Friday, June 29, 2012

A Revolta dos Clones e a Terra Prometida


A Revolta dos Clones e a Terra Prometida
“Canaã é logo ali
A terra prometida que Deus já te deu
O deserto atravessou
As muralhas derrubou
E você conquistou.”
(Canaã é logo ali-
Marquinhos Gomes)

Leonard estava andando numa estrada deserta do Arizona. Estava cansado apesar de sua forma física e respirava com certa dificuldade. Olhava para o céu constantemente, para frente e para trás...Procurava algo, parecia estar atrás da própria salvação...
Tudo começou há algumas semanas atrás. Tenant, seu amigo, e que trabalhava com ele numa grande dependência do governo no Texas, havia sussurrado para ele um grande segredo. Muitos, como ele e seu amigo, estavam fugindo para uma área na Floresta Amazônica, uma das poucas ainda preservadas no começo do século 22. As áreas naturais agoram eram tão escassas que havia restrições enormes para qualquer tipo de interveniência nelas. O próprio governo central das Américas evitava muita monitoração, pois isso poderia sugerir “ideias” de ocupação para grupos que achavam um absurdo manter uma região toda isolada em época tão carente de novos espaços. O conceito era deixá-las completamente isoladas, proporcionando assim condições para sua sobrevivência e recuperação. O resto do mundo, salvo por mais algumas regiões bem menores que a Amazônia, estava totalmente ocupado. É verdade que, por outro lado, a tecnologia havia permitido um controle quase perfeito do clima, da poluição ou qualquer outra consequência negativa de um superdesenvolvimento.
Havia pouco trabalho. As máquinas e os robôs faziam quase tudo. O resto, ou eram funções de controle e monitoramento ou algumas tarefas mais pesadas, que por motivos estratégicos ainda eram destinadas a humanos. Na verdade eram humanos sim, mas eram clones. Eram geneticamente elaborados para as funções que exerciam. Não se podia dizer que eram infelizes pois até isso era controlado. Quase todos estavam imensamente satisfeitos com suas funções. Era parte do plano, todo mundo precisava ser feliz. Por motivos ainda não entendidos pelos engenheiros genéticos, vez ou outra, alguns clones não se adaptavam muito ao destino que lhes fora reservado. Precisavam ser reestrurados geneticamente, serem tratados de sua “deficiência”. Todos os clones eram bastante inteligentes mas, segundo observações feitas recentemente, os “revoltados” eram mais inteligentes que a média.
Há três anos atrás um clone “revoltado” conseguira fugir com mais outros cinco para a Amazônia. Levaram consigo seis naves nas quais eles habilmente desativaram os mecanismos de detecção. Uma vez na área de preservação, eles não poderiam mais ser perseguidos.

Fora das grandes áreas urbanas, as grandes e antigas estradas eram muito pouco usadas pois o transporte individual era feito por pequenos “spt”s ou seja, “transporte pessoal suspenso”. Além disso havia, para quase qualquer ponto, perfeito sistema de transporte coletivo. Montou-se então- os rebeldes montaram -  um sistema de resgate para os clones que decidissem não mais participar da “força especial de trabalho” destinada para eles. O que tinham de fazer era extrair de seus corpos o nanoimplante de detecção e fugir para uma das antigas e desertas estradas. Ali eles poderiam ser detectados por uma das naves do “grupo de resistência” que frequentemente faziam vôos em uma altitude muito baixa para detectar fugitivos. Era relativamente fácil por dois motivos. Ninguém mais andava por essas estradas. Se alguém estivesse lá, certamente era um clone em fuga. A outra razão era que com uma criminalidade quase zero, havia pouca tecnologia e recursos destinados a localizar fugitivos ou perseguir criminosos.
Leonard, ou como era identificado no sistema, “CLYWER32”, havia conseguido desativar  seu sistema de detecção há três dias e estava naquela estrada deserta do Arizona há dois. Até agora nenhuma das seis naves de resgate havia vindo em seu socorro. Por isso olhava aflito para o céu a todo momento. Seu pensamento, no entanto, voava para a selva, e procurava reconstruir o “paraíso” que seria lá, com a liberdade e tudo mais. O sol agora estava inclemente e certamente ele começaria a ter delírios por mais que seu corpo fosse preparado para intempéries e situações como essa. Foi num momento desses que, de repente, ouviu aquele ruido sibilante característico das naves que haviam sido sequestradas por seus companheiros. Eram as mesmas que o restrito policiamento da época usava para suas tarefas. Deitou-se e esperou pelo momento tão desejado. Estava praticamente desmaiado quando recolheram seu corpo extenuado. O veículo aéreo partiu quase instantaneamente enquanto ele recebia os primeiros cuidados. Quando abriu os olhos, no entanto, ficou um pouco surpreso.Os oficiais da nave não pareciam com seus amigos clones. A moça, com aquele uniforme típico de agente da lei disse para ele ficar calmo. Ela falou qualquer coisa como ”Tudo vai voltar ao normal.” Exatamente o que ele não queria ouvir. Tinha caído de volta nas garras do sistema. A oficial, no entanto, era suave e repetiu várias vezes, que “deveria acalmar-se, logo ele esqueceria tudo” . Falou também qualquer coisa sobre “consertá-lo”...Leonard, entretanto, só pensava na floresta, nas dezenas de clones que estavam lá,  livres, felizes, passeando. Apesar do sono profundo que ela havia lhe aplicado, ele ainda sonhava com a sua “terra prometida” e continuava sorrindo.
A policial sentiu uma certa pena dele e pensou consigo mesma: “ Quem sabe da próxima vez...”






