Tuesday, November 13, 2012

No Corredor da Morte


No Corredor da Morte

Os últimos dias foram completamente diferentes de todos os outros da minha vida. Parece que eles duraram uma eternidade e ao mesmo tempo foram rápidos como um raio. Agora aqui estou esperando minha hora. Não há muito o que fazer e a única coisa que dá para fazer, é pensar. Foi o que também fiz nos últimos dias. Quando a única coisa que dá para fazer o dia inteiro é pensar, a realidade que você está pensando vai mudando, mudando. E ela passa a ser a verdadeira realidade. A primeira é a realidade que você sentiu, viu e viveu. Mas a realidade “pensada” depois, torna-se mais autêntica, mais verdadeira. Parece besteira mas é assim.  É a verdade filtrada, atualizada, pesquisada. O que vale é o que ficou da primeira verdade.Talvez seja idiotice isto que estou dizendo, mas como pensei muito sobre o assunto, você deve me dar algum crédito. Há outro motivo pelo qual mereço crédito e não é por causa de meu passado ou por referência de alguém. É o melhor motivo de todos: quem não acredita em alguém que vai morrer? E não é suicídio, não. Eles vão me matar. É coisa certa, é coisa do sistema, é o governo. Garantido. Se fosse um bandido me ameaçando ou outra pessoa qualquer, poderia ser só uma ameaça, daquelas que se fazem a todo momento e não se cumprem. Meu caso é diferente, o Governo é que vai me executar.
Meu amigo, eu estou condenado à morte. Se eu fosse conhecido, ou uma pessoa importante, eu poderia ter alguma esperança. Um apelo de última hora, o perdão do governador. Nada disso, sou um ilustre desconhecido. Saí algumas vezes no jornal, mas nunca na manchete, nunca ninguém se interessou pelo meu caso. E eles deveriam, porque a minha história é uma história e tanto. Antes de continuar gostaria de informar que acabei de pedir minha última refeição, aquela refeição especial, tipo “último pedido”, sabe? Como se vê em filmes. Pedi salmão, tem bom colesterol, não é carne vermelha. Não que faça muita diferença tão perto da morte como estou, mas princípio é principio, você sabe. Um homem sem princípios não vale quase nada. Eu sempre tive. Você provavelmente deve estar pensando, como um condenado à morte pode ter princípios? E aí está o grande engano. Existe tanta gente sem condenação nenhuma, uma tremenda ficha limpa e não tem princípios, nem moral, nem referência. Eu sou condenado mas não sou culpado. Não que eu queira ser melhor que eles. Besteira, o que importa são os fatos e não o princípio. O fim, esse sim, importa. E antes que ele chegue – o fim -  vou lhe contar a parte do meio, ou seja como cheguei aqui. Esse “como cheguei aqui”  está batendo no meu ouvido há um mês. Interessante. Passaram um filme para os prisioneiros e o personagem principal começava sua narrativa assim: “Como cheguei aqui?”. Só que a vida dele foi uma vida de sucesso, já a minha...Mas chega de lamentações.
Cindy foi minha primeira namorada de verdade e eu já tinha 22 anos, sempre fui muito tímido. Nós vivíamos numa cidade pequena e, obviamente, todos sabiam do nosso namoro. Uns dois anos depois, logo após ficarmos noivos, ela, sem mais nem menos, disse que não poderia ficar mais comigo. Alguns dias depois ela saiu da cidade e não mais voltou. Não sei se tinha conhecido alguém, se resolvera estudar numa cidade grande, não sei. Fiquei decepcionado, triste, acabrunhado. Quem me conhecia, imediatamente percebeu o que estava se passando dentro de mim. As pessoas comentavam, eu sei, muitos tinham dó de mim. O tempo passou, no entanto. Alguns anos foram suficientes para apagar as tristes lembranças. Eu estava bem mesmo, as coisas estavam melhorando, quando...Você não vai acreditar, a Cindy voltou. Não sei por quê, não fiquei sabendo. Eu estava curado, eu sei, pois não sentia vontade de falar com ela. Se precisasse, falaria, também não haveria problema. Eu a vi uma duas vezes e tentei evitar contato, melhor assim. Quase dois meses ja tinham ido desde que ela chegara de volta, e acreditem, eu estava bem, não queria nada do passado, nem mesmo a Cindy. E vou lhe dizer, ela era uma garota e tanto: bonita, inteligente e delicada.
O destino, meu amigo, é cruel e traiçoeiro, pelo menos comigo foi. Desculpe-me estar chamando você de amigo, eu um condenado à morte, que você nem conhece. Não é todo mundo que quer ser amigo de um condenado. Tenho esperança de que quando você conhecer toda a minha história, você queira ser meu amigo. É claro que vai ser por pouco tempo, pois, como já disse, estou no corredor da morte e é bem lá na ponta.
Mas vamos voltar à minha história. Como eu disse, a Cindy era história do passado, não era um problema para mim até que...Bem, o destino não é algo você possa construir apesar do que alguns otimistas falam. Você pode, no máximo, forçar um pouco, mudar uns detalhes, segurar o touro pelos chifres, mas no fim, ele vence. Seja ele bom, seja ele ruim. Termino meu dia de trabalho e lá vou, feliz, passar o resto dia na minha gostosa solidão, fazendo o que eu gosto de fazer em casa. Desci do ônibus a dois blocos de minha casa. Estava quase escuro e eu já no meio do caminho, quando, virando à esquerda na curva, me deparo com uma mulher estendida na calçada. Escorria sangue de sua cabeça, ainda estava quente. Fiquei desesperado, nunca enfrentara uma situação como aquela. Uma tontura enorme invadiu minha cabeça e meu corpo ficou mole. Foi por isso que o que aconteceu a seguir não poderia piorar as coisas pois elas já estavam piores. Quando tirei os cabelos dela da frente do rosto, meu Deus, era a Cindy! Foi aí que fiquei sabendo que as coisas poderiam sim, ficar piores. E ficaram. Não quero aborrecer você com os detalhes, com o que aconteceu a seguir. Vou falar tudo bem rápido, bem simples, é fácil de entender. De qualquer jeito, eu também não tenho muito tempo. Pelo  menos por aqui. Com o sangue nas minhas mãos, segurava a sua cabeça quando vi um martelo ensanguentado. Tinha sido um crime. Pobre Cindy, seu rosto estava ainda mais belo do que antes. Foi aí que vi, por trás de mim, luzes vermelhas e azuis. Ouvi também a sirene de um carro de polícia. Cheguei a ficar aliviado de eles estarem ali tão rápido, eu não precisaria me envolver muito. Mal sabia que eu seria o mais envolvido de todos. Não me perguntaram nada, me algemaram, leram meus direitos e me prenderam. Acho que uma ambulância levou o corpo dela. Acho. Depois disso nunca mais voltei para casa. Era tão óbvio que eu seria absolvido  daquela acusação ridícula que nem cheguei a ir fundo no caso. Nem pensei em contratar um advogado, aceitei o que o governo estava me oferecendo. Caso fácil. Sairia da cadeia num instante. Talvez até processasse os policiais por fazerem um erro tão grosseiro.
Não foi bem assim. Num instante o caso virou um “caso garantido” para eles, os promotores. Eles tinham o motivo – um antiga paixão, um homem abandonado pela vítima - tinham a arma e, principalmente o flagrante. Flagrante é flagrante nem que não seja, se é que você me entende. Meu advogado não acreditava em mim, nem meus amigos, ninguém. Não tinha família próxima por ali, estava sozinho no meu drama. Foi rápido. Tribunal, julgamento, condenação. Lembro-me das caras dos jurados balançando a cabeça em sinal de desaprovação, enquanto o promotor falava palavras como ”cruel, vingança, pego no ato, frio”.  A defesa desanimada do meu advogado era mais uma confissão que ele fazia do “meu crime” do que uma defesa propriamente dita. O meu advogado acabou de me enterrar. Recurso negado, condenação confirmada. Talvez meu amigo esteja pensando, que absurdo, não é tão fácil assim condenar uma pessoa inocente. Acredite, meu amigo, comigo foi. É verdade que, no meu caso, a uma certa altura, eu desisti. Achei que não valia a pena. Se eu pudesse, pelo menos, convencer os pais dela e seus amigos de que não tinha sido eu, já seria alguma coisa. Mas eu tenho certeza de que eles sempre me consideraram como sendo o frio e cruel assassino de sua filha.

