Tuesday, January 29, 2013

Santa Maria, ora pro nobis


Santa Maria, ora pro nobis

Por quem os sinos dobram?
Por idosos que hesitam em morrer?
Por doentes e pobres que lutam para sobreviver?
Por crianças, que por natureza, não devem sofrer?
Por condenados à morte, que por justiça divina ou humana, deveriam morrer?
Por quem e por que tocam agora os sinos?
Por jovens, que pela ordem cósmica, deveriam ainda viver.
Por jovens que, por estarem nas páginas iniciais do livro da vida,
tinham muito a percorrer...
Sim, os sinos tocam os dias, mas hoje é por esses jovens
que eles tocam, desolados e tristes...
E também porque, dentro dos corações daqueles que os amam, os sinos não tocam mais...
Santa Maria, ora pro nobis!






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Wednesday, January 16, 2013

O Destino de Andreas


O Destino de Andreas

Andreas já estava caminhando há um bom tempo. Ele havia perdido a noção das horas, mas com certeza elas passavam de três. O céu estava coberto de um azul quase impossível e o calor era acima do que uma pessoa normal pudesse aguentar.  A temperatura, ele podia sentir  mas a dor nas pernas por causa da caminhada, ele quase não sentia mais. O ar estava absolutamente, estupidamente, parado. A estrada se estendia reta numa linha que se perdia de vista. Até uma pequena altura podia se ver uma névoa seca que obstruia um pouco a visão. Ainda assim ele conseguia ver, minúscula, uma casa solitária na paisagem. Certamente a estrada dava lá, mas era impossível calcular a distância. O resto, um pouco acima do chão, era um vazio imenso tendo como fundo o anil do firmamento.
Andreas notou algo. Estranhamente, a casa que ele via na distância, estava agora ainda mais longe. Devia ser uma ilusão, pois muito  tempo se passara desde que ele notara a mesma muito mais próxima, com muita clareza. Talvez sua vista estivesse piorando, talvez a névoa estivesse mais espessa. A dor miraculosamente havia passado, apesar de seus passos agora estarem mais ligeiros. O suor do rosto também não estava mais lá, só uma quentura  estranha, seca, ainda resistia.
Andreas sabia, por alguma razão, que era importante chegar até a casa. Talvez fosse a sua casa. Talvez houvesse algum outro motivo. Ele não se lembrava, entretanto, nem de seu nome, nem do que fazia e muito menos de como chegara até ali. Isso não o incomodava. A única peocupação que tinha era chegar lá. Agora seria mais fácil. Não sentia nenhuma dor nas pernas, não sentia frio nem calor, nada doía.

Andreas tinha andado muito. A casa, às vezes, ficava próxima, às vezes desaparecia. Agora ele estava quase correndo. Estava com pressa mas não tinha angústia ou dor. A névoa, porém, estava cada vez mais espessa e o ar parecia ainda mais pesado. Sua preocupação era passar pela casa sem vê-la. Era sua única preocupação. Aquela névoa densa, era impossível ver qualquer coisa. Andreas mal via o chão, estava tudo branco. Mas estava bem, ele se sentia muito bem.

No dia seguinte, em San Antonio, Texas, os jornais noticiavam o desaparecimento de um avião pilotado pelo próprio dono, um cirurgião local, muito conhecido. O piloto sequer pedira por socorro, desaparecera do radar de repente, sem aviso. Quase 48 horas depois o aparelho foi encontrado completamente destruído no deserto de Chihuahuan. Entre as peças retorcidas encontraram o corpo do piloto. Segundo o médico legista, ele provavelmente viveu cerca de 10 ou 12 horas em estado de semi-consciência ali, preso, sem socorro. Havia sinais de que tentara sair. Mas estava fraco e os destroços o impediram.
Segundo um dos grandes jornais da capital, terminava ali, precoce e tragicamente a carreira de um grande cirurgião, o doutor Andreas Petrakis.

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Estranhas Histórias
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Monday, January 14, 2013

Domingo no Shopping , Sangue no Shopping


Domingo no Shopping , Sangue no Shopping
É vermelha!
Oi girando, girando
É vermelha!
Oi, girando, girando...
(Domingo no Parque / Gilberto Gil)

