Tuesday, March 31, 2015

Carroças sem cavalo e luzes muito brancas

Carroças sem cavalo e luzes muito brancas



Justina olhava com tristeza para sua filha. Ela fora sempre assim, tímida, mirrada e parecia perdida no mundo. Já tinha consultado médicos, feito exames, mas ela não tinha nenhuma doença conhecida. Justina era viúva e sua grande missão na vida era cuidar da sua pequena Janete. Na verdade, ela não era tão pequena assim. Tinha quase 22 anos quando, naquela tarde de primavera do ano de 1998, chegaram na pequena cidade do interior. A mãe tinha tentado por muitos anos viver em São Paulo. Achou que vivendo em uma grande cidade, talvez sua filha desabrochasse para o mundo. Nada. Foi ficando mais e mais triste e recolhida. Certa vez Justina até recorreu a uma dessas videntes, que falou um monte de bobagens. Nunca mais voltaram lá. Imagina, aquela mulher doida  tinha falado que sua filha estava presa num passado distante e que a angústia dela era pelo fato de viver em dois mundos. Justina não acreditava em nada dessas coisas. Só foi lá depois de ter tentado tudo, até um psicólogo, para sempre ter a mesma resposta: que ela não tinha nenhuma doença aparente. Lá dentro de seu coração, Justina sabia que algo não estava bem.
A mudança de uma metrópole para uma pequena comunidade, pelo menos no começo, estava sendo boa para as duas. A mãe conseguira um trabalho à noite, o que permitia passar boa parte do dia com a filha. Janete continuava a mesma em quase tudo, porém parecia um pouco menos angustiada. A confusão de São Paulo definitivamente não lhe fazia bem. Até mesmo aqueles sonhos constantes que ela tinha, diminuíram. Ela sonhava sempre com casas antigas, ruas antigas, ela e a mãe andando à toa por uma cidade que ela não conhecia. Vestiam roupas estranhas e falavam uma língua também estranha.
Bem quando as esperanças de Justina de ter uma vida quase normal estavam aumentando, houve um acidente doméstico com a Janete. Estava mexendo com uma faca quando fez um corte profundo e longo na palma da mão esquerda. Ainda bem que a Justina estava em casa. Pediu ajuda para um vizinho que tinha carro e foram até o pequeno hospital da cidade. Ela foi atendida imediatamente e colocada numa mesa de cirurgia. Tinham de suturar aquela mão, pois havia risco de hemorragia. Logo depois de lhe aplicarem anestesia, porém, ela entrou em coma profundo. A mãe não sabia que ela era alérgica.
Era outono na Europa e corria o ano de 1376.  Justine já estava caminhando há mais de 9 horas para chegar até os arredores de Besançon. Viviam antes em Paris, mas decidiram mudar-se para lá. Jeannette, sua filha, não se dera bem na cidade grande, estava cada vez mais estranha. A decisão definitiva veio quando uma de suas vizinhas começou a espalhar para todos da vizinhança que Jeannette era uma bruxa. Com medo de retaliação, não tiveram outra opção.
Além disso, Jeannette, que agora já tinha 22 anos, tinha sonhos cada vez mais estranhos. Quando dormia, via objetos que não existiam, e as pessoas falavam uma língua estranha. Na semana passada, sonhara três vezes que tinha cortado sua mão e que a levaram para um lugar grande com luzes fortes. Havia pessoas vestidas de branco, que mexiam em seu corpo. Falavam coisas estranhas, que ela não entendia. Tinham costurado sua mão. O mais esquisito de tudo, porém, era que a levaram numa carroça que andava por si mesma, sem ajuda de animais. Nesses seus sonhos, havia uma mulher que cuidava dela, que a ajudava.
Aí estava mais uma razão para Justine vir para os arredores de Besançon. Havia uma mulher que diziam arrancar esses maus espíritos das pessoas. Era a última esperança de Justine para sua filha Jeannette.