A Estrela d’Alva


Era o ano de 2137 e Mary Lou estava se preparando para a mais importante viagem de sua carreira de astronauta. Era também a estreia da nova geração de naves espaciais, com propulsores jamais imaginados pela inteligência humana. Inicialmente a agência do espaço da Grande Confederação da Terra havia concebido uma missão tripulada por robôs ultrassofisticados, também criação recente. Entretanto depois de muita deliberação, decidiram que era seguro e também importante que o ser humano tivesse este tipo de experiência. Além do mais, os astronautas agora não só eram  preparados desde crianças para este tipo de projeto, mas também tinham caracterísicas genéticas próprias para viagens espaciais implantadas em seus corpos desde sua concepção em laboratório.
Mary Lou, apesar de ser uma excelente profissional,  tinha herdado os gens de seu pai – ela o conheceu mesmo tendo sido gerada em laboratório – um certo sentimentalismo característico das gerações antigas. Ela nunca deixara isso ser percebido por ninguém.  Desta forma, apesar de seu treinamento, ela se emocionava ao se lembrar da imagem do pai. Lembra-se ainda hoje, adulta, de uma cena comovente quando ela tinha cinco anos. Seu pai,  astronauta comandante Arvin – do primeiro escalão – disse que havia um presente que queria lhe dar. Era uma corrente de ouro com um pingente no qual estava incrustado um lindo diamante. Era uma joia que estava na família há gerações.  O comandante Arvin, ou Fred, como era chamado pelos amigos, colocou a corrente no pescoço de Mary Lou. Disse a ela para levá-la em todas as suas viagens. E foi o que ela sempre fez. Deu à joia o nome  de Estrela d’Alva.
O destino, no entanto, às vezes é cruel. Depois de três viagens feitas por Mary Lou com a corrente, Fred, que ainda fazia muitas missões espaciais, foi designado para uma viagem como esta que Mary Lou ia fazer agora. No entanto, as naves eram da antiga geração, que, de qualquer maneira eram também bastante sofisticadas.  Por algum motivo, talvez subconsciente, ele pediu para a filha que lhe “emprestasse” a joia que ele havia lhe dado. Queria tê-la em seu bolso durante a missão. Ironicamente sua nave desintegrou-se quando estava indo em direção a Júpiter, matando todos seus tripulantes. O acidente nunca foi bem explicado. O boato era que faziam parte da missão experiências nunca antes tentadas mas tinham a ver com os resultados obtidos através do extraordinário acelerador de partículas recém-construído em Marte. Houve uma comissão especial de cientistas que pesquisou os eventos e chegou a conclusões que obviamente escondiam o que realmente tinha acontecido. Mary Lou fazia agora suas missões sem levar a Estrela d’Alva. E desta vez, sentiu falta. Teve um pouco de vergonha ao pensar nisso, afinal de contas ela era uma oficial de primeira linha, a comandante Arvin, como era chamada em seu meio.
O  Grande Colisor de Hádrons que começou a funcionar em 10 de Setembro de 2008, era um brinquedo de criança comparado ao que havia sido construído em Marte. Cem vezes maior, dez vezes mais sofisticado. Suas atividades haviam sido suspensas após o acidente com a nave de Fred, mas alguns meses depois tudo voltou ao normal.  Claro que astronautas e cientistas não devem ser, e normalmente não são supersticiosos, mas as coincidências da missões de Mary Lou com as de seu pai eram assustadoras. Ambas deviam “dar um passeio” pelo sistema solar e ambas faziam parte de experimentos relacionados com o grande acelerador de partículas. A comandante Arvin não pensava em nada disso, pelo contrário, estava ansiosa e excitadíssima com sua missão. Pensou que seria interessante ter a correntinha de ouro que seu pai havia lhe dado, a “Estrela d’Alva”. Seu pai, se vivo, também gostaria...
A  “New Enterprise” estava agora há um mês de distância de Júpiter, provavelmente não muito longe do ponto onde a nave de seu pai, o comandante Arvin, havia se desintegrado. Uma parte da missão era justamente deixar na órbita do planeta quase metade da própria nave, que seria, na verdade, a primeira grande peça de uma enorme estação que ficaria na órbita de Júpiter. Outras inúmeras missões viriam para completar a obra. A outra parte da missão era praticamente função apenas dos computadores. Os tripulantes só fariam algo numa emergência e, ainda assim, de uma maneira restrita. O segredo não incomodava Mary Lou nem os outros tripulantes. A ciência entrara numa fase tão avançada que era difícil dominar e fazer parte dela de uma maneira completa e direta. Os grandes computadores faziam quase tudo.