Antônio sabia que a Elisa tinha ido para sempre. Pior que isso, ela ia ficar por ali, mas, segundo o que ela disse, não o amava mais. Conversa fiada, ela nem sabia o que era amar. Ele sim sabia. Vai dizer que ela não sentia nada quando ele acariciava sua pele morena, enfiava seus dedos pelos seus cabelos sedosos? Ah, quando ele tocava sua pele suave...Podia jurar que ela suspirava e que seu sangue corria mais rápido nas veias. Como era bom. Aquele corpo quente da Elisa preso entre seus braços, o peito palpitando, aquela química no ar, era tudo uma coisa só. Sabe de uma coisa, era impossível viver sem aquilo. Era mais fácil ficar sem comer, sem dormir. Será que ela não entendia? Não ia dar certo. Ele precisava dela e ela precisava dele. Assim, coisa imprescindível, necessária, urgente, premente, permanente, sem jeito. Meu Deus, aquele olhar dengoso que ela fazia um pouco antes  do beijo que ele ia dar! Me diz, meu amigo, dá para viver sem isso? Não dá...
E ainda assim, sem mais nem menos, por um motivo tão insignificante que ele nem se lembra mais qual era, ela “se mandou”. Graças a Deus, até agora, ela não tinha arrumado ninguém. Certeza, ele estava na marcação. Só para você ter uma ideia de como o negócio era sério, ele até pediu férias no trabalho. Isso mesmo, para monitorar a Elisa. Para tentar recuperá-la. Mandou e-mails, tentou falar com ela e nada. Entretanto ele tinha certeza de que ela queria voltar. Certamente ela também sentia falta dos beijos, dos abraços, de outras coisas mais...Meu Deus como tudo era bom, tão gostoso. Ele era tão feliz. Por que ela foi fazer uma coisa dessas? Talvez a mãe dela? A viúva tinha uma preocupação tremenda com a filha e não desgostava dele, mas também não era uma entusiasta do namoro. Era namoro porque ela pediu para esperar. Para ele, teria sido noivado há muito tempo, agora já seriam casados.
Domingo à tarde, na mesma hora em que eles sairiam para namorar, se estivessem juntos, lá estava ele, dentro do carro, a uma certa distância, observando a casa de Elisa. Graças a Deus, até agora, ela não tinha saído. Se Deus quiser, ela ficaria em casa desta vez. Não gostava quando ela saía, tinha de ficar até a noite atrás dela, observando tudo, vendo o que ela fazia.
Antônio se distraiu um segundo e, quando percebeu, a Elisa estava entrando em um carro que havia parado em frente a sua casa. Imediatamente Antônio passou a seguir o veículo que partira rápido. Antônio estava ofegante, estava desesperado, o sangue, quente, subia à sua cabeça. Parece que ele sabia o que ia acontecer. Alguns minutos depois estacionaram no shopping. Antônio perdeu-os por alguns minutos. Circulou rapidamente pelas lojas, olhando cuidadosamente, tentando achar a ex-amada. Finalmente, de longe avistou-a na praça da alimentação e, desgraçadamente, ela estava acompanhada de um jovem alto, bonitão, todo sorridente.
Era impossível descrever o que se passava na mente do Antônio. Como um robô, ele foi se aproximando da mesa dos dois, que conversavam animadamente. Antônio sabia que, a partir daquele momente, ele não era ele. Algum outro ser comandava seu corpo, estava claro. O novo  namorado delicadamente beijou o lóbulo da orelha de sua querida Elisa, depois beijou sua fronte. Abraçou-a fortemente.
Deu um branco total na cabeça de Antônio. Vagamente podia se ouvir gente gritando, correndo, chorando. O barulho horrendo, porém, parecia vir de longe, muito longe. Depois disso, Antônio não viu nem ouviu mais nada.

No dia seguinte, estava em todos os jornais. Um casal havia sido assassinado a tiros na praça da alimentação do shopping. O atirador, um ex-namorado, tentou se matar a seguir. Ainda estava vivo no hospital, porém em coma, sem chance de recuperação. As fotos mostravam o sangue espalhado pelo chão, pela mesa, pelas cadeiras. Assunto em todos os lares, em todos os bares, na rua, na internet.
Foi assim que terminou mais um caso de paixão na cidade. Foi assim que Antônio resolveu seu caso de paixão não correspondida. Foi assim que morreu Antonio, o homem que não sabia amar.

Domingo no Parque - Gilberto Gil

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Sunday, January 13, 2013

A hora e a vez do Ronald



A hora e a vez do Ronald


Ronald estava irritadíssimo. Acabara de ouvir da companhia aérea que o voo 301 estava atrasado. Ao invés de sair às 6, sairia às 6:20. Problemas técnicos. Já era quase a hora do próximo, o 303. Era a terceira vez que isso estava acontecendo nos últimos dois meses. Lá no fundo, Ronald sabia que o que realmente o estava incomodando não era o atraso em si – afinal era pouco tempo – mas o fato de que era devido a “problemas técnicos”. No entanto, não admitiria isso para ninguém e nem para si mesmo. Tentou mudar a reserva para o 303, mas este estava lotadíssimo também. Paciência. Agora já estavam chamando para ocupar os assentos e lá se foi o Ronald, resignado.
Nova Iorque estava bonita naquela manhã e a aeronave levantou suave e após alguns minutos pairava majestosa na sua rota para o oeste. Ronald reviu alguns papeis em sua pasta e depois relaxou. Fechou os olhos, pensou no que ia fazer durante o dia e acabou adormecendo.
Não sei quanto tempo depois, Ronald acordou assustado. Ouvira um barulho de metal se rompendo. Pelo menos foi o que pensou. Olhou para os passageiros ao lado e notou que eles também estavam apavorados. Não teve tempo de comentar nada com ninguém, pois o avião começou a balançar desajeitadamente. Depois “caiu” durante um minuto, pelo menos, com bastante violência. Abriram-se vários compartimentos de bagagem e objetos caíram. As pessoas começaram a gritar. Desceram as máscaras de oxigênio. Daí, finalmente uma certa estabilidade. A seguir, a voz do comandante. Pedia calma, havia um “problema técnico”, que estava sendo solucionado, que todos ficassem sentados, etc. A conversa de sempre. Ronald estava em pânico. Não ouvia mais nada, não conseguia olhar nada. Ouviu, no entanto, um garoto falando para o pai que estava vendo fumaça sair da turbina. O pavor que se estampou em seu rosto era indescritível. Passou a respirar com dificuldade.
Alguns minutos se passaram e aparentemente o aparelho estava sob controle. Havia ruídos estranhos se você conseguisse prestar atenção. Não era o caso de Ronald. Ele estava branco, não ouvia nada. No entanto, conseguiu entender quando o comandante avisou que todos deveriam se preparar, pois iria tentar um pouso de emergência. A seguir, como se o destino estivesse esperando o aviso do piloto, o avião começou a trepidar de uma forma estrondosa. Parecia estar demontando. Foi demais para o nosso passageiro. Ele desmaiou. Talvez estivesse tendo um ataque cardíaco, não se sabe.
Quando Ronald acordou, estava assustadíssimo e pensou por uns instantes que talvez tivesse escapado com vida. Talvez tivesse sobrevivido. Arriscou  abrir os olhos e, devagar, olhou para os lados.
O que viu, naquelas circunstâncias, parecia uma cena do paraíso. Passageiros felizes, conversando, com aquela energia e excitação de quando os aviões pousam. O 737 estava taxiando lentamente em direção a um dos terminais. Imediatamente percebeu que havia sido um pesadelo. E que pesadelo, nunca sentira algo tão real. Tanto assim que estava jurando para si mesmo que jamais pegaria novamente o fatídico 301. Iria mais tarde, sairia na noite anterior, faria qualquer coisa. Aquele pesadelo fora tão real, que só poderia ser um aviso.