Estavam cansadas e famintas. Felizmente foram atendidas quando pediram comida para alguém que morava na beira da estrada. Sentaram-se à mesa. De repente Jeannette deu grito. O sangue jorrava de sua mão. Havia se cortado com uma faca. Enrolaram sua mão em panos, mas ela já estava ficando branca. Desmaiou. Acordou levemente e começou a falar. Falava em carroças sem cavalos, luzes brancas muito fortes, homens vestidos de branco que costuravam sua mão. E eles falavam uma língua muito estranha...


 oooooOOOooooo
À procura de Lucas


Para adquirir este livro no Brasil 

Clique aqui  ( e-book: R$ 7,32 / impresso: R$ 27,47)



Para adquirir este livro nos Estados Unidos 



Clique aqui  ( e-book:  $4.80  impresso:   $11.61)

Sunday, March 29, 2015

Deus nos livre dos loucos de hoje em dia


Deus nos livre dos loucos de hoje em dia

Meus olhos infantis não entendiam aquele homem e seus gestos estranhos. Olhava com aquele olhar perdido para algum ponto que só ele via. Mexia lentamente com os dedos, como se eles fossem as asas de um pássaro e murmurava em tom de confidência: pomba branca, pomba branca. Tinha um sorriso infantil, inocente.
Isso é tudo que me lembro dele, do meu tio. Ele tinha uma doença mental e minha santa mãe cuidava dele, porque ele era irmão de meu pai e ela sentia que era seu dever. Se não fosse, ela cuidaria do mesmo jeito.
Para mim, isso era loucura: olhar um olhar vago, mexer os dedos e imaginar uma pomba branca. E é por isso que não entendo os loucos de hoje em dia. Desvairados, armados, matam dezenas de pessoas em atos de fúria. Enchem-se bombas e explodem, matando-se e matando os inocentes que passam. E há uma grande variedade deles. Um verdadeiro circo de horrores.
Este último, então, vindo diretamente da Europa, símbolo da civilização, foi demais. Arremeteu o avião em direção às duras rochas das montanhas, matando 150 passageiros. Estávamos comentando entre amigos que ele é o que se chama de suicida-homicida. Falando assim, parece até que há um certo equilíbrio. O problema é que ele é 150 vezes homicida e somente uma vez suicida. Matemática macabra.

O que aconteceu com aqueles louquinhos simpáticos que não prejudicavam ninguém? Acho que não existem mais. Tudo muda. Estamos num mundo doido de verdade. Deus nos livre dos loucos de hoje em dia.