Quanto mais a “New Enterprise” se aproximava do grande planeta era inevitável para Mary Lou se lembrar da tragédia e de seu pai. Isto,entretanto, não afetava seus afazeres ou seu desempenho. Ela era provavelmente a mais equilibrada da equipe e jamais o teste emocional que era feito em todos os tripulantes a cada 24 horas indicara nela qualquer alteração. Nem mesmo alguns pequenos incidentes recentes na viagem haviam produzido qualquer efeito  em seu comportamento. Houve vários casos de mau funcionamento de navegação que logo depois eram corrigidos pelo sistema. A única coisa que a incomodava um pouco era que, toda vez que ela tentava analisar o ocorrido, principalmente com o objetivo de evitar nova ocorrência, simplesmente não havia registro do mesmo. Era como se a inteligência dos computadores estivesse tentando esconder algo. Nos últimos três dias, porém, algo mais grave havia acontecido. Uma pequena vibração, que foi notada por todos da tripulação, ocorrera por duas vezes. Os computadores novamente nada registraram. A essa altura Mary Lou não sabia se era mais grave a vibração ou o fato de os computadores se recusarem a notificá-la e explicá-la.
Uma semana depois, algo mais grave ainda havia ocorrido. Uma vibração intensa, por mais de 35 minutos, outra vez sem nenhuma notificação dos computadores, deixara toda a tripulação muito preocupada. Houve reunião, muita discussão, diversas opiniões, mas o fato era que nada podiam fazer. As mensagens especiais enviadas para Marte e para Terra tiveram respostas evasivas, dizendo que estavam analisando, estudando, etc.
Foi então que aconteceu o inimaginável. Uma vibração enorme, assustadora, como se a espaçonave estivesse se partindo em duas. Todos os tripulantes desmaiaram e só acordaram horas depois. Aparentemente a nave estava intata, tudo funcionando. Imediatamente todos começaram a consultar os dados. Mais uma vez, não havia indicação de nenhum mau funcionamento. Nada. No entanto estavam “faltando”  dezessete minutos no tempo, no histórico, nos dados, em tudo. E todos os computadores, mesmo os especiais dedicados somente à missão do grande acelerador, buscavam freneticamente “entender”  os minutos faltantes, sem conseguir. Começaram então a montar uma situação hipotética, trabalhar em cima dela, para que as coisas voltassem ao normal. Enquanto isso membros da tripulação recebiam mensagens não oficiais de conhecidos e amigos de Marte e da Terra narrando estranhos eventos. Nada gigantesco, mas coisas que eram surpreendentes. Prédios e máquinas que sumiram, pessoas que  apareceram em outros lugares depois da “falha dos 17”, como ficou sendo chamado o evento. O óbvio passou a ser o objeto de todas as conversas. O grande experimento que envolvia a “New Enterprise” e o grande acelerador havia interferido no tempo-espaço do sistema solar e talvez até fora. Provavelmente algo infinitamente pequeno em termos cósmicos mas altamente significativo em termos humanos. Obviamente a espécie humana, por mais adiantada que estivesse, ainda não estava preparada para lidar com as consequências deste novo avanço da ciência.
Foi durante uma  conversa com outro membro da tripulação que, quase inconscientemente, Mary Lou enfiou a mão no bolso de sua túnica e – não podia acreditar – sentiu com seus dedos a correntinha de ouro que seu pai lhe dera. Ficou lívida e mal conseguiu esconder o que estava sentindo da sua interlocutora. Pediu desculpas e se retirou para seus aposentos. Tirou a joia e colocou-a sobre a mesa. Não havia dúvida, era a “Estrela d’Alva”.  Consultou dados em seu computador pessoal. As coordenadas coincidiam. O “evento” ocorrera exatamente no mesmo local onde a nave de seu pai havia desaparecido. Lógica? Nenhuma. Por que só a corrente? Definitivamente, pensou ela, os fatos científicos não podiam ser separados da consciência humana. Havia uma ligação. Não comentou nada com ninguém. Iria parecer uma idiota, ninguém acreditaria e afetaria sua imagem de comandante. Nos dias seguintes houve inúmeras entrevistas com os comandantes da missão da Terra e de Marte. Queriam mais dados, além do que diziam os computadores. Coisas pessoais, o que eles haviam sentido. Eles sabiam algo mais, porém não queriam compartilhar, só queriam “ extrair informações”. Havia um grande enfoque em “experiências pessoais” nas perguntas que faziam. O que acontecera não era um fato científico isolado, tinha a ver com “consciência pessoal”, talvez até com espiritualidade, algo de que praticamente não se falava mais, a não ser em estudos históricos. Ela quase falou sobre a joia durante as investigações, talvez fosse uma colaboração importante. Depois decidiu que não.
Voltou para sua sala, abriu a foto de seu pai na tela, olhou para seu sorriso e para seu uniforme de comandante, colocou a Estrela d’Alva na palma da mão, e chorou...de emoção.