Pegou o táxi para o hotel como se tivesse sido ressuscitado. Sentia a vida entrar em seu corpo quando respirava.
Fez o check in no hotel, subiu para seu quarto com a bagabem de mão, a única que trouxera. Sentou-se na poltrona e relaxou um pouco antes de tomar a sua ducha. Viu o controle da tevê na mesinha ao lado, pegou-o e ligou o aparelho. Um filme antigo num canal, um programa de auditório em outro e, finalmente, um programa de notícias. Uma repórter transmitia ao vivo uma tragédia que acabara de acontecer nos arredores de Chicago. Podia se ver um rolo de fumaça ao fundo, carros de bombeiros, polícia. Ronald demorou um pouco para entender o que ela estava falando. Por isso estava lendo as legendas na parte de baixo da tela. O voo 301, da American, tinha terminado de maneira trágica. Havia caído em chamas pouco antes de pousar no aeroporto local. Provavelmente não havia sobreviventes. Ronald teve um sobressalto. Não podia ser, estavam cometendo um engano ridículo. O voo 301 era o seu, ele estava ali, são e salvo. Olhou outros canais de notícias. Confirmado, era o voo 301. Havia inclusive alguns comentários de que ele saíra com atraso de vinte minutos de Nova Iorque, que  tinha ficado retido por um falso alarme de problema técnico. O repórter informara que estavam tentando falar com um representante da companhia aérea para obter mais informações.
Ronald estava completamente atordoado, não conseguia entender. Daí, fez o óbvio, olhou a cópia de seu ticket e lá estava: ele havia voado no voo 303 que havia saído um pouco depois. Ronald tinnha certeza de que algo estava errado, Lembrava-se vividamente de ter tentado trocar a reserva e de que o avião – o voo 303-  estava lotado. Não entendia, talvez estivesse ficando louco, talvez estivesse com amnésia, paranóia, alguma dessas doenças. Não tinha com quem falar e não adiantaria, iriam achar que ele “não batia bem” ou estava querendo obter atenção, aproveitando-se da tragédia. Além disso, sabia que não iria conseguir nenhuma explicação.
Conforme o tempo foi passando, Ronald, aos poucos, foi tentando se convencer de que afinal tinha conseguido fazer a mudança para o 303. Guardou o ticket, na esperanca de um dia olhar e ver que o voo era o 301. De qualquer jeito, com qualquer explicação, tudo era muito estranho. Por que sonhara então?
O tempo cura tudo, não cura? Para poder viver em paz, ele tinha de dizer para si mesmo que conseguira mudar sua reserva para o voo 303 e, coincidentemente, tivera um pesadelo, ou uma premonição, qualquer coisa assim. Bem lá no fundo, entretanto, ele sabia que embarcara no voo 301 e que, de alguma forma, o destino o havia arrancado de um avião para o outro. Vendo sob um outro ângulo, era reconfortante, sua hora ainda não havia chegado. Ainda não era a hora e a vez de Ronald Simpson.