ooooooOOO0OOOooooo


Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------

Friday, March 27, 2015

O Rei Ricardo III está aguardando no estacionamento




O Rei Ricardo III está aguardando no estacionamento

O mundo mudou. Há poucos reis agora e alguns nem mandam mais, só são figurativos. Outros são reis de quase nada. Reinados de pequenos domínios, muitas vezes menores que algumas cidades do interior. Mas antes não era assim. Rei era algo muito, muito especial. Sem querer abusar das palavras, era real, “majestoso”. Se fosse da Inglaterra, então, bota majestade aí. Esses monarcas tinham realmente jeitão para o que faziam. Promoviam guerras, lutavam, mandavam, executavam, enfim, reinavam. Só agora eu entendo porque minha mãe me falava, quando pequeno, “para não ficar reinando”. Houve um que até ousou enfrentar o papa porque ele não autorizou seu divórcio. Não teve dúvida, fez uma outra religião. Ele mesmo, o Henrique VIII. Havia tanto jeito para ele resolver o problema sem falar com o pontífice mas ele não quis saber. O rei de Portugal poderia simplesmente explicar para ele o que era o “jeitinho”, pois, afinal de contas, foi ele que explicou para nós. Mas rei que é rei, usa sua majestade. Mas o dito cujo de quem quero falar agora é o Ricardo III. Valente, lutou para defender sua coroa contra usurpadores. Ficou todo machucado, dizem até que ficou corcunda. Não deu sorte e acabou perdendo. Aí, você sabe, inventaram um monte de mentiras a seu respeito, sabe como é quando você é o derrotado... Posso garantir, entretanto, que ele era um verdadeiro nobre. Mas como você sabe, “rei morto, rei posto”, acho que é assim... Ele morreu em combate e foi enterrado em uma igreja. Esqueceram dele pois a nova linha de monarcas não tinha interesse nenhum em preservar sua memória. Tanto esqueceram, que um dia demoliram a igreja em que estava enterrado e nem se lembraram de exumar seu corpo. Eu acho isto um desrespeito, mas como a gente não pode se meter com essa gente, o que vai se fazer? E lá ficou o Ricardo III, enterrado, sem ninguém saber, debaixo do antigo piso. Naquela época não havia automóvel, afinal de contas são mais de 500 anos, mas séculos depois, fizeram lá um estacionamento. E é por isso que eu disse que o rei está aguardando no estacionamento. Claro que ele não está lá estacionado, está apenas parado, esperando. Quer dizer, estava. Agora, finalmente o descobriram. Ainda tem as costas tortas, coisa que a morte não curou. Tem também uns ossos machucados e tudo mais. Isso prova que ele lutou e foi um herói. Mesmo assim alguém poderia dizer que é tudo fabricação, estão querendo reviver o rei, que aquilo é simplesmente um cadáver plebeu.  Você sabe que inglês não faz coisa a olho, nem coisa para a gente ver, embora o contrário seja verdadeiro, e por isso eles fizeram um exame de DNA. Compararam com um descendente distante e lá estava: comprovado, cientificamente, que o rei era o rei. Embora estacionado, quero dizer, enterrado, não perdeu a majestade. Quem diria, hein, Ricardo – desculpe a intimidade – tanto séculos depois. Estão vendo como as coisas mudam? Eu garanto que se alguém, no seu reinado, ousasse falar que um dia existiria o DNA e daria para finalmente identificar Vossa Majestade mesmo sem RG ou passaporte, você seria capaz de condená-lo de heresia e mandá-lo para a fogueira.

Tudo bem, eu entendo seu ponto de vista. Se alguém me disser que daqui a 500 anos vai ser possível viajar no tempo, eu também não vou acreditar!

A Notícia

ooooooOOO0OOOooooo


Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

Tuesday, March 24, 2015

Consertando o mundo

Consertando o mundo



Na favela corre a cocaína, adultos morrem, crianças ficam viciadas. Na cidade  há falta de heróis e heroínas. A única heroína é a droga.
A morte espreita na rua deserta,  mas na igreja, a cura é quase certa. Uns se inebriam de fé, outros têm fé em outras coisas. Alguns cobram da fé e outros cobram de quem tem fé.
No barraco chora uma criança com fome, na mansão se sofre de outra coisa.
Nas transações, o dinheiro some, aparece em outro lugar.
Em todo lugar falta o amor, em todo lugar sobra a dor. Que ironia dor rimar com amor. Com certeza é uma rima imperfeita.
Há outras tantas coisas mas não consigo revelar.
Está tudo tão torto, tão desfeito, mas há pouco que fazer.

Dentro das pessoas de bem, entretanto, uma vontade enorme de consertar o mundo...



o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o

Paralelo 38 e outras histórias
Paralelo 38 e outras histórias


Para adquirir este livro no Brasil:

Clique aqui ( e-book: R$ 7,75/ impresso: R$ 25,96)

----------------------------------

Para adquirir este livro nos Estados Unidos :


