Wednesday, December 30, 2015

Um trem muito louco

Um trem muito louco



Estava ali na estação, esperando pelo meu trem. Graças a Deus, não era subúrbio, era um daqueles bem confortáveis,  de longo percurso. Ele chegou e nós partimos. Acelerou tão rápido que até me assustei. Num instante alcançou tão alta velocidade que pensei  ter entrado, por engano, num avião. Provavelmente era movido a energia atômica ou plasma, vai se saber. Daí percebi que ele não respeitava trilhos, fazia seu próprio caminho. Num instante tinha passado pelo Paraná e já estava em Santa Catarina. Louco, desvairado trem. Vi a beleza do Sul, vi Gramado e Canela. Vi alemães falando alemão de verdade e, num piscar de olhos, lá estava eu nos Pampas Gaúchos. Do churrasco, só o cheiro. Uma beleza sem fim, danado de trem.
Não sei que atalho ele pegou que, de repente, estava nos levando de volta para o Norte. Depois de passar pelas praias do Rio, sem incidente nenhum, dá para acreditar, varou como um raio pelo litoral do Espírito Santo e diminuiu um pouco a velocidade na Bahia. Acho que era para a gente poder olhar aquela beleza de mar. E o mesmo fez com todo o Nordeste. Foi mostrando aquela areia bonita, aquele sol insolente escancarando a paisagem.  Mas, acho, ele estava com pressa. Quando percebi, já era o rio Amazonas que serpenteava ao longo de nosso caminho. Às vezes ele se aproximava perigosamente das águas. Pudemos ver índios caçando animais, homens caçando índios  e índios, nunca antes vistos, se escondendo dos homens brancos. Fomos longe, bem longe, dentro da mata, e depois começamos a virar para a esquerda, Estávamos descendo. Vi  jagunços derrubando árvores. Madeira de lei. Vi outros caçando animais e prendendo pássaros que eram para estar voando.
De repente, pude ver lá na frente uma paisagem muito conhecida. Eram os prédios de Brasília. Palácio da Alvorada, Praça dos Três  Poderes e outros estranhos poderes que não estavam em prédio nenhum. O trem diminuiu muito a velocidade. Estava quase parando. Entretanto, quando ninguém esperava, começou a acelerar de novo, como doido, como se quisesse passar logo por lá, passar por cima de tudo, como se quisesse fugir. E assim fez. Desta forma, quando passávamos pela Esplanada dos Ministérios, a velocidade era alucinante. Foi aí que aconteceu o que não poderia acontecer. O trem descarillhou.  Não sei como, acabou  atingindo  o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Foi uma confusão geral. Levantei-me dos destroços e me apalpei bem para ver se tudo estava em ordem. Por todo lado, porém, havia muito grito e muita dor. Funcionários públicos mancando, deputados e senadores, andando a esmo, perdidos naquela esplanada sem fim. Desesperados, sem seus gabinetes, sem seus assessores. Não havia mais status nem ordem, nem a estabelecida, nem nenhuma outra a ser instituída. Acho que nem um Ato Institucional funcionaria, nas circunstâncias.
Dava dó ver aquela gente tão importante ali, desesperada, como se fosse uma gente qualquer. Aquilo era o caos, o fim do mundo, o inimaginável.
Ou será que era o recomeço de uma linda e maravilhosa época, de uma paz e prosperidade sem fim?


o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o



 Lançamento no Clube de Autores:  Insólito 

Para comprar no Brasil ( impresso ou e book) clique: 


Para comprar nos Estados Unidos clique

Canis majoris

Canis majoris


Dizem que a estrela VY Canis Majoris é provavelmente a maior estrela do Universo. Um avião, voando a 900 km por hora, demoraria 1100 anos para dar uma volta inteira a seu redor. Dá para imaginar? A Terra é quase um grão de areia perto dela. Ainda assim, você mal pode vê-la no infinito do céu.
Ela está lá, fazendo o que uma estrela faz. Brilhando, brilhando. Certamente, por causa de seu tamanho, deve estar atraindo outros corpos celestes, talvez planetas como o nosso.
Nós, aqui na Terra, fazemos o que os humanos fazem. Legislamos em causa própria, somos arrogantes, adoramos ficar ricos, temos muito orgulho por coisas que não têm valor. Adoramos deuses que não existem e deixamos de honrar seres que merecem respeito. Não somos todos assim, mas uma boa parte de nós é.

Pois é, somos mesmo um grãozinho de areia perto da VY. É difícil entender como tanta arrogância pode caber numa ínfima partícula de pó. Mistérios do universo...