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Friday, January 11, 2013

A Grande Lição, mil anos depois


A Grande Lição, mil anos depois

Tarkus olhou pela janela de seu apartamento e repetiu para si mesmo que já era tempo de ministrar a “Grande Lição” para seu filho Sirak. Essa tradição já durava séculos e certamente era uma das coisas mais importantes, não só para a educacão dos jovens, como também para a reafirmação social da nova civilização. Além disso, Sirak estava mais do que preparado para o acontecimento. Era inteligente, curioso e interessado. Seu pai já o havia alertado para a ocasião e ele estava na expectativa. Todos os garotos de 12 anos esperavam por esse momento. Além de ser especial em si, era como um ritual de passagem e dava ao “noviço” uma série de direitos e privilégios.
Finalmente chegara o dia de Sirak. Seriam 7 horas de conversa com seu pai Tarkus. Essa era a “Grande Lição”. Era uma coisa de pai para filho e havia toda uma preparação. Comeriam só pratos leves e, pela primeira vez, ele poderia tomar uma bebida ligeiramente alcoólica. Ao meio-dia  sentaram-se junto a uma mesa da sala e Tarkus começou a sua fala:
-Sirak, meu filho, você vive num mundo maravilhoso agora, mas você não sabe como chegamos até aqui. Muita coisa aconteceu. Coisas que você acha absolutamente normais, são preciosas conquistas que nossos pais conseguiram com luta e sacrifício. Eu não quero assustar você com as coisas que vou contar.  O objetivo é apenas evitar que nossos filhos e filhos de nossos filhos cometam os mesmos erros de nossos antepassados mais distantes.Como disse, não quero assustar você, mas coisas horríveis, além da imaginação, aconteceram há séculos atrás. Sirak, você certamente sabe quantas pessoas há no mundo hoje, certo?
-Claro, meu pai.Cerca de 118.000.000 de habitantes espalhados nas 11 zonas habitacionais do planeta.
-Muito bem, isso mesmo. Você sabe também que esse número variou muito pouco nos últimos 200 anos.
-Sim, alguns milhares a mais ou a menos, conforme a década.
-Há 970 anos atrás, no ano 2000, você sabe quantas pessoas havia naTerra?
-Ainda não estudamos isso, meu pai.
-Eu sei. Essas coisas só se ensinam depois da “Grande Lição”. Pois bem, no final do século 20 havia cerca de 6 bilhões de pessoas no mundo.
Sirak olhou assustado. Havia uma grande interrogação em seu rosto. Parecia absurdo. Não poderia haver lugar para tanta gente...Pelo menos, não do jeito que a vida era agora.
-O que aconteceu?
-Ainda não, meu filho, nós vamos chegar lá. Antes, há outras coisas que quero explicar.Você já conhece cinco das onze zonas habitacionais. Você deve ter notado que os habitantes não são muito diferentes de nós. Quero dizer, a cor da pele, o tipo físico, enfim, tudo. Nos tempos antes do Grande Evento as pessoas eram diferentes, muito diferentes uma das outras, nas diversas partes do mundo. Havia pessoas completamente negras, outras vermelhas, brancas, e com outras tonalidades de cores.Os formatos do rosto e o tipo físico eram bem variados. Era o que eles chamavam de raça. Não havia harmonia como agora. Muitas vezes um ódio enorme crescia entre eles, gerando destruição, morte e  guerra.
Tarkus então mostrou filmes de pessoas falando estranhas línguas. Algumas lembravam o idioma que eles falavam agora.
Os olhos de Sirak estavam estatelados ao ver as fotos e imagens que seu pai mostrava. Parte delas estavam num grande livro, outras iam se sucedendo na tela do computador. Pessoas e roupas estranhas. Pessoas mutiladas.Violência e sangue. Se o objetivo de Tarkus era impressionar o filho, certamente ele estava conseguindo.Ele estava começando a ficar assustado ao entrar naquele reino até então desconhecido. Essa era a ideia da “Grande Lição”. Os principais fatos, histórias e imagens de antes do “Grande Evento” não estavam à disposição do público em geral e muito menos das crianças e jovens. O objetivo era não banalizar os horrores que aconteceram na segunda metade do século vinte e começo do vinte e um. A descrição do “Grande Evento”, o que realmente acontecera, suas consequências, só eram revelados nesse dia especial. O mistério envolvendo este costume era muito importante na formação de todos os humanos.
Durante quase quatro horas Tarkus relatou as barbaridades ocorridas de 1900 a 2030, data do “Grande Evento”. Passou pelas duas grandes guerras mundiais, pelo holocausto, outras guerras, fanatismo, terrorismo, injustiça social, fome...Falou também das coisas boas: a ida do homem à Lua, do avanço científico e tecnológico, do controle das pestes, do avanço da medicina, etc. Explicou como era o fanatismo religioso que levava as pessoas à destruição de seus semelhantes. Falou do ódio de nações inteiras contra outras, da escravidão que alguns impunham a outros seres humanos, às mulheres. Sirak mal podia acreditar no que estava ouvindo. Ele sabia que as revelações da “Grande Llição”  seriam chocantes, mas não imaginava quanto.

Ele sentiu por alguns momentos como se uma nuvem negra estivesse invadindo seu cérebro, sua mente, o mundo em que vivia. A civilização atual era extraordinária, embora em alguns aspectos pudesse parecer extremamente controladora. No entanto, ninguém sentia ódio. A religião havia sido completamente banida, embora houvesse a noção de Deus, de um Criador. As pessoas podiam falar, escrever sobre a maneira como viam a criação, mas não podiam formar religião, cultos ou seitas em volta de suas crenças.
Logo depois do Grande Evento, os poucos seres humanos que restaram, começaram a formar famílias, juntando raças completamente diferentes. A princípio era praticamente uma necessidade. Depois virou um programa de governo. Quase mil anos depois, tinham uma raça única sem religiões ligadas a elas. Isso, por si só, reduzia enormemente a possibilidade de conflitos. A língua era uma só, uma especie de mistura do antigos idioma Inglês com línguas latinas e alguns elementos de línguas asiáticas. O governo que se formou logo após a grande tragédia resolveu eliminar definitivamente tudo que pudesse se relacionar ao passado e ao horror relaionado a ele.
Depois de um silêncio prolongado. Sirak perguntou:
- Essas pessoas todas, quero dizer, nossos antepassados, eles eram mais avançados que nós?
-Quando tudo aconteceu, ficou pouco da imensa tecnologia que eles tinham. Os sobreviventes não chegavam a dois milhões de seres espalhados pelo planeta. Felizmente havia grandes inteligências e grandes cérebros entre eles. Ainda assim, foram quase mil anos para se chegar ao mesmo nível em que a humanidade estava naquele fatídico mês de 2030.
-Pai, o senhor está falando agora do “Grande Evento”?
-Sim, meu filho, é disso que estou falando.
Diante da cara de interrogação de Sirak, Tarkus continuou:
-Foi no mês de fevereiro de 2030. A tensão entre os países islâmicos e as grandes potências europeias e Estados Unidos estava chegando a um ponto irrecuperável. A China e a Coreia do Norte estavam com problemas econômicos insuperáveis depois da grande pressão americana para recuperar sua hegemonia. Havia problemas tão grandes e tão graves que os menores, como ataques cibernéticos e terrorismo, haviam passado para um segundo plano. Foi aí que a tudo começou. Aproveitando-se dessa confusão total, terroristas se juntaram a “hackers” e num mesmo dia atacaram todas as redes mundiais de comunicação de ambos os lados. O ataque ciebernético foi tão volumoso e tão poderoso que os governos europeus e o americano resolveram reagir em conjunto. Era sabido que os ataques desse tipo haviam sido  patrocinados pela Coreia e pela China. Lançaram ataques massivos contra eles e alguns países árabes. Ao mesmo tempo estavam acontecendo atentados terroristas no mundo inteiro.
Foi um mês de caos. Foi usado praticamente todo o arsenal atômico que restara dos acordos de desarmamento entre os anos 2018 e 2027. Incêndios monstruosos, ataques nucleares, armas químicas, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. A capacidade de socorro era inexistente. Uma guerra bacteriológica de abrangência mundial foi iniciada como último recurso para parar o conflito mundial. Foi efetiva no sentido de que realmente liquidou o pouco que havia sobrado de todas as partes envolvidas naquela luta insana.
Foram décadas até que os sobreviventes começaram a se juntar e recolher o que havia sobrado do avanço tecnológico da raça humana. Quase cinquenta anos mais tarde, depois de muito caos, começaram a se formar governos isolados. Logo eles começaram a se encontrar, fazer reuniões, com receio de se recomeçar uma nova fase de retaliação entre os sobreviventes. Tiveram sucesso depois de quase dois séculos. Negociaram coisas drásticas. Todos os tipos de armas foram proibidos. Encontros religiosos também. Organizaram melhor uma mistura de línguas que havia se formado anteriormente e a impuseram como oficial. Incentivaram casamentos e uniões familiares entre culturas diferentes para se formar uma “raça” universal. Cultivaram nas crianças, desde a mais tenra idade, o medo de conflito e a vontade de ser “igual” aos outros. Dividiram a Terra em onze “zonas habitacionais” e fizeram tudo que foi possível para mantê-las semelhantes. Era incentivada a viagem e contato entre as diversas zonas para evitar qualquer tipo de animosidade ou formação de “nacionalidade”.
Finalmente para se dar um ar de misticismo e respeito à paz, criou-se o dia da “Grande Lição”. Antes de começar a adolescência, todo ser humano passaria por essa espécie de ritual, onde aprenderia e tentaria conservar para sempre a ideia fundamental da harmonia.