Sunday, March 22, 2015

Nós precisamos dos corvos



Nós precisamos dos corvos

A pequena cidade de Córregos Claros vivia feliz, mas ultimamente estava tendo problemas com os corvos. Eles vinham em grande quantidade e devoravam qualquer sinal de carniça que aparecesse, com uma ferocidade sem igual.
Talvez houvesse muitos animais, principalmente pequenos, que estivessem morrendo de alguma doença e era por isso que estavam vindo aos borbotões. Entretanto, ninguém pensou nessa possibilidade, todos estavam furiosos com os abutres. Bichos feios, escuros,nojentos. O prefeito, daqueles que é amigo de todo mundo, claro que estava a par do assunto. Poderia ter chamado alguém da Secretaria de Saúde ou ter chamado algum veterinário para esclarecer o assunto, mas achou que não havia necessidade. Ele era a lei, a autoridade. Convocou todo mundo para uma reunião lá no salão paroquial, único lugar que podia acomodar bastante gente.
Falou com eloquência, embora com muitos erros gramaticais, mas isso ninguém percebeu. O importante era resolver o problema, acabar com aquela raça maldita, que estava escurecendo os céus da linda cidade. Pediu para todo mundo tirar as espingardas do baú. Outras armas poderiam ser usadas também, a autoridade iria olhar de lado no caso de armas não registradas. Era um caso de calamidade. Formariam uma espécie de “exército de libertação” de Córregos Claros.
E assim foi. Em poucos dias as pobres aves foram dizimadas. Entraram até nos bosques ao redor da cidade para ver se ainda havia sobreviventes. Alguns se preocupavam em enterrar os corpos, mas muitos achavam que era até bom deixá-los ali expostos. Seria uma advertência ou então uma isca para os malignos ou  incautos que viessem se alimentar de seus próprios irmãos. Alguém esclareceu que aquilo era besteira, que corvo não come carne de corvo. Eles se respeitam. Enfim...
Passaram-se alguns dias e começou um terrível  mau cheiro. Além dos cadáveres dos abutres, ainda havia os dos animaizinhos, de diversas espécies, que continuaram morrendo. A coisa ficou insustentável, pois, além de tudo, as pessoas começaram a ficar doentes também.
O professor de Biologia da escola explicou, num artigo do pequeno jornal local, que, na verdade, os corvos eram importantíssimos para a saúde pública, pois ao devorarem os restos animais em putrefação, estavam nos livrando das bactérias e, consequentemente, das doenças.
O prefeito ficou uma fúria. Nova reunião, salão paroquial. O professor foi chamado de subversivo, anarquista, agitador. Ele se lembrava dessas palavras da época da ditadura, mas muita gente nem tinha ideia do que ele estava falando. Falou que iria pedir a sua transferência da cidade. Tinha amigos na Secretaria da Educação e tudo mais. Não precisou, pois o professor mesmo se transferiu. Muitos pensaram que foi por causa do prefeito, mas não foi não. Ele estava com medo era de pegar alguma doença.
Na mesma reunião, o prefeito sabiamente explicou que  os corvos eram inteligentes, e certamente só estavam vindo à noite, porque, sendo escuros como o capeta, ninguém os veria. E no meio das trevas espalhavam as doenças. Precisavam iniciar as patrulhas noturnas. Os grupos se reorganizaram.
No final muita gente acabou morrendo e a administração do prefeito um dia  acabou. Veio gente da Saúde, fez uma desinfecção geral, mas as coisas só ficaram em ordem depois que os corvos voltaram. Eles comiam, diligentemente, qualquer ameaça de formação de bactéria.
Muita coisa pode se deduzir dessa história. Muita mesmo. Mas existe gente lá, na pequena cidade, que nunca vai entender. Assim, vamos resumir da seguinte forma:
“Nós precisamos dos corvos.”


 oooooOOOooooo
À procura de Lucas


Para adquirir este livro no Brasil 

Clique aqui  ( e-book: R$ 7,32 / impresso: R$ 27,47)



Para adquirir este livro nos Estados Unidos 



Clique aqui  ( e-book:  $4.80  impresso:   $11.61)

