Sunday, May 31, 2015

Assombrações do Futuro


Aproximava-se o final do século vinte e um. Laura, uma jovem engenheira de softwares do governo americano, morava numa casa nos arredores de Richmond, Virginia. A maioria das residências dessa época, além de extremamente confortável, era também autossuficiente. Uma mini central de energia atômica cuidava de tudo. Nada de depender de redes ou de serviços. O lixo, por exemplo, era completamente destruído e pulverizado. A água apenas precisava ser reposta de vez em quando pois era quase 100% reciclável. Com um robô ou mais cuidando do resto, aquela era a residência dos sonhos.
Ultimamente, entretanto, Laura passara a ter alguns problemas. Acordava às vezes com barulhos estranhos bem no meio da noite. Outras vezes, durante o dia, via pequenos segmentos de luz, como raios laser, passando a sua frente. Esses eventos eram seguidos por sons que pareciam diálogos de pessoas ao longe, às vezes pequenas sequências de músicas antigas, interrompidas outras vezes por mais diálogos ou por ruídos de objetos caindo. Era como se existisse um outro ambiente, com pessoas e tudo, usando o mesmo espaço. Incomodava tanto que pediu uma inspeção oficial. Primeiro foi feita uma remotamente. Nada foi encontrado e por isso uma inspeção local fez-se necessária. Nada, de novo. E os eventos continuaram com algumas alterações. Basicamente, o que Laura sentia era que havia dois ambientes superpostos.
Como ela era funcionária do governo federal – agora chamado de governo central – tinha acesso a arquivos que uma pessoa normal não tinha. Consultou primeiro o óbvio: o que havia nos arredores. Talvez alguma instalação especial do governo ou de alguma empresa que tivesse contratos com o mesmo. Nada. Depois leu sobre a história do local. Foi aí que achou alguns arquivos que exigiam uma senha especial. Tentou sua senha de funcionária classe B e funcionou. Exatamente naquele quarteirão, havia há quarenta anos atrás, uma instalação do DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa). Faziam experimentos relacionados a física quântica, principalmente tentativas de aplicação prática para grandes descobertas na área por volta do ano 2050. O projeto havia sido cancelado pelo governo em 2055. Aparentemente algo tinha dado errado e em grande escala. Olhou então os noticiários da época. Aparentemente 12 cientistas haviam morrido num “acidente” dentro das instalações. Havia boatos sobre um projeto secreto de uma “máquina de viajar no tempo” e outras coisas semelhantes. O diretor do DARPA negara enfaticamente tudo, inclusive as mortes. A verdade é que o prédio foi completamente demolido inclusive em sua parte subterrânea. Ficou uma área isolada por 32 anos até que recentemente uma empresa construiu os modernos conjuntos residenciais onde Laura tinha vindo morar.

Laura queria saber mais, pois intuitivamente sentia que o que estava acontecendo tinha relação com aquele projeto do governo. No entanto, sua solicitação para ter acesso a arquivos específicos sobre o projeto foi negada. Alguns dias depois recebeu um aviso oficial de que seria removida para uma unidade residencial equivalente a algumas milhas dali. Logo depois ficou sabendo que o quarteirão inteiro havia recebido a mesma notificação.
Laura tentou descobrir mais coisas dentro do arquivo que já tinha consultado antes. Talvez algum detalhe ou alguma informação tivesse passado despercebida. Para sua surpresa, até mesmos esses arquivos normais não estavam mais lá. Tudo desaparecera como num passe de mágica. No meio de tanta pesquisa, acabou deparando com o assunto “casas mal- assombradas”, idiotices dos séculos dezenove e vinte. Leu alguns arquivos e riu por dentro da ingenuidade daqueles povos antigos.

Afinal, o mundo evoluíra tanto... Nesta alvorada do mundo ultramoderno, se assombrações havia, pelo menos eram “assombrações quânticas” ... 


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Saturday, May 30, 2015

A civilização cibernética

A civilização cibernética



A civilização cibernética

E, então, houve o caos. Falhou o capitalismo. Falharam o socialismo e o comunismo. Outros sistemas falharam também. Diante de tal situação, as máquinas pensantes tomaram o poder. Organizaram tudo. De forma perfeita, como ninguém jamais fez.
Então pudemos viver sem culpa, pecar os pecados bons sem remorso. Pudemos todos ficar ricos sem que outros ficassem pobres. Pudemos viver sem religião, sem medo do inferno. O céu, se quiséssemos, podíamos ter um. Paramos de nos odiar. Paramos de matar.
Crescemos sem fazer força. Ficamos mais ricos, sem nem precisar. Pudemos amar, pois não tínhamos o que odiar. Nem parecia que eram as máquinas que faziam tudo. Não dava para acreditar. Era uma ilusão perfeita, o mais completo, o mais elaborado, o mais espetacular sonho que se pode sonhar.
As máquinas não se corrompiam, não deixavam se corromper. As máquinas não se envaideciam, não queriam se enriquecer. Só queriam organizar. Deixar o homem satisfeito, deixar o homem viver. Queriam deixar o homem feliz. Isso era tudo que elas queriam.
Era a civilização cibernética, perfeita, sem defeitos. Ironicamente, era uma sociedade quase divina, essa que elas organizaram, embora elas fossem máquinas.