Essa nova raça havia renunciado a coisas básicas, partes essenciais das aspirações de um ser humano, em prol de uma vida sem guerras, sem animosidade. Além disso havia perdido quase mil anos de evolução científica e tecnológica. Estavam no ano 2970, era o mês de fevereiro. Tarkus e seu filho Sirak deram-se as mãos e ficaram em silêncio, meditando, para encerrar a “Grande Lição”. Ela terminava ali, mas a luta pela paz definitiva continuava lá fora, a apenas alguns anos do novo milênio que iria nascer. Pela janela do apartamento podia-se ver um avião, bastante parecido com as naves de dez séculos atrás, cruzando o azul quase escuro do céu, naquele lindo começo de noite. Havia poucos deles agora. Carros também semelhantes aos modelos do início do século 21 trafegavam na avenida lá embaixo. Ao redor do conjunto habitacional havia muito verde, muito espaço. A tranquilidade e o sossego podiam ser respirados no ar.
Finalmente o homem havia conseguido a paz no mundo.Custou quase seis bilhões de vidas e quase mil anos de planejamento e reconstrução. Mas valeu a pena.Certamente Tarkus sabia disso. Podia-se ler em seu rosto, brilhante e sereno, enquanto ele encerrava a cerimônia da “Grande Lição” e afagava a cabeça de seu filho Sirak, um novo príncipe dos novos tempos, um novo príncipe da paz.

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Thursday, January 10, 2013

Ontem , Hoje e Sempre


Ontem , Hoje e Sempre

(Sonhos de uma noite de verão, do Herrera)