Wednesday, June 20, 2012

Uma vez mais, eu te amo…


Uma vez mais, eu te amo…

Ronald acelerou suavemente seu carro quando o sinal abriu. Ouviu então aquele ruido sinistro de um outro carro tentando brecar e…
Cinco dias depois ainda estava no hospital e, pela primeira vez depois do acidente, abriu levemente os olhos. Viu apenas vultos, saindo e entrando...Mas estava tudo muito silencioso. As pessoas falavam mas as vozes não saíam de suas bocas. Dormiu de novo e acordou já no dia seguinte, mas isso ele não sabia. Via melhor agora. Tanto é que sabia que quem estava ali em pé, ao lado de sua cama era um médico. Dizia o seu crachá: Dr. Kalwinsky ou algo assim. O doutor estava tentando falar com ele. Ele não conseguia ouvir mas entendeu quase tudo. Podia ler seus lábios. Dizia que sua cabeça estava com sérios problemas. Haveria consequências, mas ele sobreviveria...Ronald tentou então perguntar sobre Lucy. Onde estava? Estava bem? Mas as palavras não saíam.
Lembrou-se então de que na fração de segundo antes de receber a pancada do outro carro, pensara que era muito azar Lucy estar daquele lado. Era  melhor se ele estivesse ali. Apagou este mau pensamento da cabeça e dormiu, dormiu bastante, sem sonhos, sem nada.
Ronald não sabia mais há quanto tempo estava ali na cama, mas sabia que era muito. O mesmo doutor estava ali, a sua frente de novo. Podia dessa vez ouvir, muito baixo, o que ele estava falando. O médico mencionara que ele constantemente chamava por Lucy, a esposa. Tinha de confessar que infelizmente, ela não tinha conseguido. Sentia muito.  Ronald não queria acreditar nele, aquilo era uma mentira. Por que mentir para ele, ele que estava ali na cama? Não quis ouvir mais e dormiu de novo.
Quando acordou na vez seguinte, lembrou-se que sempre acreditara na força do pensamento. Tinha amigos que acreditavam também. Tinha visto coisas. Mesmo quando algo já tinha acontecido, você podia mudá-lo com a força mental. O tempo não existe, é apenas uma referência para nosso cérebro. Ele tinha uma tática. Voltou com sua mente para os momentos que viveram antes de sair de casa. Ele pegando as chaves e ela pegando a bolsa. Estavam saindo para as compras. Lembrou-se dos detalhes. Pensou de novo e desta vez falou para Lucy que não queria mais fazer compras. Iriam mais tarde, naquele momento iriam mexer no jardim. Lucy ficou um pouco contrariada, não estava entendendo. O exercício mental foi um esforço muito grande para Ronald e ele adormeceu. Acordou mais vezes no mesmo dia e cada vez tentava convencer Lucy para não sair de carro. Finalmente ela concordou e disse qualquer coisa como “Se é isso que você quer...”
Nos próximos dias Ronald foi elaborando sua história. Detalhes, muitos detalhes. Pegando as ferramentas de jardim, mexendo na terra...Cuidar do jardim primeiro, compras depois. Viu Lucy sorrir várias vezes, ele gostava, como ela,  de mexer com plantas. Cada pequeno gesto estava sendo elaborado, caprichado, refeito na mente de Ronald. Ele nem se lembrava mais do acidente. Nada havia acontecido, eles não tinham nem saído. Lucy sorria e ele também .
As enfermeiras notaram que cada vez Ronald sorria mais. Sorria quando estava dormindo e quando estava acordado. Suzane, sua irmã, que o visitava constantemente, também notou. Era um sorriso de felicidade. Convincente, que inspirava paz.
Um dia, finalmente, Ronald viu Lucy entrar no quarto. Era ela e desta vez muito mais real que qualquer outra vez. Sorria o seu sorriso suave e lindo de sempre. Essa Lucy...Ele sabia que iria trazê-la de volta. Ali estava ela, carne e osso, real...Sentou-se a seu lado, passou a mão pelos seus cabelos. Com a outra acariciou seus dedos. E sorria...Ronald apertou seus dedos só para garantir, conhecia muito bem a textura da pele dela. Ronald pensou, se alguém não acreditava que ele era capaz de fazer o que fez, ali estava a resposta. As duas enfermeiras e mais uma visita que ele não estava reconhecendo, eram testemunhas visuais. A sua Lucy estava ali, na frente de todos.
O que estava acontecendo no quarto de hospital entretanto era outra coisa.
Era uma cena até bonita, pensou a enfermeira mais velha. Ficou  emocionada de ver ali, o paciente Ronald, que agora já era um velho conhecido, segurando a mão de sua irmã Suzane. A outra enfermeira pensou como seria bom ter  um irmão como Ronald, que gostasse dela da mesma maneira.
O corpo de Ronald melhorou mas seu cérebro nunca voltou. Ele estava sempre com aquele sorriso nos lábios, sempre conversando com a Lucy. Foi internado numa instituição. Lá, logo todos se acostumaram com ele. Volta e meia estava segurando a mão de uma enfermeira ou de uma paciente, chamando-as de Lucy e sorrindo.  Muitas vezes falava:  “Eu te amo.” Ele se cuidava bem, se barbeava, tomava banhos constantes. Afinal de contas, Lucy era exigente nesse aspecto.
Alguns tinham pena dele, outros achavam que ele era feliz. Sabe de uma coisa? Eu acho que ele era feliz. E digo mais, acho que a Lucy era feliz também. Acho até que ela estava sorrindo...