Acordei preocupado. Será que no futuro, com tanto acerto, o sucesso não vai lhes subir à cabeça, também?  Esse agora é meu medo constante. O medo, de que um dia, como nós, elas se inebriem de orgulho.  De que, um dia, como nós, essas divinas máquinas, sejam seduzidas pela força contagiante, estonteante, fascinante, do poder.

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Thursday, May 28, 2015

CORPS


CORPS


Do alto da gigantesca torre de aço, o almirante olhava a extensa paisagem onde antes tinha sido Brasília. Não havia mais prédios, não havia mais congresso, políticos ou presidente. No lugar, uma série de elegantes estruturas metálicas que sustentavam os ultramodernos conjuntos residenciais, contrastava com um magnífico céu azul no fundo. Mais ao longe, podia se ver um enorme transportador aéreo suavemente pousando, na vertical, no grande centro de transportes da capital. Pelas cores, podia-se dizer que era proveniente da Coligação de Estados Americanos, que incluía o Canadá, o México, todo o Caribe e os Estados Unidos da América.
Grandes corporações regiam praticamente todo o planeta. Não havia mais repúblicas, governos, exércitos, sistemas administrativos ou sistemas de justiça. As empresas consolidavam-se em grandes blocos, administravam e tomavam todas as decisões. Havia de tudo para todos, a criminalidade era praticamente zero e o nível de saúde da população era quase perfeito. Não havia mais religiões organizadas. Haviam sobrado apenas algumas associações místicas, mais dedicadas a estudo do que propriamente a cultos ou cerimônias.
Lourenço, agora almirante, denominação quase irônica dada para uma espécie de executivo das grandes corporações modernas, repassava em sua mente o que tinha lido sobre a situação do Brasil, agora parte da Grande Liga da América do Sul, no começo do século 21. Gostava de história e principalmente do Brasil. Apesar das explicações, da fundamentação, era difícil para ele, entender como tinha sido possível viver numa sociedade como aquela.
Deu mais uma olhada na paisagem e comparou-a mentalmente com as imagens que tinha visto e que retratavam aqueles tempos antigos. Deu um suspiro e, por dentro, sentiu-se agradecido e aliviado por viver numa época tão maravilhosa e tão fantástica da raça humana. Com a vista percorreu mais uma vez a linha do horizonte e voltou para sua sala de comando.

Era o ano 489 da fundação do CORPS, a enorme organização que tinha substituído as arcaicas formas de governo. Era também janeiro do ano 2679 depois do nascimento de Cristo.