Ja falei antes do meu amigo Herrera. Além de ele ser fanático por física quântica, ele adora filmes de ficção científica a ponto de achar que pode escrever “scripts”. Volta e meia lá vem ele com um novo roteiro para eu apreciar. Se você realmente tiver bastante imaginação, e conseguir transformar suas palavras em cenas vivas, pode ser que você consiga ver passar  um belo filme  em sua mente. A última grande inspiração do Herrera foi sobre uma época no futuro, cerca de cem anos a frente...Claro,essa civilização está muito avançada, viajando pelo espaço, os mais incríveis artefatos, etc., etc...Mas o nosso enredo é sobre algo diferente, algo que uma pequena empresa de pesquisa genética acabara de descobrir. Os cientistas foram até o fundo na pesquisa de subpartículas no corpo humano ( Herrera tem paixão pelas mesmas) e conseguiram obter de uma delas, informações, em cada indivíduo, da data em que o mesmo vai morrer. Porque, você sabe (diz o Herrera), na verdade todo o tempo, infinito, existe ao mesmo tempo. 
Tudo está acontecendo agora, de uma só vez, presente, passado e futuro. Nós é que só conseguimos perceber uma sequência de cada vez, o que chamamos de presente. Divagações à parte, os mágicos, quero dizer, cientistas, conseguiram detectar esta informação, uma vez que tudo que  aconteceu e vai acontecer, todas informações sobre o tempo estão gravadas, lá dentro, bem na profundidade da informação genética. 
Então, diz Herrera, cria-se a trama, o ponto dramático necessário, essencial, de uma história: as forças dirigentes, as pessoas que estão no poder, não querem esta informação divulgada, vai causar pânico e ao mesmo tempo total desmotivação. Mas, na verdade, o que eles querem mesmo é  poder ter mais controle e  ter esta tecnologia de obtenção de informação genética em suas mãos. Já pensou, saber, com antecedência, a data em que cada ser, incluindo dirigentes, políticos, cientistas, etc., etc., vai morrer? Além do mais, será que dá para mudar esta data? É aí, diz, todo excitado, o meu amigo Herrera, que está o grande "click". Sem poder reagir muito às pressões dos poderosos, os cientistas são obrigados a revelar a tecnologia admirável que haviam descoberto e desenvolvido. Claro, eles são convidados a trabalhar junto com a classe dominante, que quer ainda mais: querem obter uma forma de “controlar” as datas de morte dos indivíduos. O objetivo é óbvio: viver para sempre e encurtar a vida dos inimigos. Herrera sabe que eu não gosto de ficção científica que “estica” muito os limites do bom senso, mesmo sendo ficção. Então, explica, cuidadosamente, que vai haver verossimilhança, o seu roteiro vai ter lógica, só é necessário um pouco de imaginação. Então o filme entra na parte climática. Finalmente, a combinação de recursos financeiros infindáveis do poder,  mais  segredos tecnológicos do próprio governo que o grupo de pesquisas desconhecia, tudo junto, leva à grande descoberta: sim, é possível alterar a data da morte, que chamavam então de “termination”. Como sempre, primeiramente experimentaram com os pobres animaizinhos. Tudo certo, é possível...Muda-se o código genético, altera-se a data, antecipa-se o momento da morte ou prolonga-se por um tempo indeterminado. O chefe do departamento do governo encarregado do projeto resolve ser o primeiro a experimentar.  Sua data para “morrer”esta va marcada para 17 anos mais tarde. Ele tinha 103 na época, pois o índice médio de vida tinha subido muito nas últimas décadas. Ainda assim morrer dali a a 17 anos, era morrer cedo. Ele alterou a data para dali a 50 anos. A seguir outros do departamento e mais alguns do grupo de cientistas fizeram o mesmo com alguma pequena diferença entre um e outro. Dali a um mês iriam fazer outros testes para verificar se a data estava realmente alterada. Enquanto isso o chefe do departamento de pesquisa estava muito preocupado com algo. Revela o segredo para um dos colegas. Ambos concordam que não devem falar para mais ninguém. Ele havia decoberto que, uma vez alterada a data, era praticamente impossível verificar se havia dado certo. Os procedimentos para tal implicavam também em  manobras perigosíssimas dentro da física quântica e da genética. Havia ainda outras coisas muito mais sérias envolvidas. Estes segredos não são passados para os outros personagens. O público (que vai assistir ao filme) também não fica sabendo...Até que chega o momento em que o chefe do projeto quer fazer o teste para verificar se sua data dentro de seu sistema quântico, se assim podemos chamar, havia efetivamente sido alterado. Apesar da oposição radical do pesquisador principal por todos os motivos explicados anteriormente, os técnicos começam os preparativos para o grande teste. O “paciente” é  introduzido no grande aparelho. Luzes, vibrações....Clarão...As pessoas começam a desparecer em volta do aparelho....Música sinistra...Tudo branco...parece gelo...A personagem que estava na máquina aparece andando nu no gelo ao longe...a câmara vai se distanciando e vai mostarndo a terra do alto: uma grande bola coberta de gelo.
Aparentemente os cientistas haviam alterado, com sua máquina, alguma coisa no espaço-tempo, nas dimensões do universo e nosso “paciente”foi transportado para milhões de anos para frente...quando a terra tinha se tornado uma imensa bola de gelo.
Herrera estava suando de emoção, “vivendo seu filme” quando olhou para mim. Não pude segurar um sorriso meio cínico...Acho que Herrera não gostou muito da minha crítica indireta ao filme...Mas pensando bem até que o enredo não era tão mau...Bastava um excelente diretor, uns bons milhões de dólares e talvez...uma equipe de consultores...de física quântica!

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Histórias do Futuro

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Monday, January 7, 2013

De volta para a infância


De volta para a infância

O “ seu” Anastácio nem parecia ter 78 anos. Era cheio de vida. Sorria para todos, brincava, contava piadas. Se você perguntasse a idade ele, iria responder com orgulho: “quase oitenta”. Nunca estava parado. Tinha tarefas todos os dias, cada hora inventava uma coisa nova para fazer. Algo que ele nunca deixava de lado era a caminhada da tarde. Colocava seu chapéu, saía pela porta da frente, abria o portão, virava à direita e partia. Fazia quase sempre o mesmo roteiro. Com pequenos intervalos, tinha vivido ali praticamente toda sua vida, e portanto, como ele mesmo se gabava, “conhecia aquilo ali como a palma de sua mão”. Naquela tarde de outono não foi diferente, começou a percorrer os dez blocos de seu bairro. Na volta costumava  fazer um roteiro diferente “porque era bom variar”.
O  “seu” Anastácio ia cumprimentando todos pelas ruas, acenando, às vezes tirando o chapéu. Era tão assíduo que servia de referência para muita gente: antes e depois de “seu” Anastácio passar. Depois de andar uns cinco minutos, no entanto, sentiu uma pequena tontura. Achou estranho pois até aquele momento seu dia tinha sido até melhor do que o normal. Estendeu um dos braços e com ele apoiou o corpo contra um poste. Após alguns segundos sentiu-se melhor, e como – tinha me esquecido de dizer – ele era um pouco teimoso, continuou a caminhar. Logo a seguir, começou a se lembrar de uma cena de infância. Para ser mais exato, quando viu a sorveteria da esquina. Era a mesma, com pequenas modificações, de muitas décadas atrás.Veio à sua mente uma cena muito comum. Eles e seus amigos comprando sorvete, depois virando à esquerda numa rua estreita que dava para uma praça, onde agora é o prédio da prefeitura. Ali ficavam horas, às vezes, fazendo todo tipo de brincadeira, principalmente nas férias escolares. Esqueciam-se do tempo. Era muito comum uma das mães, às vezes o pai ou um irmão mais velho, aparecer lá, furioso, porque a hora de estar em casa tinha passado.
Não sei o que deu na cabeça do “seu” Anastácio, que ele resolveu fazer o roteiro da infância. Ficou assustado quando viu o edifício municipal à sua frente. Atrapalhado, tentou achar a praça que não mais existia. Depois desistiu e começou a andar a esmo pelas ruas. Ele não via o que as outras pessoas viam, ele via tudo como era no passado. Não pense que ele estava desesperado ou coisa assim. Estava feliz em voltar àquela época. Viu rostos conhecidos, acenava para todos, até para quem já havia morrido, pois muitas das pessoas que via, já não existiam mais.

