia custar mais dinheiro no setor de saúde e que este dinheiro teria que ser conseguido através de mais impostos, então a coisa ficou feia.

A República, entretanto, tinha grandes cabeças e grandes estrategistas. Imediatamente explicaram o mal entendido, não havia necessidade de se apavorar. Pelo contrário, a ordem era só regogizar. Tudo muito óbvio e muito simples. Se era verdade que mais pessoas precisavam ir ao hospitais, verdade era também que estavam tomando mais remédios. Muitos remédios: comprimidos, injeções, soluções. E não era só isso. Havia mais consultas, mais receitas, mais médicos, mais enfermeiras, mais hospitais e o grande argumento: mais empregos!  Era impossível não se ver o benefício geral para a República. Ah, estava esquecendo, claro que haveria mais impostos também. Não estou nem mencionando  a questão da propaganda. Quanto dinheiro girava em anúncios! Pessoas felizes nas telas saboreando coisas crocantes, doces, salgadas, picantes e até geladas! Pessoas curadas por remédios fantásticos dando testemunhos na telinha. Propagandas de doutores e hospitais! De novo, mais anúncios e mais empregos para gente importante que sabe “bolar” um anúncio e para gente não tão importante que iria colar os anúncios nos “outdoors”. Só um idiota completo não conseguiria ver a quantidade enorme de benefícios para toda a nação! Existe gente que se perde em detalhes e não consegue ver o “todo”.
Há cidadãos que nunca estão felizes e por isso alguns ainda insistiram. Falaram com os representantes do povo e pediram  para eles intervirem e pararem com aquela loucura. Precisava haver controle, regulamentação, algo precisava ser feito antes que toda a nação ficasse doente.  Estavam diante da inevitabilidade de um país de obesos, hipertensos, circulando em cadeiras de rodas e outros aparelhos especiais. Que besteira! Além do mais, se isso fosse verdade, já pensaram na tecnologia a ser desenvolvida para esses veículos, as fábricas, os empregos?  Mal podia se antever toda a gama de oportunidades para todos.  Isso sem contar o conforto com que as pessoas poderiam circular daqui para a frente.
Voltando aos representantes do povo, a maioria não ligou, mas alguns resolveram discutir o assunto. Mas não tinha jeito. Aquele povo todo que fabricava alimento mandou um verdadeiro exército – tudo dentro da lei – para provar o erro dos subversivos, como eles não entendiam de economia, como eles iriam acabar com a  República, dificultando negócios, transacões e eliminado empregos com aquele debate desnecessário sobre  alimentação saudável.
A discussão era tanta e tamanha era a confusão que muitos advogados eram necessários. Com tantos advogados, eram precisos também mais anúncios para que eles pudessem explicar que eles eram melhores do que os outros e que iriam ganhar a discussão para você, desde que você pagasse as custas e os honorários necessários para se ganhar um argumento. Mais anúncio, mais gente fazendo anúncios… mais tudo.
Alguns representantes, muito poucos, estavam firmes na questão de preservar a saúde pública e prometeram fazer algo. Foi aí que aconteceu uma tragédia ainda maior e que não tinha nada  a ver com os doces e salgados. Aquele pessoal que cuidava do dinheiro das indústrias e do povo em geral, ousou mais do que era permitido ousar, aventurou-se mais do que era sábio aventurar. Uma catástrofe, perdeu-se muito dinheiro e, pior que isso, muito emprego. Todo mundo ficou mudo. Até pararam um pouco de falar do doce e do salgado. Agora só se falava de dinheiro e emprego.
Claro que o fato de não se falar sobre o fato não impede que  continue aumentando a quantidade de gente em cadeiras de rodas, gente nos hospitais, gente andando de ambulância… Mas acho que não há problema, pois isso vai gerar mais emprego, mais negócios, etc… e a República vai continuar a crescer, se divertir e ser feliz! Viva a República!
P.S.: Esta é uma história absurda, sem fundamento na realidade, pura obra de ficção, e qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é pura e incrível coincidência!



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