Saturday, March 21, 2015

O depósito da Antárctica

O depósito da Antárctica


Foi um de meus primeiros empregos. Eu me sentia muito importante. Além do mais, uma moleza, era pertinho de casa. Eu fazia os “mapas” de entrada e saída de bebidas do depósito da Antárctica. Caixas de Pilsen Extra, caixas de Malzbier, de Guaraná, de Soda Limonada e até de Club Soda. Só mais tarde eu aprendi para que esta última servia.
Era uma folha enorme, pegava a mesa inteira. Chegava o caminhão da fábrica, eu registrava as caixas, saíam os caminhões para os bares e vendas, eu registrava a saída. Tudo no lápis e na borracha. A soma das colunas de saída e entrada era na calculadora. Era daquelas antigas, mecânicas, com uma manivelinha do lado. Quando alguém a estava usando, ia no lápis e papel mesmo, e era aí que eu me tornava realmente importante. Excel e outros programas, nem nas excelentes cabeças dos autores de ficção científica. Computadores? Nem aqueles de  cartões perfurados. Bons tempos, hein? Quer dizer, em alguns aspectos, sim. Era ou não uma coisa essencial  o que eu fazia? O meu patrão e dono do negócio era o “seu” Garcia. Havia vários motoristas, um deles era o Idabir, dele eu me lembro.
Nessa época, tive minha primeira lição de “marketing”. Para ter direito ao “Guaraná Antárctica”, o comerciante precisava comprar as cervejas. Represália contra a concorrente que só vendia a sua famosa cerveja se o estabelecimento também comprasse o não tão famoso Guaraná da Brahma. Não havia moleza e o “seu” Garcia não estava lá para brincar, não. Eu era muito novo ainda e nem sei se fazia meus mapas direito. Por outro lado, desconfio que ele tinha tudo na cabeça, caixa por caixa. Mais tarde, o depósito foi para um lugar muito maior.
Para vir trabalhar era fácil. Andava um pouco pela Dona Rosina, rua da minha casa, lá em cima, e depois”rolava” morro abaixo até chegar na “Fiorelli Peccicacco”. Na verdade eu vinha quase “caindo”, tão íngreme era o percurso. A ladeira, na época, era uma mistura de pequenas escadas, rampas e curvas. Quando chovia, virava um pequeno rio, cheio de buracos. O duro mesmo era subir de volta. Mas que encurtava o caminho, encurtava. Se viesse pelo Morro do Cartório e pela Praça, era quatro vezes mais longe. Até olhei no Google Mapas, nem sequer nome para a ladeira puseram lá.
Minha “carreira”, como “mapista da Antárctica”, foi curta, mas foi muito boa, nunca esqueci. Muito tempo passou e vejam só o que aconteceu: a Antárctica e a Brahma acabaram ficando  juntinhas, “de mãos dadas”. Uma pena que nem tudo é assim. Muita gente e muitas coisas acabaram de distanciando para sempre, como essas mesmas lembranças que acabo de narrar. É a vida, não é?


ooooooOOO0OOOooooo

A crônica acima não faz parte do livro abaixo

Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------

Thursday, March 19, 2015

A Dona Aninha

A Dona Aninha



Da minha casa, eu e meu irmão do meio, tínhamos bronquite. Não sei se a culpa era do tal do DNA ou se era o pó do cimento. Dava um aperto no peito, ficava tudo fechado, a gente não conseguia respirar. E o chiado? Todo mundo achava que havia um monte de gatos lá dentro. Era duro, um sofrimento. Naquela época ainda não havia aquelas “bombinhas” miraculosas, que abriam os pulmões na hora. Ou, pelo menos, nós não tínhamos acesso a elas.
O meu irmão, coitado, ficava pior do que eu. Acho que, às vezes, ele ficava até roxo. Dava um medão na gente, pois aquilo era um mistério, não dava para entender. Às vezes, quando a situação ficava muito grave, alguém levava a gente até a enfermaria da Fábrica de Cimento.
Entretanto, na maioria das vezes, a gente tinha socorro ali perto mesmo, umas duas ruas para trás. A Dona Aninha. Era um milagre.  Era só chegar, ela já estava lá, fervendo as agulhas e as seringas numa latinha de alumínio. Aquela injeção era tão boa que a gente nem ligava para a agulhada. Vinha aquele cheiro gostoso de eucalipto na boca e depois, como  num milagre, tudo se abria. Entrava aquele monte de ar para dentro, como se fosse um tufão. Eu não sei onde ela aprendeu a dar injeção, nem como. Para nós, entretanto, ela era a melhor e maior especialista em vias respiratórias e pronto!
Às vezes, meu irmão ficava tão atacado, que nem conseguia andar. O outro meu irmão, ou meu pai, então, colocava o paciente num carrinho de madeira, daqueles de uma roda só na frente, e ele era “transportado” até a casa da Dona Aninha. Tudo mudou. Quem leva, agora, um doente num carrinho de madeira?
A imagem, entretanto, fica sendo projetada, vez ou outra, na minha cabeça. Existem coisas que a gente nunca esquece...