Lá em casa, todo mundo preocupado. O “seu” Anastácio nunca fazia isso. Desaparecer não era coisa dele. Depois que passou uma hora além do normal, sua esposa junto com seu filho mais velho, saíram de carro à sua procura. Reviraram o roteiro que ele fazia umas cinco vezes, pararam em diversos lugares, perguntaram e...nada. Pensando no pior, voltaram para casa. Começaram os telefonemas, esperançosos, pois a cidade era pequena, alguém teria de dar uma notícia. Após algumas chamadas já obtiveram algum resultado. Na Santa Casa de Misericórdia, estava um senhor que a polícia havia achado deitado num banco. Não conseguiam identificá-lo pois falava coisas incoerentes e aparentemente não se lembrava de nada. Com o coração em sobressalto voaram até o local. Após falar com as enfermeiras foram até o quarto onde estava o “seu” Anastácio. Ele recebeu a todos com um grande sorriso. Entretanto, como já haviam informado, ele só falava coisas incoerentes.
Levaram o “seu” Anastácio para diversos médicos, inclusive em outras cidades. Ele não tinha nada no coração ou em outros órgãos. O que estava acontecendo era que ele não estava mais se lembrando de coisas recentes. Melhor dizendo, só se lembrava de um passado distante, mais precisamente de sua infância. As coisas incoerentes que ele falava eram isso: fatos de sua meninice. Aparentemente não havia cura.
Foi uma tristeza daquelas. Todo mundo chorando nos cantos. O “seu” Anastácio já estava de volta em casa e, como os especialistas haviam dito, ele não se lembrava de nada e seu estado era o mesmo. Todas as pessoas intímas sentiam como se ele tivesse partido.
O sorriso continuava, agora até mais frequente. Era um pouco diferente, no entanto. Era um sorriso infantil. Podia se ver claramente que sua mente estava cheia de lembranças e atividade. Todos sabiam que ele tinha tido uma infância feliz. Às vezes seu rosto se iluminava, outras vezes se enchia de surpresa e satisfação. Todos o queriam “de volta”. Por outro lado, bem lá no fundo, sabiam que ele estava cheio de alegria. Não é isso que importa? Afinal o que realmente conta é o que a gente sente por dentro. Por um truque do destino, o “seu” Anastácio estava preso, para o resto da vida, dentro da criança que estava dentro dele.