Saturday, June 9, 2012

O Planeta de Gelo


O Planeta de Gelo

A espaçonave “Solution” foi lançada da estação espacial “Via Stella”, uma gigantesca plataforma em órbita da Terra. Vista do chão tinha o tamanho de três sóis. A maioria das naves de longo curso saíam ou de Marte ou da Lua.  A “Solution” entretanto precisou sair de nossa órbita mais por causa do tipo de construção que ela demandou do que por outros motivos. Saiu exatamente às 10:37:32 GMT do dia 27 de outubro de 2167 AD . O tempo programado de viagem era de 14 anos. Nos últimos 5 teria toda sua tripulação hibernada, devido ao risco que as tarefas que ela teria de realizar traria para seus viajantes. A sua rota seria dentro do sistema solar e seu objetivo principal era coletar dados vitais para expansão das colônias da Terra que então se resumiam apenas a Lua e a Marte. Parte de sua missão, porém, era sigilosa. Nem mesmo o chefe da missão, Ron, tinha completo conhecimento de todos os detalhes. O computador principal, cuidava da rota e da parte principal da missão e um segundo computador tinha os dados sigilosos da mesma. O primeiro partilhava apenas parte dos dados do segundo, mas este último “conhecia” toda a missão.
Como acontece nesses casos, houve muito burburinho, muito comentário e muitas análises a respeito da grande empreitada. Relatórios diários eram transmitidos à população. Depois de dois ou três anos, o interesse diminuiu e somente quando algo de relevo acontecia, o público era notificado. Solution era a primeira de uma nova linha de naves espaciais com os propulsores que alcançavam velocidades jamais sonhadas no século anterior. A tripulação era composta de 17 astronautas, todos cientistas ou especialistas em diversos aspectos de inteligência artificial ou navegação e outros campos de conhecimento necessários ao cumprimento da missão.
Comandar a Solution era uma espécie de coroação de carreira para Ron, um apaixonado por viagens espaciais e astronomia. Ficou mais de cinco anos se preparando. Boa parte do treinamento era dedicado à maneira como interagir com esses novos computadores, uma vez que os mesmos eram bastante independentes, podiam e tomavam decisões que muitas vezes eram difíceis de se aceitar ou de se entendermesmo por cientistas do nível de Dr. Selleck, como era conhecido o Ron. Ludic era o apelido do computador. Shadow era como eles chamavam o segundo computador, o que tinha a parte substancial dos segredos do projeto. Ron sabia que seria fácil ficar irritado con Ludic mas por outro lado ele sabia que o mesmo possuía uma quantidade absurda de informações que ninguém mais tinha e, além disso, ele administrava as “prioridades” que nem sempre coincidiam com as da tripulação. Enfim, tinha de conviver com Ludic e Shadow.
Cada pessoa da equipe cumpria suas funções regularmente e tentava levar a vida da forma mais “normal” possível.
Horas, dias, meses e anos foram se passando. Os cientistas logo perceberam que a quantidade de informações armazenadas era extarordinária. Perceberam também que Shadow, além de ter a “missão” inserida em si, era também uma espécie de garantia no caso de Ludic ficar “super” ocupado ou sofrer avarias. Várias coisas começaram a acontecer que não faziam parte da informação e instrução que a tripulação tinha tido. Às vezes, Ludic interrompia quase todas suas funções, inclusive a comunicação com a Terra. Fazia só o mínimo para manter as funções vitais dos tripulantes e da nave. Todos pensaram que estivessem diante de um mau funcionamento. Após alguns dias Ludic informou de que não havia motivo de preocupação. Estava analisando “data” e economizando energia. A história de economia começou a ficar mais e mais frequente. Era estranho, pois as naves dessa última geração possuíam uma energia praticamente inesgotável. Havia uma certa desconfiança de que Ludic e Shadow estivessem escondendo algo. De qualquer forma, algo fora do normal estava ocorrendo.