                                   <o><o><o><o><o><o><o><o>


 Lançamento no Clube de Autores:  Insólito 

Para comprar no Brasil ( impresso ou e book) clique: 


Para comprar nos Estados Unidos clique

Monday, December 28, 2015

Mentiras, mentiras

Mentiras, mentiras



Quantas mentiras já foram faladas desde que o homem aprendeu a falar? Quantas falsas declarações de amor, no aconchego dos lares, nas alcovas? Quantas mentiras de gente importante, de presidentes, de líderes, de ídolos que chegamos a amar?
Quantas mentiras por necessidade, por apuro? Quantas outras, tolas, sem necessidade, só pelo prazer de mentir? Quantas mentiras para gente da própria família, para um irmão, para um pai? Quanta mentira oficial, juramentada, legalizada, autenticada?
Quanta mentira falada, escrita, gravada? Quantas mentiras lavadas, embrulhadas, com lágrimas fortes, pesadas, quase reais?
Esse mundo é feito de mentiras, e, se eliminássemos todas elas, de repente, pouco restaria. Ao contrário, com elas, daria para se fazer um mundo inteiro, todo um universo, quase completo. Faltariam,  apenas, alguns pequenos detalhes aqui e ali. Pequenos, mas importantes: seriam as pouquíssimas verdades que se perderam no vasto engano de nossa existência.
.


----------------------------------------------------------------------------------
 Lançamento no Clube de Autores:  Insólito 

Para comprar no Brasil ( impresso ou e book) clique: 


Para comprar nos Estados Unidos clique

Friday, December 25, 2015

Lição de Geografia












Lição de Geografia

Lá vou eu trabalhar na minha honrosa profissão de motorista do “INPS”( Ainda existe? Mudou de nome?). Henry era meu novo passageiro. Americano típico, “nascido e criado" na Flórida, como se costuma dizer por aqui. Começamos nossa conversa como sempre se começa quando você vê  alguém pela primeira vez: tempo, notícias locais, etc... Não passamos de 10 frases e Henry, falador, se interessa pelo meu sotaque denunciador e pergunta se sou de “Puerto Rico”. Aliás, ele não perguntou, ele só queria confirmar.  Parecia “sabidão” e gostava de mostrar isso. Neguei enfaticamente:
-Não senhor, sou do Brasil.
E pronunciei tudo da forma mais americana que consegui. Ele queria duvidar, mas não podia e acabou se conformando em não ter acertado.
- Mas vocês também pertencem aos EUA, não? Não são um território?
Não sabia se ele estava tentanto consertar o erro, se ele estava sendo irônico ou se aquilo era pura ignorância. Como pude constatar durante o resto de nossa viagem, era, definitivamente, pura ignorância.
-Não, não, senhor, o Brasil, até onde sei, (e aí eu estava sendo irônico) ainda (ou já)  é independente.
“ Claro”, ele disse, como quem dissesse, “eu já sabia, só estava testando você...” 
-Então, meu amigo, você também veio para cá para fugir do Chavez, do comunismo?
Por algumas frações de segundos, ainda pensei novamente que ele estivesse “me gozando”, mas daí voltei para a realidade: era um novo ataque maciço de ignorância...
-Não, meu senhor, nosso presidente é o Lula (ainda era o Lula naquela época).
 Ele coçou o queixo, meio duvidando. Pensou um pouco e depois falou:
-Mas o Lula não é aquele fulano da Bolívia que também é comunista?
Antes que eu pudesse responder, continuou com suas pérolas político-geográficas...
-Já sei, o Lula fica na Bolívia e a Bolívia é a  capital do Brasil, certo?
Expliquei calmamente que a capital do Brasil era Brasília, mas ele não conseguia fazer a distinção entre as palavras Brasil e Brasília e eu simplesmente afirmei categoricamente que a Bolívia e o Brasil eram vizinhos, tinham presidentes diferentes e nenhum dos dois pertencia aos EUA. Quanto a ser comunista, não sei, hoje estas coisas estão cada vez mais nebulosas. Diante de uma ligeira irritação na minha voz e minha afirmação insofismável, recuou, aceitou, mas não com humildade. Aceitou com arrogância, se é que isto é possível. Mas antes de depor as armas, soltou mais uma para os anais da história, quero dizer, da geografia:
-Quer dizer, que seus dois países (a Bolívia agora também era meu país, junto com o Brasil) estão ali juntos, na América Central, perto de Cuba, certo?
Aí então foi que eu notei que ele, na verdade, tinha obsessão por comunismo. Pensei em explicar para ele que praticamente comunismo não existia mais, que ele não precisava ter medo, etc, mas imbuído de orgulho nacional, expliquei para ele que o Brasil, de tão grande (até me lembrei do Hino Nacional), jamais caberia na América Central, que precisaríamos de diversas Cubas e diversas Bolívias para chegar ao tamanho do Brasil. E tem mais, falei:
-O Brasil é um país lindíssimo, mais de 2000 praias, mulheres maravilhosas, carnaval e tudo mais. Me empolguei. Fiquei até com vontade cantar “moro num país tropical, abençoado por Deus...” Não cantei,  mas diante de seu olhar estupefato, não aguentei e soltei ainda mais:
-E tem mais uma coisa: no Brasil não tem violência e não tem corrupção!
Eu sei que exagerei, mas não podia perder aquela chance de dizer isto e resgatar meu orgulho nacional. Afinal, quando vou poder dizer isto outra vez e , além do mais, quem mandou a geografia do Henry ser tão ruim assim?
 Lançamento no Clube de Autores:  Insólito