                                              ooooooOOO0OOOooooo

A crônica acima não faz parte do livro abaixo

Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------




Wednesday, March 18, 2015

As notícias e o viajante do tempo

As notícias e o viajante do tempo



Estava lendo umas notícias e, por acaso, meus olhos bateram no título: “SP tem dois arrastões por volta do mesmo horário com 2 km de distância”. Pode até parecer banal, comum, apenas mais uma nota que se lê nos jornais, na Internet. Depois, porém, fiquei imaginando um  viajante do tempo, de repente, jogado em São Paulo.  Ele veio do passado, de algumas décadas atrás.  Tenho certeza de que iria ler a notícia umas dez vezes e ficar absolutamente na mesma.  Não teria a menor ideia do que poderia ser um “arrastão”. Ele certamente conheceria a palavra, mas nesse contexto, com esse significado, tenho certeza de que seria para ele algo surreal.  Se alguém  lhe explicasse com paciência, ele talvez entendesse, mas, garanto, iria ficar incrédulo. Mais incrédulo ficaria ainda com os “2 km de distância”. Eu ainda não consigo acreditar e olha que eu sou daqui e de agora. Dois quilômetros? Se fosse de congestionamento, embora bizarro, seria fácil de entender. Mas dois  arrastões a menos de 2 km de distância?  Depois de muita e detalhada explicação, depois de considerar a relatividade das coisas, etc., ainda teríamos mais um problema.  “No mesmo horário”?  Uma coisa dessas, absurda em sua própria essência, ainda mais numa amplitude dessas, já é algo sem precedentes. Depois ainda temos de enfiar goela abaixo de nosso viajante do passado que aconteceream dois desses ao mesmo tempo? Aqui e agora, para nós já é difícil de aceitar, imaginem para o nosso atônito visitante.
Na mesma página está lá outra “bomba”: “Mulher é presa após atear fogo no cão e divulgar no Facebook”.  A única coisa normal na frase é que ela foi presa. O resto é incompreensível. Quem  bota fogo num animal? E ela mesma divulgar uma barbaridade dessas no Facebook?  E para explicar para ele o que é “Facebook”? A bárbarie humana, de certa forma, sempre existiu, mas  “traduzir” o que é Facebook, vai ser uma empreitada quase impossível.

Melhor fecharmos os olhos de nosso viajante  antes de virar a página. Imaginem só ele dar uma olhada na parte de política. Explicar o que algumas pessoas estão fazendo nessa área... Eu desisto, não sei como fazer isso. Além disso, nosso viajante do tempo não iria entender mesmo. Iria pensar que tinha viajado para outro planeta e não para outra época.

ooooooOOO0OOOooooo

A crônica acima não faz parte do livro abaixo

Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------

Tuesday, March 17, 2015

Julgamento da justiça

Julgamento da justiça



O juiz conduz o julgamento. Diz quem pode e quem não pode falar. Autoriza ou não provas e evidências . Decide se o advogado de defesa pode ou não continuar. Se o o promotor pode ou não acusar. Decide se um jurado suspeito pode ou não participar.
Manobra aqui e ali, quando quer manobrar. Dá para tudo o tom que quer dar. O promotor acusa mesmo quando não tem certeza de que o réu é culpado.  O advogado de defesa defende mesmo quando o réu é um assassino cruel.
Os jurados votam achando que estão decidindo. Na verdade estão votando no que têm de votar. Muitas vezes os culpados recebem as devidas penas. Muitas vezes saem livres das penas que deveriam ter. Inocentes são absolvidos mas outros tantos recebem penas que não deviam.
O juiz dá a sentença.
É como se fosse um grande jogo, igual ao jogo da vida. O importante é jogar, não é julgar.

