Giulia,
o episódio de Hachiro
Hachiro foi andando pelos arbustos, tentando afastá-los com
as mãos. Estava com pressa. O frio era tremendo, embora um sol intenso, quase
branco, bem no meio do céu azul, iluminasse, destemido, a paisagem. Uma brisa,
quase vento, penetrava a pele como se fosse uma faca feita de gelo, mesmo com a
roupa especial com que estava. Não demorou muito para que ele atingisse a areia
da praia, Cala Brandinchi, Sardenha. Olhou inadvertidamente para cima e ficou quase
cego por alguns segundos. Assim que recuperou a visão, viu o corpo nu de
Giulia: magro, molhado, tremendo com aquela temperatura baixíssima. Estava
sentada numa espécie de colchão que, paradoxalmente, estava seco. Era como se
Hachiro soubesse de tudo, conhecesse a história que tinha acabado de acontecer.
Giulia tinha sido de vítima do naufrágio de um pequeno barco a três quilômetros
dali.
Tirou seu casaco e o colocou sobre os ombros delicados da
mulher. Ela se virou e olhou para ele submissa, agradecida, tentando cobrir os
seios. Certamente ela era italiana, mas seus olhos eram ligeiramente “puxados”,
indicando talvez alguma ligação genética com asiáticos. Hachiro achou que isso
era bom. Levantou-a e começou a carregá-la em seus braços. Com os pés ia afastando
as pequenas plantas para que elas não a machucassem. Sentia carinho sem sensualidade,
amor sem erotismo. Era bom ajudar alguém. Fazia muito tempo que não sentia algo
tão profundo. Alguns minutos depois chegava em casa. Empurrou a porta com as
costas, andou alguns passos e a pôs com ternura sobre o sofá. Foi até o quarto,
pegou um cobertor e um travesseiro. Agora ela parecia confortável, não sentia
mais frio.
Seguro de que tudo estava bem, deu uma ordem ao seu robô
pessoal para que preparasse um chá, sabor pêssego. Não demorou muito para que
sentisse o aroma na sala. Estava agora sentado em frente à enorme tela côncava
de seu ICS (Integrated Communications System). Ordenou que a presente sessão
terminasse, virou-se para trás e notou que sua linda Giulia não estava mais lá.
Também ele não estava mais na casa de praia.
Estava sim no 73º. andar de um conjunto habitacional nos
arredores de Tóquio. Tinha voltado de
seu episódio virtual, parte do tratamento de uma condição de saúde chamada LOSPS
(síndrome da falta de propósito social, em Inglês). Era o final do ano 2087 e
as pessoas trabalhavam cerca de 4 horas por dia apenas e mesmo isso era demais.
Tudo era feito pelos robôs. As pessoas, principalmente os jovens, sentiam-se
completamente inúteis com tanto tempo à sua disposição. A maior parte dos casos
era tratada com infusões químicas. Casos mais sérios eram tratados com a
técnica de imersão profunda em realidade virtual.
Hachiro estava feliz com a última sessão com a Giulia, e conferiu
qual seria o próximo “episódio”, nome dado a cada parte do tratamento.
Tratava-se de socorrer uma criança que tinha acabado de ser atropelada em uma
rua de Los Angeles há décadas atrás, por volta do ano 2021. Graças à sua ajuda,
ela seria salva. Hachiro tentou dar um “start” no programa, mas logo veio o
aviso que ele já conhecia. Só era possível uma sessão por dia, a “imersão
profunda” poderia causar danos ao cérebro. Não custava tentar, aquilo era muito
bom. Conformou-se e pegou o elevador. Ia começar a sua jornada de 4 horas diárias
de trabalho. Bom dia, Hachiro, bom dia Tóquio!
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