A
menina e a bola vermelha
Mudança é uma coisa chata. Empacotar, embrulhar, arrumar, transportar.
Lá estava eu colocando as coisas na caminhonete para levar a primeira rodada. Mexo daqui, mexo
dali, e uma grande bola vermelha de plástico cai, pula na calçada e vai rodando
embora. Assim que desocupo minhas, mãos vou atrás dela. De repente vejo dois
pezinhos, calçados com sapatinhos brancos, vindo em direção a ela. Era uma menina sorridente. Ela abre os bracinhos
tanto quanto pode e abraça a enorme bola, quase do tamanho dela. Está feliz.
Inicialmente veio aquele sentimento idiota de propriedade, como vou pedir o
brinquedo de volta? Fiquei até com vergonha quando percebi que a mãe, logo
atrás, já veio explicando para a filhinha que a bola não era dela, precisava
devolver. Senti vergonha, e imediatamente decidi que a bola ia ficar para a
garota. A menina veio em minha direção, com um sorriso, devolvendo a bola. Dava
para ver, no entanto, que estava decepcionada. Estava devolvendo algo que ela
queria. A mãe percebeu e fez vários gestos explicando para ela continuar
andando e me devolver o precioso achado. Foi aí que percebi que a mãe não falava, ela era
muda. Com certeza a menina entendia tudo e por isso seu coraçãozinho estava
partido entre obedecer e ficar com a
bola. A mãe então fez gestos mais firmes, deixando claro que não havia opção.
Resolvi falar e explicar que a garota poderia ficar com o brinquedo, que não
havia problema. A menina olhava para mim e para a mãe se enchendo de esperança.
A mãe fez então um gesto mostrando que era muda e olhou de novo para a
menina, insistindo com sua linguagem de sinais que a bola tinha de voltar para
o dono. Foi aí que apareceu um homem que, logo depois, eu percebi ser o pai da
criança. Ele deu um beijo nela, pegou a bola e estendeu-a para mim, fazendo
gestos que certamente indicavam que a menina não poderia ficar com a bola, que
aquilo estava errado. Era uma família de
mudos. A essa altura eu estava determinado a fazer com que a menina ficasse com
a bola de qualquer jeito. Fiz gestos e mais gestos, tentando explicar que eu
queria que a menina ficasse com o “troféu”. Os pais tentaram explicar algo com
as mãos e eu, com as minhas, fiz um gesto definitivo, que a bola era da menina
e ponto final. Ficou claro, os pais desistiram de dar a aula de “civilidade”
para a garota e agradeceram com sinais. Parecia uma família feliz e bonita.
Senti uma certa compaixão por serem mudos, imaginei as dificuldades que tinham
de passar o tempo todo. Cumprida minha missão, estava para ir embora. Mas, quando
me virei, escutei uma vozinha:
A menina falava, era a única da família que falava. Nós sempre estamos cometendo esse mesmo erro de presumir as coisas. Uma alegria muito grande me invadiu. Não era um milagre, nem nada assim. Apenas eu presumi algo que não era para ser presumido. Pensei de novo, como era bom que pelo menos a menina falasse. Na verdade aquilo era uma dádiva, era uma coisa muito especial. Um dom da natureza, um milagre da vida. Eu sei que falar é o normal, era o que deveria acontecer em condições normais. Mas naquele momento, naquelas circunstâncias, falar transformou-se numa coisa divina, um dom. Estava feliz e me despedi com gestos. Podia ver uma parte do rostinho da garota por trás da bola. Com uma das mãozinhas, sem soltar a preciosa bola, ela acenou e falou mais uma vez:
-Tchau, obrigado!
Naquele dia eu é que ganhei um presente: a menina que falava!
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À procura de Lucas (Flávio Cruz)
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