Thursday, May 7, 2015

Pelegos e Queixadas: o cimento das almas

Pelegos e Queixadas: o cimento das almas

Era uma vez um lugar… Lá moravam nossas famílias, ganhávamos nosso pão, vivíamos nossos sonhos. Quase todos trabalhavam no mesmo lugar, uma grande fábrica de cimento. Era enorme, dominava a paisagem,dominava a comunidade. Na hora do almoço, nós, os filhos dos trabalhadores, fazíamos um longo roteiro para levar as “marmitas” para que nossos valorosos pais pudessem se alimentar e continuar trabalhando pelo resto da tarde. A comida, embora simples, era cuidadosamente  preparada e separada, item por item por nossas mães. Passávamos por um túnel sob a estrada de ferro e ao longo de um pequeno riacho, até chegarmos ao grande refeitório. Talvez o roteiro fosse considerado perigoso hoje em dia para crianças de nossa idade. Entretanto naquela época ainda havia anjos que cuidavam de nós. Não era obrigação, gostávamos de fazer isso, era parte do grande sonho que é a infância.
O que nós não sabíamos na época, era que a fábrica, ao produzir o cimento, jogava o resto do pó sobre nossas casas, nossas ruas, nossas plantas. Era como se tudo fosse cinza-esverdeado. Os arames das cercas tornaram-se três  vezes mais grossos do que  eram originalmente. As ruas eram cimentadas ou se tornaram, não porque quiséssemos, mas simplesmente porque o pó não parava de cair. As folhas das plantas eram todas da mesma cor, a cor do cimento. Flores só as que estavam dentro de casa. Todos passaram a reclamar, exigir uma solução. Esse tipo de consciência não era tão forte naquela época mas algumas pessoas eram valentes, lutavam e sabiam que era tudo um problema de ganância: a fábrica não queria gastar dinheiro com os grandes filtros industriais. O cimento era tanto que começou a entrar em nossos pulmões, nos pulmões de nossas crianças, em nossos olhos, em nossa pele.  E ainda assim, precisávamos da fábrica, do trabalho.
Um dia, porém, o cimento entrou em nossas almas. Por várias razões, os empregados resolveram entrar em greve. Não foi uma greve qualquer, foi uma longa e interminável greve. Não foi uma greve qualquer, foi uma greve que mudou a nossa cidade. Não foi uma greve qualquer, foi uma greve que nos transformou por dentro e por fora. Foi aí que o cimento endureceu em nosso interior tanto quanto endurecera em nossos pulmões.As pessoas se dividiram. Umas achavam que a greve deveria ir até o fim, outros achavam que os trabalhadores deveriam retornar ao trabalho que “trabalhar era preciso”.  Dividiram-se  as pessoas entre “pelegos” e “queixadas”, os que queriam voltar a trabalhar e os que queriam continuar a paralisação até o fim. Foi triste. Amigos se tornaram inimigos, parentes e amigos se separaram, passaram a “olhar torto”, a falar coisas... Cada um, de cada lado, tinha suas razões. Foi aí que, mais do que nunca, sentimos a dureza do cimento. Passamos a ter almas de concreto. O cimento, definitivamente, tinha invadido tudo: o corpo e a alma.
Muito tempo se passou e, claro, de uma forma ou outra, tudo se resolveu. Não sei quantas pessoas ainda se lembram dessas coisas tristes, não sei se ainda há gente com rancor em Perus, onde tudo aconteceu. Eu sei que o cimento das ruas, das plantas e das casas, embora com dificuldade, um dia você pode limpar. Quanto ao cimento das almas, não sei. Não sei se passa de pai para filho, se amolece com o tempo. Eu só sei que esse cimento prejudicou nossa gente mais do que os acidentes de trem, do que a política, do que tudo... Claro, estou falando do cimento da alma... Espero que os filhos e netos de Perus - os filhos da terra - tenham se esquecido desse capítulo triste de nossas vidas, para sempre.


Perus: um pouco de história











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6 comments:

  1. Infelizmente essa história está sendo esquecida. As pessoas que viram isso acontecer foram embora de Perus ou faleceram, e também novos moradores chegaram sem se darem conta de que esse evento importantíssimo aconteceu ali.
    Em conversa com meu pai concluimos que o movimento dos queixadas foi pioneiro para a época e estopim para o movimento operário do ABC.
    A diferença é que cimento e poluição é muito diferente de industria automotiva. Cimento, se não fosse fabricado em Perus o seria em outro local, já um país sem carro seria inviável, certo?
    Abraços
    Fernando

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  2. Alguém já falou que não temos memória...

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  3. Extremamente importante!!!Sou morador de Cajamar e reconheço essa historia perfeitamente...como foi dito,muito se esqueceram...mas quem passou por isso,de facto esta como tatuagem na alma!!!Sou fruto dessa greve...e agradeço o espirito que em mim foi cultivado.
    Anderson Santiago-aluno de graduação da Universidade Mackenzie

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  4. Anderson: Obrigado por seu comentário. A gente precisa escrever essas histórias que é para que elas não entrem no esquecimento...

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  5. Me lembro perfeitamente dessa greve... Era muito menina,mas acompanhava minha mãe juntamente com outras mulheres que ficavam horas paradas no que seria hoje a Praça Luiz Neri.Para nos crianças era divertido, mas tínhamos verdadeiro pavor dos "brucutus" estacionados estrategicamente nos acessos a fábrica. Esses veículos serviam para dispersar possíveis confrontos e jogavam um jato de água e areia. Não entendia muito o que acontecia, mas são fatos que jamais esquecerei. Meus tios Rafael Fernandes, Flavio Fernandes eram os queixadas. Meu pai Sr. Victório Barbi trabalhou somente por 6 meses na fábrica quando a greve foi deflagrada...Sueli

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  6. Muito emocionante, escrito de uma forma simples, com a alma! Eu pretendo ler este texto para alunos (faixa etária 12 anos) em uma exposição que está acontecendo, na Biblioteca Pde. José de Anchieta (Perus) e fazendo referência a este Blog. Parabéns!

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