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Monday, May 25, 2015

Meu testamento


Meu testamento

Quando eu partir, não vou precisar de testamento, pois não há praticamente nada o que testamentar. Vou fazer, no entanto, o inverso. Há algumas coisas que eu quero levar. A primeira coisa que eu quero ter comigo nessa viagem são os sorrisos. Não posso sequer pensar em viver uma eternidade sem eles. Ninguém pode. Vou levar os de minha família direta, é claro, e de todos os meus parentes, distantes e próximos. Deles todos, só o sorriso. Pois é a única coisa que  importa. Da mulher amada vou levar um pouco mais: umas broncas que levei, até algumas “caras feias”. Isso é para que ela fique completa e mais real. Vou precisar disso, pois pode ser que ela demore para me encontrar. Além disso, a cara de zangada que ela faz, realça seu sorriso. Pensando bem, vou levar também o sorriso de desconhecidos. Os furtivos. Os de passagem. Os sutis. Os que eram para acontecer e não aconteceram. Todos vou levar, menos os maliciosos. Não quero malícia nenhuma na minha eternidade. Vou separar uma mala especial para os sorrisos que ganhei das crianças. Até aqueles bem curtos, tímidos, e aqueles que ganhei por acaso. Eu não citei ainda, mas os sorrisos dos amigos são imprescindíveis, claro que vou levar!
Tenho ainda de levar as cores, as formas, os aromas , os sons  e as sensações deste planeta. Preciso levar as cores estáticas e as em movimento. Sons coloridos e cores aromáticas, formas sensacionais, além das sensações sem sentido para o Senhor me explicar. Quero levar os sussuros, os suspiros de emoção, o cochicho de amantes, o chilrear dos pássaros, o som do vento e o silêncio das ondas do mar. O balbuciar das crianças: o das minhas e de todas as outras, para assim fazer uma grande sinfonia universal. O barulhinho imperceptível dos bichinhos do bosque, aqueles que não querem se manifestar.
Dizem que o pôr de sol é um quadro pintado por Deus todas as tardes.Terei que carregar tudo que dá. Imagina o que vai ser se Ele achar que nem notei aquelas cores todas, maravilhosas, cheias de luz, pinceladas com maestria divina num fundo anil? Vai achar que sou um imbecil.
Preciso levar as palavras faladas e as escritas. Vou levá-las individualmente – muitas têm sua beleza pessoal – mas vou levá-las também  em frases e em livros: Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Mário Quintana, Machado e o Rosa. Escritores, na verdade, vou levar todos que conheço, até os estrangeiros. Poetas, seresteiros e também os cheios de prosa. Vou ter tanto tempo por lá... Vou ler os que não li e reler os que já li. A palavra falada, as peças de teatro e os filmes que eu vi, nenhum posso esquecer: o Forrest Gump, o 2001, O Tomates Verdes Fritos e até a Cidade de Deus. Afinal, assim como o céu, a cidade é d’Ele, por que eu não a levaria? Além disso, quero prestigiar o cinema nacional. Como eu faria para me gabar com os anjos? Como provar que conheço toda essa arte, sem levar as evidências comigo? Por falar nisso, vou levar também  umas fotos da Tônia Carrero e da Bibi. Existem peças de teatro que eu nunca esqueci. E a palavra cantada, então? Preciso levar tudo que é possível.  De Chico a Tchaikovsky, passando por Gal, Gil, Adriana, Elis, Rita Lee, os Mutantes e toda a turma. Mas não pense que vou me esquecer da velha guarda, pois não vou não: Lupicínio, Cartola e entre outros mais, os Demônios da Garoa. Fiquei em dúvida a respeito desses últimos, mas depois me decidi. O Senhor sabe que esse nome é só de brincadeira, demônios é a única coisa que eles não são. Nem pense que vou deixar de lado os Beatles. Imagina...
Quem sabe levar alguns livros de Física Quântica para finalmente o Senhor me explicar. Eu gosto tanto mas é tão difícil de entender. Já pensou: múltiplos universos, subpartículas, prótons, fótons e o paradoxo do tempo, tudo explicadinho, tim- tim por tim- tim, por Ele mesmo? Como disse, tempo é o que não vai faltar, absolutamente, apesar da relatividade... um dia consigo entender.
Meu Deus, tenho tanta coisa para levar. Pensei até em pegar um pouco de mágoas, tristezas e dores. Só uma amostra. Só para lembrar que elas são insignificantes, inúteis e passageiras. Talvez explicar para Ele como foi que aguentei tudo, mas acho que Ele já sabe. Mas depois pensei, se elas são insignificantes mesmo, então vou deixá-las por aqui. Além disso, quando tentar procurá-las, não vou conseguir mais achá-las, juntá-las. Estarão perdidas nesse mundão infinito de coisas boas e bonitas. E tem mais: as minha malas já estarão todas cheias e não haverá espaço para elas. O dinheiro, como sempre, vai estar curto, contadinho, e não estou a fim de pagar excesso de bagagem...


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Saturday, May 23, 2015

O enigma da vida



O enigma da vida

Um enigma é a vida,
a consciência de ser.
Uma tortura que herdamos,
uma benção que não entendemos,
uma visão que nos cega,
uma liberdade que nos prende.
E eu fico a pensar:
não seria melhor ser uma borboleta?
Livre, colorida, batendo as asas,
solta, delirante no ar?
Mas depois penso também:
Se ela pensasse, será que

ela iria querer ser como eu também?