A rotina da viagem fez os ânimos se acalmarem novamente, até que no começo do oitavo ano, um antes do processo de criogenia começar, Ludic veio com a novidade: a hibernação teria de ser ativada um ano antes do previsto. Houve um início de revolta, mas Ludic conseguiu explicar com gráficos, números e lógica. Stuart, o mais entendido em inteligência artificial chegou a sugerir secretamente para Ron um boicote. Disse que poderia causar um pequeno “acidente” no Ludic e no Shadow para limitar suas capacidades. Ron chegou a considerar a possibilidade pois estava começando a ficar preocupado com o andamento do projeto. Depois reconsiderou e achou que havia muitas incógnitas no processo. A essa altura certamente havia informações absolutamente necessárias para sua sobrevivência que estavam sendo ocultadas por Ludic e Shadow. O risco seria muito grande.
Começar o processo de criogenia um ano antes significava começá-lo dali a dois meses e esse era também o tempo de preparação  para a mesma. Em outras palavras, a rotina havia acabado e inúmeros procedimentos especiais tinham de ser ativados imediatamente. A alimentação mudava completamente e vários elementos químicos teriam de ser diariamente aplicados em todos. O processo em si mesmo durava 72 horas mas isso não fazia diferença nenhuma pois a essa altura estariam todos inconscientes, em estado de sono profundo. O último a perder a consciência seria Ron, por uma questão de segurança, pois se houvesse algum tipo de problema ele poderia ainda sustar o processo. Da mesma forma, no momento do “descongelamento”, ele seria o primeiro a voltar para supervisionar a “volta” dos outros. Era um sistema seguro e havia sido usado milhares e milhares de vezes antes, mas os procedimentos tinham de ser mantidos.
Ao lado da desconfiança e da ansiedade, havia também um certo alívio, pois aquilo significava o final da missão. Afinal de contas, quando acordassem, seis anos depois, estariam na órbita da Terra esperando a acoplagem da “Solution” na “Via Stella”.
Finalmente o dia chegou. Todos se despediram antes de começar o  “caminho de volta”. Muitos abraços antes de entrarem nas cápsulas. Uma vez lá dentro, lentamente iriam perder a consciência e dormir e depois... temperaturas baixíssimas iriam envolver seus corpos. Enquanto monitorava seus colegas, antes de ele mesmo ser  monitorado por Ludic, Ron ainda pensava... Aquele congelamento não era por causa de energia. Ludic ou Shadow tinham descoberto algo diferente, precisavam fazer experiências e não podiam ou não “queriam” executá-las na presença consciente da tripulação. Consolou-se, dizendo para si mesmo que talvez fosse melhor assim.
Finalmente chegou a vez de Ron. Colocou sua assinatura digital numa das telas do Ludic, concordando com tudo, entrou na cápsula, olhou o pequeno monitor diante de seus olhos e clicou “oK” com seu indicador. Imediatamente os “gases do sono” começaram a ser injetados na cápsula. Ron ainda teve tempo de pensar: “Definitivamente não é uma questão de economia... existe algo mais estranho e profundo nessa história...Talvez...” e daí o cérebro de Ron estava emitindo ondas elétricas tão fracas que um branco invadiu tudo e ele se foi...