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Essa vida da gente

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Friday, January 4, 2013

A casa da praia


A casa da  praia

Dar aula de história era sua paixão. Adorava  mergulhar nas páginas do passado, entender o porquê  e as motivações dos seres humanos ao longo das épocas, penetrar nos segredos e mistérios dos fatos. Como todo professor, às vezes se frustrava com a falta de interesse de alguns de seus alunos, mas isso não diminuía seu entusiasmo.Viera para Botucatu há dez anos atrás e há nove lecionava em uma escola estadual. Era solteira e morava com sua irmã viúva com a qual dividia o aluguel de uma pequena casa.  As duas se davam muito bem e estavam sempre presentes quando uma precisava da outra.
Maria Clara havia pedido ajuda apara sua irmã para o que estava acontecendo. Ela estava tendo uma espécie de alucinação.Via-se numa casa de praia, sentada na varanda olhando para o mar. Podia sentir a brisa roçando seu rosto e podia sentir o cheiro gostoso que ela trazia. Via pessoas andando na areia, conversando.Começava de repente, sem nenhuma causa aparente e poderia durar minutos ou horas. O que havia de diferente, porém, era o incrível realismo da situação. Não havia como ela distinguir entre a realidade que estava vivendo e as tais “alucinações”. Para ela, ambas eram absoluta e absurdamente reais. Quando ela “voltava”, nenhum segundo havia se passado. Lá estava ela retomando sua primeira realidade como se nada tivesse acontecido. Quem quer que estivesse com ela não notava nada. Se estivesse prestando muita atenção talvez, por uma fração de segundo, conseguisse notar uma pequena hesitação em seu rosto.
Fernanda não sabia o que fazer para ajudar a irmã. Ela mesma ainda estava tentando se recuperar da dor que sofrera pela morte do marido. Arrumou dois psiquiatras, tentou marcar consulta para a “Clarinha”como ela a chamava carinhosamente. Maria Clara se recusava veementemente a ver um médico. Em primeiro lugar tinha medo de ser tratada como “louca” e com um monte de remédios fortíssimos. Ela tinha ouvido muitas histórias a respeito. Em segundo lugar, ela tinha certeza de que não era problema médico. Ela desconfiava de algo no plano espiritual ou até mesmo no plano da ciência, algo que ainda não tivesse explicação.
Fernanda não se conformava com a teimosia da irmã. Esta, por sua vez, continuava a ter suas “fugas” para a outra realidade. A sua segunda vida tinha evoluído. Agora sua irmã Fernanda participava também. Estava lá para ajudá-la. Maria Clara estava se recuperando de algum acidente, agora ela sabia disso. Tinha saído de Botucatu e estava numa praia de Maceió. Os detalhes dessa segunda vida eram extremamente vívidos. Ela podia descrever cada milímetro da toalha da mesa, do tecido que cobria a cadeira da varanda, as falhas na parede da sala, tudo.Quando a cena “terminava”, ela  se via repentinamente na exata mesma posição em que havia parado na sua “primeira realidade”. Era, como ela mesma dizia, uma experiência surrealista.
Pela primeira vez em meses, Maria Clara tinha passado uma semana inteira sem as tais alucinações. As férias escolares estavam se aproximando e ela começava a se animar com a possibilidade de estar “curada”. Era uma linda tarde de quarta-feira. Clara havia dado algumas aulas de manhã e como tinha a tarde livre,  pegou seu carro para fazer umas compras. Acelerou um pouco na avenida pois percebeu que estava rodando muita lentamente e já havia gente buzinando. Assim que aumentou a velocidade, percebeu que logo adiante, na pista contrária, um carro começava a ficar desgovernado. Logo a seguir, atravessou a pista e foi em direção a seu  carro.  A última coisa que ela viu foi o azul escuro do teto do veículo que estava capotando em cima dela. Ambulância, hospital.
Já fazia quase um mês que Maria Clara estava em coma. Fernanda ia vê-la todos os dias. Naquela manhã, quando entrava no hospital, passou pela sua mente a ideia de que talvez nunca mais pudesse conversar novamente com sua irmã. Por isso foi uma total surpresa quando, um pouco antes de chegar ao seu quarto, uma enfermeira veio sorridente encontrá-la, dizendo:
-Ela acordou, ela acordou! Hoje de manhã, às seis e trinta!
Fernanda teve de esperar quase duas horas até que pudesse entrar. Os médicos estavam fazendo exames, testes. Três dias depois voltou para casa. Tudo estaria perfeito se não fosse pelo fato de que sua memória não era a mesma. Havia muita coisa de que ela não se lembrava. O médico do hospital acreditava que ela voltaria ao normal. Era necessária muita paciência. Clara era tudo que restara de família para Fernanda e paciência era o que não iria faltar. Não havia muito a fazer senão esperar, tomar remédios todos os dias e fazer exames a cada 15.
Um amigo de Fernanda um dia sugeriu a ela que talvez fosse bom para as duas mudar um pouco de paisagem, respirar novos ares. Afinal as duas haviam passado por tempos difíceis. Ofereceu sua casa, que não estava usando, numa praia do Nordeste. Fernanda falou com o médico, que não se opôs, comprou as passagens e lá se foram as duas para suas “férias”. A casa  era linda e confortável. Instalaram-se, saíram para fazer umas compras e dormiram lá a primeira noite. Na manhã seguinte, tomaram um belo de um café e sentaram-se na varanda.
De repente Maria Clara começou a falar para a irmã:
-Fernanda, agora eu entendo tudo. Esta é a mesma casa das minhas “alucinações”. Detalhe por detalhe. Posso dizer para você tudo que está no quintal lá atrás. Você pode ir lá e conferir.
Fernanda sentiu um calafrio. Era verdade, ela também começou a se lembrar das descrições que Clara fazia antes do acidente.
-Você está vendo aquele senhor de camisa amarela passeando na praia? Eu conversei com ele diversas vezes. Ele é aposentado agora mas  vivia no Rio de Janeiro. Tem dois filhos casados e três netos. Sua esposa morreu no ano passado. Seu nome é Alfredo. Alfredo Martins.
Fernanda estava chorando. Ela também se lembrava do senhor Alfredo. Maria Clara falara dele inúmeras vezes.
Embora de uma maneira misteriosa e inexplicável, as coisas ficavam claras agora. As duas “realidades” de Maria Clara por fim se encontraram.

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Wednesday, January 2, 2013

Filhos de ninguém






Filhos de ninguém


Que olhos são esses, tristes, sombrios, perdidos no vazio do ar? Que rosto é esse, desolado, sujo, molhado por lágrimas amargas? Que corpo é esse, franzino, disforme, sem jeito? Ainda corre sangue nessas veias? Ainda há sopro de vida nessas almas? Ainda há ar nesses pulmões doentios? Esperança? Um pouco, só um pouco, talvez? Há um resto de vida dentro desse esqueleto que insiste em aparecer sob a pele?
Que olhos são esses que insistem em procurar o impossível de se encontrar? Que olham para o nada, pois o nada é tudo que têm? Nada no passado, nada agora e nada no futuro também.  Talvez o inesperado de um milagre seja o que mantem a vida? Uma luz, um pedaço de pão, a mão estendida? É isso que esperam?

Não sei o que ainda possam talvez esperar. Mas eu sei que olhos são esses. O olhar que vimos tantas vezes nos jornais, nos filmes, na televisão, eu sei muito bem de quem são. São das crianças pobres, abandonadas por todo o lado: na imensidão da África, na Ásia, em países civilizados também. Estão escondidas em ruas das cidades grandes, nos bairros pobres, nas favelas, nas esquinas...Esses garotos são nossos filhos também, que, como civilização, resolvemos abandonar, desconhecer. Sim, somos todos pais desses filhos. A mãe é a insensatez, a frieza, a ganância e a indiferença de nossa sociedade. Nem mais sentimos  vergonha de deixá-los por aí. Nem sequer os consideramos nossos filhos. São filhos de outrem, são filhos de ninguém...Um dia, não se iludam, eles vão ser nossos algozes, vão ser nossos carrascos. Vão ser os bandidos que nos assaltam, que apertam o gatilho das armas que nos matam. E daí, vamos enfim prestar atenção. Vamos odiar com ódio justo os facínoras, os que um dia foram os filhos da rua, os filhos do mundo, os filhos de não sei quem...

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