E aquele que conduziu tudo, o juiz, esse quem um dia vai julgar?


o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o


Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------

Para adquirir este livro nos Estados Unidos 

Monday, March 16, 2015

A Sra. Stevenson quer me levar para o céu


A Sra. Stevenson quer me levar para o céu

A Sra. Stevenson quer me levar para o céu
Era fabuloso o que estava acontecendo. Algumas pessoas conseguiam chegar a 250 anos de idade. A grande maioria atingia facilmente de 190 a 210. Praticamente não havia doenças ou acidentes. Quando aconteciam, tudo era facilmente acertado com “programas de recuperação genética”.
Há mais de 300 anos atrás o supermapa do genoma humano havia sido feito pela primeira vez. Desde esse evento cada vez mais a ciência genética evoluiu de forma surpreendente. Os únicos fatores que seguraram a ciência nas primeiras décadas a partir daí, eram a ignorância, a pobreza e a ganância humana. Mas isso também passou. Agora mesmo com essa idade avançada, se as pessoas quiserem, elas não morrem. Em quase todos os casos, entretanto, as pessoas decidem simplesmente “parar”. Algumas são congeladas, outras simplesmente usam o sistema de “autodeleção”, uma maneira suave e civilizada de morrer. O ser humano consegue tudo tão facilmente, não há desafios e por mais interessante que seja o mundo virtual, chega-se a um ponto em que as pessoas se cansam, ficam aborrecidas.
Outro problema, mais grave, estava surgindo:  a superpopulação. Nos últimos dois séculos os humanos criaram colônias habitáveis em Marte e na Lua. Adequaram o espaço na Terra da melhor forma possível usando incrível tecnologia. Limitaram os nascimentos a um nível mínimo. Cada grupo familiar, ou seja, cada grupo genético, tinha direito um número limitado de novos “filhos”. A gestação era em laboratórios e de acordo com sofisticadíssimos procedimentos genéticos. Era uma verdadeira fábrica de super-homens que, ao mesmo tempo, mantinha uma diversidade biológica ao distribuir os nascimentos por grupos. Ainda assim, devido à longevidade, a superpopulação voltava a ameaçar o nosso planeta. Diminuir os nascimentos não era uma opção. O nível já era baixíssimo e comprometeria toda a raça ao manter um nível tão alto de pessoas mais velhas.
Eu estou com 80 anos e portanto sou jovem ainda. Claro que me preocupo com o problema. Não quero ter limitação de espaço e nem quero ir morar numa nave ou plataforma que fica em órbita para resolver o problema de espaço. Alguém tem que fazer alguma coisa. E eu sei o que eles vão fazer. Na verdade já estão fazendo. Outro dia recebi uma ligação e apertei de leve o “nanochip” implantado no dorso de minha mão para receber a ligação. Era a Sra. Stevenson. Ela se identificou como do programa de “perpetuação virtual da vida”. Achei o nome interessante e ouvi. Era uma pessoa de verdade, não era uma máquina falando. Isso era um bom sinal. Ela me explicou a respeito desse novo programa da Administração Central. Décadas de pesquisa para proporcionar o máximo de bem-estar e de prazer para as pessoas. O corpo ficaria em repouso, o cérebro trabalharia em ondas baixíssimas e então, a grande maravilha. Todos os prazeres, todas as melhores sensações, a própria essência da vida, virtualmente inseridas em mim. Palavras da Sra. Stevenson. O programa exacerbava – foi essa a palavra que ela usou – todos os meus sentidos. Ela tinha certeza de que ser nenhum, até então, havia experimentado tal gama de prazeres e bem-estar.