A Volta

Ron não sabia se estava sonhando ou se era apenas um sono pesado. Via pequenos pontos azuis que iam e vinham. Depois tudo ficava escuro, então tudo voltava. Após algum tempo começou a ver linhas. Podia reconhecer números e letras. Tentou se concentrar. Abriu e fechou os olhos. Não estava claro nem escuro. Ao longe uma voz, voz de computador. Por mais perfeita, você ainda a reconhece. Agora já podia ler melhor.
Ano: 373401 AD
Tempo de viagem: 371.234 anos
Velocidade média: desconhecida
Eventos: consultar LOG
Energia: nível crítico
Pensou.  A falta de energia está afetando os dados. Não, isso não acontece mais, os computadores não fornecem dados errados. Ou estão desligados completamente ou não falham. Devagar foi se lembrando. “Solution”. Missão. O ano tinha de ser 2181 AD. Talvez uma simulação? Congelamento, agora se lembrava. Estivera congelado. Seu cérebro, talvez seu cérebro estivesse afetado. Ouviu um clique. O pouco movimento que fizera causou a abertura automática da cápsula. Tentou se levantar. Não conseguiu, estava muito fraco. Sentiu que ar carregado de alguma substância saía dos dois lados da cápsula. Lentamente suas forças iam voltando.
 Finalmente conseguiu se levantar e sair. Andou um pouco e se lembrou dos companheiros. Primeiro precisava checar os dados. Computador de emergência, energia própria, separada, tinha de estar funcionando. Sentou-se, tocou a tela. Os dados começaram a aparecer na tela. Clicou em “Status da Missão”. Os estranhos números apareciam novamente:
Ano: 373401 AD
Tempo de viagem: 371.234 anos, dois meses 5 dias 4 horas 48 min 3 seg...
E os segundos e centésimos de segundos rodavam vertiginosamente.
Antes de checar as outras cápsulas, Ron acionou o grande painel para ver o que se passava lá fora. Ele não abriu, não havia energia suficiente. Abriu então, manualmente, algumas escotilhas.
Ficou atônito. Uma grande planeta branco, coberto de gelo, brilhante... Para ter certeza de que era a Terra, verificou a posição da Lua. Lá estava ela com suas manchas e tudo, orbitando em volta de nosso planeta.
Voltou para o computador e clicou em “localização”:
Local: Planeta Terra
Situação:Órbita distante
Status de operação: aguardando autorização para órbita próxima
Ron não acreditava em seus olhos, em seu cérebro, em nada. Resolveu então ver mais detalhes da missão: 7 tentativas de aproximação da Terra em 2181, três falharam, quatro não foram autorizadas. Viu então que Shadow passou a operar em escala total. Trinta e sete anos depois ordenou o auto “adormecimento” e a desativação do Ludic. Bloqueou energia suficiente para a volta para a órbita da Terra no caso de as condições favoráveis retornarem e para a manutenção do sistema de criogenia.
O cérebro de Ron martelava: Mas por quê 371.234 anos?  Ficou imaginando, “nessas centenas de milhares de anos, algo aconteceu no sistema solar...” Imaginou que talvez as consequências do impacto de um enorme meteoro tivesse causado na Terra o bloqueio dos raios do sol...”Mas com todos os sistema de prevenção que tínhamos...? “
Ficou sem pensar nada por um instantes...D aí imaginou que talvez tivesse havido uma deslocação violenta do eixo da Terra...”Mas por quê...?”
Finalmente decidiu verificar o protocolo de emergências. Ficou desolado ao verificar quem em 27 horas e dezenove minutos as condições de habitalidade na nave cairiam para zero. E...logo abaixo vinham as opções de auto-destruição. Ele tinha participado da confecção deste programa. Sabia que a auto-detruição seria automática. Era uma maneira de evitar a captura da nave por inteligências alienígenas que então obteriam informações cruciais sobre nosso planeta, nossa civilização. Você tinha a escolha de antecipar a desintegração da nave. Era uma espécie de “golpe de misericórdia” cósmico...
Ron pensou em acordar os outros. Idiotice. Não daria tempo e só causaria dor. Ele sabia o que tinha de fazer. Aproximou-se da tela e clicou o ícone fatal. O computador começou a contagem regressiva: 37 minutos e uma bomba nuclear interna não deixaria uma partícula inteira sequer.
Ron lembrou-se então dos fortes boatos que ouvira antes de sair, sobre experimentos que estariam sendo feitos em Marte como transposição para mundos paralelos, viagem para outras dimensões e manipulação de sub-partículas descobertas nas últimas décadas. Teriam eles sido cobaias de algum experimento?  Estaria a Terra, circulando bela e cheia de vida em outra dimensão? Não haveria como saber. Tomara que sim...