Enquanto eu estava explicando essas  coisas para você, o tempo foi passando. Eu andei todo aquele espaço até a sala de execução e já estava na mesa, amarrado com aquelas tiras todas. Preciso confessar que estava apavorado. Por outro lado, seria bom eu ter um pouco de sossego. Esses anos todos sofrendo, esperando a morte. Chega uma hora que você diz para si mesmo: que venha! Do meu  lado esquerdo podia ver os líquidos coloridos que iriam entrar em minhas veias num instante. Não vi, mas acho que os pais da Cindy estavam me vendo. Eu que estava para morrer mas tinha pena deles. Além da morte da filha ainda precisavam me odiar. Que tipo de pais não têm ódio de quem mata uma filha? Se alguém mata sua filha, você tem de odiar, não tem? Eu entendo. Se eles acreditassem em mim...Ninguém acredita em mim. Cheguei a um ponto em que até eu duvido de mim mesmo. Não, não, eu sei que não fui eu.
Já pensou se, naquele minuto final, o secretário do governador liga e manda suspender a minha execução? Talvez eu saísse nos jornais...Que nada, milagres não acontecem, pelo menos para quem não acredita. Milagre? Depois de tudo que aconteceu comigo? Parece até brincadeira. Só se existir milagre inverso. Milagre reverso, ou reverso do milagre. Gozado, milagre inverso, nunca tinha pensado nisso. Milagre ao avesso? Acho que já me injetaram com os líquidos coloridos. Estou sentindo algo muito estranho, não doi, até que não é tão mau...Milagre? Dá até vontade de rir...Milagre! Meu amigo, sempre tome cuidado com o destino. Siga meu conselho. Como disse, o destino às vezes é cruel. Agora tenho de me despedir, não consigo mais pensar. Lembre-se do que eu disse, meu... Posso chamar você de “amigo” agora? Pois então, meu amigo...Cuide-se, meu amigo, pois o destino...

No comments:

Post a Comment