Era bom demais. Quanto tempo durava? Havia perigo de não se conseguir voltar? A Sra. Setevenson explicou. No começo eles deixaram aberta a opção de voltar. No entanto, tudo era tão bom, que nunca, uma só única vez, alguém quis voltar. Diante disso, para que manter máquinas caríssimas só para a possibilidade de, em décadas, alguém querer voltar? Seria uma idiotice. Do jeito que ela falou tudo pareceu ter bastante lógica. Mas eu argumentei que aquilo era a mesma coisa que morrer. Primeiro ela contra-argumentou que quem optava por morrer não ficava tendo prazer indefinidamente como as pessoas participantes do programa. Daí ela me perguntou se eu acreditava em céu. Pergunta retórica. Há muito tempo ninguém mais acreditava em céu...” Pois é, isso é o paraíso”, ela falou. Boa de marketing a Sra. Stevenson. Muito boa. Fiz mais uma pergunta. Dá para se ter uma amostra antes de entrar no programa? Claro que sim. Marcamos para o dia seguinte, dez minutos de “céu”.
Lá estava eu no dia seguinte, na hora marcada. A Sra. Stvenson era linda, um capricho da engenharia genética. Podia se dizer, se fosse daqueles que gostam de coisas antigas, que ela mesmo era um pedaço de céu...
Entrei na cápsula. Relaxei. Colocaram uns instrumentos na minha cabeça, comecei a ficar sonolento. Quando percebi, lá estava eu no meio de uma ceia, daquelas que as pessoas faziam antigamente, comida de verdade, em pleno século 21. Quando experimentei a comida, senti um prazer que jamais sentira antes. Enquanto comia, não precisaria de mais nada, mas outros prazeres invadiram meu cérebro. Prazeres mil. Tive dias e dias de prazer, paz e felicidade. De repente tudo ficou branco. Fui acordando devagar e vi olhando para baixo, o rosto da Sra. Stevenson. Ela me disse “Não vou perguntar se você gostou porque já sei a resposta.” Na verdade perguntei para ela porque me deixou dias na cápsula se o combinado era apenas 10 minutos. Ela riu. “Você ficou só dez minutos”, ela me falou. Estava quase com raiva de eles terem me acordado. Queria voltar. A Sra. Stevenson me explicou que era impossível no momento. Explicou também que as minhas ondas cerebrais não tinham atingido o nível mais baixo, pois era perigoso fazer isso em apenas dez minutos. Se eu tivesse ido para as ondas mais baixas, meu prazer seria multiplicado por 7 ou 8!? Ela devia estar brincando, não é possível se ter mais prazer do que aquilo.
Cinco dias me foram dados para que eu desse a resposta. Aquilo era realmente um paraíso, não sei como eles conseguiram criar algo tão espetacular assim. No entanto, minha inteligência me mostrava o óbvio. Aquilo era a morte antecipada, claro, com um céu de recompensa. Certamente quem concordasse com aquilo estava decidido a deixar esta sociedade, este mundo. Talvez valesse a pena. Como disse, a Sra. Stevenson era um prodígio de marketing.
Pensei e pensei. Mas não sei se pensei direito, pois só pensava no prazer que senti, nas sensações inéditas que experimentei. Sete vezes mais prazer do que aquilo, ela estava brincando?
No quarto dia tomei a decisão e avisei a Sra. Stevenson que tinha concordado em participar do programa. Ela riu. Afinal de contas você não pode rejeitar um convite para ir ao paraíso. Claro que não. E é exatamente isso que a Sra. Stevenson quer, ela quer me levar para o céu... 

oooooOOOOOooooo

Histórias do Futuro

Cover_front_mediumPara adquirir este livro no Brasil 



Para adquirir este livro nos Estados Unidos 

Clique aqui (e-book: $3.99 impresso: $11.98)