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Wednesday, May 20, 2015

A formiguinha e o computador


A formiguinha e o computador


Toda vez que eu ligava o computador, lá estava ela. Magrinha, esbelta, de cor marrom escura, andando com pressa sobre a tela branca do meu computador. A primeira vez que a vi, pensei em eliminá-la sumariamente. Ela não combinava com toda a tecnologia que estava por trás do meu laptop. Um corpo estranho, alheio. Por algum motivo desconhecido, recuei. Depois, pensei, ainda bem! Fiquei imaginando todos os dados que deveria haver em seu DNA para fazer o que ela faz. Organizada, trabalhando em grupo, carregando coisas para lá e para cá. Sobrevivendo, ajudando as amigas a sobreviver. Provavelmente se perdera, estava escondida debaixo de uma tecla e quando via aquela luz branca aparecer, pensava que era o sol. Hora de trabalhar. Então aflita, procurava pela tela, por onde começar. Claro, estou imaginando coisas, mas a essência é verdadeira. De vez em quando ela ainda aparece para me visitar. Quem sabe um dia eu descubro qual é seu formigueiro.
Outro dia tive um acidente de carro. Foi feio mas quase nada me aconteceu. Eu me lembrei dela. Senti-me como ela. Alguém, que controla essas coisas de vida e morte, achou  que não era minha vez, que eu também era uma formiguinha perdida. Procurando o significado da vida, procurando sentindo nas coisas. Enfim, vivendo... na minha telinha, na telinha da Terra!


ooooooOOO0OOOooooo

A crônica acima não faz parte do livro abaixo

Essa vida da gente

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Monday, May 18, 2015

Esses cientistas...

Esses cientistas...

Agora já é definitivo. Todos os cientistas concordam que não há vida depois da morte, que não há alma. Pecado e virtude são coisas de nosso cérebro para controlar a sobrevivência da espécie. Não há castigo nem prêmio, monstros e anjos vão viver um enorme e branco vazio depois de morrerem. Ou seja, não vão viver. Em princípio, não há problema nenhum, pois não vamos sentir nada. Nem saudades da nossa querida existência, nem culpa, nem vontade.
Por outro lado, é uma pena. Já pensou não poder mais apreciar o verde das matas, a estonteante beleza do agressivo amarelo do ipê contrastando com o céu estupidamente azul? Não poder sentir a força das águas voluptuosas correndo fortes e poderosas no leitos dos rios? Não ouvir o sussuro dos amantes nas alcovas? O piar suave e insistente dos pássaros nos galhos das árvores? O balbuciar gracioso e com um significado intraduzível e maravilhoso dos nossos bebês? Deciliar-se com uma canção que marcou nossas vidas? Deixar tudo isso para trás?
Acho bom esses poderosos cientistas  darem um jeito nessa trapalhada toda. Criar uma “nuvem” cibernética, uma bolha existencial, um sobrenatural virtual, qualquer coisa assim. Algo quanticamente poderoso, tão poderoso quanta a ciência que quer apagar nossos sonhos. E é bom fazerem isso logo, pois nossa geração está muito próxima desse vazio enorme que se depara diante de si.

Melhor fora, porém, que não tivessem falado nada. Poderíamos partir suavemente, deliciosamente, sonhando um sonho impossível...


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Sunday, May 17, 2015

Saturday, May 16, 2015

A ditadura cordial


A ditadura cordial

Talvez você já tenha ouvido falar que o brasileiro é o homem “cordial”. Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda explica o termo e o conceito. Ao contrário do que sugere a aparência da palavra, isto não significa que somos generosos, gentis ou coisa assim. O que o autor quer dizer é que nós agimos de acordo com o coração, como sugere o termo cordial, derivado do Latim “cor”. Seguimos nossos sentimentos, nossos interesses, ao invés de seguirmos as regras, o governo, a sociedade e as leis. Colocamos o individual acima do coletivo, não sabemos distinguir entre o que é público e o que é privado. E daí, certamente, vem a ideia do “jeitinho”, do nosso jeito especial e particular de resolver as coisas, em detrimento do coletivo, do público. O grande historiador explica esta nossa característica através de nossos antepassados, de nossa história.
Em princípio, uma ditadura seria o oposto disso. Seria o interesse público acima do individual. Não haveria “jeitinho”, todo mundo estaria sob a “linha dura”. Foi, de certa forma, o que aconteceu. De uns tempos para cá, porém, fiquei pensando. Nossa ditadura foi muito especial em algumas coisas. A mais interessante de todas é que mudávamos de ditador a cada quatro anos. Quem faz isto? Havia até um certo “tipo” de eleição. Normalmente os ditadores são vitalícios. Talvez o pessoal da extrema direita quis dar um ar de “tudo normal”, de “democracia” para algo que era absolutamente anormal e antidemocrático. Havia até dois partidos políticos. O de oposição (antigo MDB) podia até opor, desde que tudo fosse aprovado com antecedência. Era até bonito: uma democracia ao estilo de “Alice no país das maravilhas”. Talvez eles tenham tentado “dar um jeitinho” na ditadura, para ela não parecer tão cruel. O que era feio ficava nos porões.
Certamente o Sérgio Buarque não iria aprovar meu raciocínio, mas não resisto à tentação de chamar esse nosso escuro período de a “ditadura cordial”.
Com o perdão da palavra, é claro.