Se Ron pudesse ter visto, teria gostado do espetáculo. Lá de baixo, sobre a superfície do gelo, foi possível ver uma grande e silenciosa explosão, Silenciosa, pois não havia ar para propagacão do som. O fogo não era vermelho mas sim de um amarelo vívido, com manchas azuis e verdes. Alcançou a enorme planície alva da Terra e reverberou de volta para o espaço. Até o sol desapareceu do céu. Um espetáculo  gigantesco, dantesco e ao mesmo tempo harmônico, estético. Era o fim da “Solution”... Racional como era, Ron talvez também tivesse pensado na ironia do nome de sua espaçonave: “Solution...”. Terminava ali a grande jornada.

Friday, June 1, 2012

Amor, Eterno Amor


Amor, Eterno Amor

Ao contrário do que alguns pensam, há coisas que não têm explicação. Uma delas era o amor que Mário sentia por Regina. Insensato. Absurdo. Sem sentido. Alguns até achavam que era uma doença, mas acreditem, não era não. Amor puro, verdadeiro, paixão sem limites, sem vírgulas ou ponto de interrogação. Só ponto de exclamação e ponto…final. Até a Regina, objeto de tal atenção, achava um exagero e às vezes se perguntava. Não a levem a mal. Ou era incompreensão ou até, quem sabe, uma certa inveja por não conseguir amar nos mesmos e estratosféricos níveis. Mário nem sequer pedia ou sugeria tal retribuição. No fundo sabia que ninguém era capaz de amar assim. Não sei se existe uma explicação para o que vou contar a seguir. No final desta história vou tentar uma solução metafísica, mas vai ser pura especulação.
O que aconteceu foi a inesperada morte de Mário. Um outro motorista, bêbado, encerrou os afazeres de Mário nesta vida. Podia ter matado um outro qualquer, inútil, mau caráter, bandido ou até um suicida que por definição já estivesse querendo morrer. Poderia ter ele mesmo morrido. Qual nada, saiu vivo do acidente e assassinou o maior amante vivo existente na terra. Que fazer? Nada além de chorar, lamentar, chorar de novo. Regina estava inconsolável. O amor de Mário era tão intenso que ela não se dera conta de que um dia ele pudesse desaparecer, quero dizer, ele, o Mário, não o amor. Isso mesmo. O evento passou, velório, funeral, e todos os seres  ligados ao evento também voltaram à rotina da vida. Com o passar dos dias, no entanto, Regina percebeu que, embora Mário não estivesse lá, seu amor estava. Não estou falando figurativamente, não. Ela sentia o amor dele rondando na casa, nas coisas, no pensamento, em tudo que via, sentia ou tocava. A explicação lógica é que o ambiente da casa estava impregnado dele e as lembranças voltavam. Regina começou a sair e ir para lugares que eles não costumavam frequentar, só para testar. Puro engano, pois aquele amor incessante, arrebatador, envolvente e até intrometido, estava em todo lugar. Não era metafórico nem nada. Amor mesmo. Entrava com tudo na cabeça, no coração e na alma de Regina. Ela quase conseguia pegá-lo nas mãos, tão forte era sua presença. Regina, é claro, aceitou e se sentiu feliz por isso. Ao contrário dos amores comuns, esse aumentava ao invés de diminuir com o tempo. Junto com a força que ele adquiria, tornava-se também mais elaborado e  mais sutil e portanto “suportável”, características talvez, do outro lado da existência. Senão, onde iríamos parar com tanto amor assim? E a vida continuou…
Fiquei devendo aquela explicação “metafísica” prometida acima. Talvez seja uma explicação esfarrapada, mas lá vai. Acho que como dizem as filosofias orientais, há um equilíbrio entre as coisas da vida. Ódio e amor, raiva e afeição, saudade e esquecimento, etc…O que seria do universo, se um dos lados começasse a preponderar? Haveria um desequilíbrio cósmico. O amor de Mário era tão forte que houve um princípio de desestabilização. Necessário se fez tirá-lo do cenário.O que iríamos fazer com tanto amor por aqui? Por outro lado, o outro motorista, irresponsável, bêbado, também estava começando a pesar muito do outro lado. De repente teve de sentir um enorme remorso pelo que fez, o que também também equilibrou as coisas no setor.
Não sei se eu mesmo acredito nessas explicações, mas que o amor de Mário era enorme, isso é verdade, e não duvidem não…