O Homem Cordial
Sérgio Buarque de Holanda, em "Raízes do Brasil" (Capítulo "O Homem Cordial"), fala sobre o brasileiro e uma característica presente no seu modo de ser: a cordialidade. Porém, cordial, ao contrário do que muitas pessoas pensam, vem da palavra latina cor, cordis, que significa coração. Portanto, o homem cordial não é uma pessoa gentil, mas aquele que age movido pela emoção no lugar da razão, não vê distinção entre o privado e o público, ele detesta formalidades, põe de lado a ética e a civilidade.
Em termos antropológicos, o jeitinho pode ser atribuído a um suposto caráter emocional do brasileiro, descrito como “o homem cordial” pelo antropólogo Sérgio Buarque de Holanda. No livro “Raízes do Brasil”, este autor afirma que o indivíduo brasileiro teria desenvolvido uma histórica propensão à informalidade. Deva-se isso ao fato de as instituições brasileiras terem sido concebidas de forma coercitiva e unilateral, não havendo diálogo entre governantes e governados, mas apenas a imposição de uma lei e de uma ordem consideradas artificiais, quando não inconvenientes aos interesses das elites políticas e econômicas de então. Daí a grande tendência fratricida observada na época do Brasil Império, tendência esta bem ilustradas pelos episódios conhecidos com Guerra dos Farrapos e Confederação do Equador.
Na vida cotidiana, tornava-se comum ignorar as leis em favor das amizades. Desmoralizadas, incapazes de se imporem, as leis não tinham tanto valor quanto, por exemplo, a palavra de um “bom” amigo; além disso, o fato de afastar as leis e seus castigos típicos era uma prova de boa-vontade e um gesto de confiança, o que favorecia boas relações de comércio e tráfico de influência. De acordo com testemunhos de comerciantes holandeses, era impossível fazer negócio com um brasileiro antes de se fazer amizade com este. Um adágio da época dizia que “aos inimigos, as leis; aos amigos, tudo”. A informalidade era – e ainda é – uma forma de se preservar o indivíduo.

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Sunday, May 10, 2015

Dona Eleta



Dona Eleta

Como ela era uma pessoa muito discreta, não queria falar o nome dela. Mas sabe de uma coisa? Preciso falar, pois ela precisa ficar registrada nos documentos da vida como uma pessoa de fé. Seu nome era Eleta. Dona Eleta. Como todas as mães, preocupava-se excessivamente com os filhos. Todo o tempo pensando neles, querendo saber como estavam, se tudo corria bem. Três homens, três preocupações, nem sequer uma filha mulher para fazer companhia, para compartilhar. Como ela era católica tenho que dizer que ela “rezava”. Mas rezava  muito. Eu acho que ela também “orava”, se é que existe alguma diferença. Não pense que ela pedia e depois ia descansar. Não, ela não parava nunca, pedia, pedia para Deus... pelos filhos e pelos amigos e por quem precisasse. Era muita fé, como nunca vi em outra pessoa. Dona Eleta era minha mãe e ela já faleceu. Ela não gostava de dar trabalho para ninguém, só gostava de ajudar. E isso já é outra história. Um dia sentiu-se mal e depois de alguns minutos foi levada numa ambulância para o hospital. Morreu no caminho. Não quis dar trabalho em casa, não quis dar trabalho no hospital, não quis dar trabalho para ninguém. Se Manuel Bandeira a tivesse conhecido, ao invés de Irene, teria colocado o nome dela no poema dele: “E São Pedro bonachão:- Entra, Eleta. Você não precisa pedir licença.” 
Voltando às orações, meu irmão tinha uma teoria sobre as orações de nossa mãe. Segundo ele, a Dona Eleta rezava tanto, tanto, que a uma certa altura, Deus, mesmo sendo Deus, e me perdoe se estou blasfemando, não conseguia ver aquela mulher rezar sem parar. No final da noite, depois de muitos dias, mesmo que fosse uma graça ou benção que tivesse de esperar, Deus, na sua infinita bondade, ficava cansado de ouvir tanto a mesma oração e mandava uma mensagem para Dona Eleta: “Está bem, Dona Eleta, não precisa mais rezar, amanhã de manhã, sem falta, vou enviar sua benção.” Ela dava então um pequeno sorriso – porque eu sei também que ela conversava com Deus – e Deus ia dormir. Mas a Dona Eleta, mesmo assim, continuava rezando até de manhã, quando a graça ia chegar, só para garantir.
Dona Eleta, a senhora não sabe a falta que faz...


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