Para comprar no Brasil ( impresso ou e book) clique: 


Para comprar nos Estados Unidos clique

Thursday, December 24, 2015

Meu conto de Natal

Meu conto de Natal



Não é apenas um conto, realmente aconteceu. O Natal estava chegando e a família toda foi para Santana do Parnaíba. Uma longa viagem, embora não pareça. O primeiro trecho era de trem até a Lapa. Depois, outro trem, da Sorocabana, até Barueri. Depois, finalmente o ônibus, até Parnaíba. Cinco, seis horas? Não sei, quem contava? Era tudo festa. Pai, mãe, crianças, malas. Lá nos esperavam tios, tias, avôs e avós. Devia ser muito pequeno, pois é o primeiro Natal de que me lembro. Certamente os anos eram os 50.
Era tudo novidade. A venda do meu avô, com todos aqueles doces e balas, sem restrição. A gente correndo por entre os sacos de feijão e arroz. Eu me lembro até daqueles rolos de fumo de corda, cuja utilidade então eu não entendia.
Havia também o quarto de minha vó Antonia. Lembro-me de abrir a primeira gaveta de baixo da cômoda, de pisar nela para alcançar a última e... tomar posse daqueles binóculos antigos. Depois colocava uma cadeira junto à janela e começava a minha pesquisa. No começo era difícil. Não conseguia acertar o foco, vinham aquelas cores do arco-íris, tudo era nebuloso. Depois, porém, tudo se firmava. Podia ver o velho Ford na rua de baixo, o homem com sua carroça mais à frente, crianças brincando mais adiante ainda. Era um milagre. Aquele aparelho era uma mágica.
E a noite de Natal estava bem perto. Alguém me explicou que, de manhã, eu tinha de olhar embaixo da cama, para ver o que o Papai Noel tinha trazido. Quando percebi, a noite chegou e com ela o dia seguinte. Assim que acordei, eu me lembrei das orientações e fui ver o que estava me esperando. Lá estava um caminhãozinho de madeira. A cabine era de um vermelho vivo, a carroceria eram três pequenas tábuas cercando o perímetro da carga. A carga? Uma bolinha de gude. Decepcionado?  Que nada, eu estava encantado. Posso ver até hoje, todos os detalhes do meu maravilhoso presente.
Meus primos ganharam muito mais presentes e bem melhores. Mas eu não sabia disso. Certamente seus pais podiam, os meus não.  Nunca liguei para essas coisas. Aquele foi, de longe, o melhor presente de Natal de toda minha vida.


o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o


Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------

Para adquirir este livro nos Estados Unidos 

Monday, December 21, 2015

A Sala dos Manjares Celestiais

A Sala dos Manjares Celestiais
(lembranças do seminário)


“... Se me ouvis, comereis excelentes manjares,
uma suculenta comida fará vossas delícias..”(Isaias 55,2)


Além das obrigações normais como seminarista, tínhamos de executar funções específicas que recebíamos a cada seis meses num sistema de rotatividade. Uma das funções que eu exerci requeria que passasse constantemente pelo refeitório dos padres. Normalmente estava fechado, mas às vezes, por algum motivo, a grande porta de duas folhas estava escancarada. Havia uma grande mesa coberta com uma toalha branca, toda trabalhada com bordados. Em cima da mesa, bem no centro, uma grande jarra. Cristaleiras e outros móveis finos ficavam juntos à parede. Era tudo muito refinado e elegante. Algumas vezes, eles tinham acabado de cear e eu podia ver ainda as bandejas e os pratos com os restos da refeição. Era um aroma delicioso; de carne assada, de outros pratos divinos que não conseguia definir. Tudo arrematado por um aroma de café fresco. Certamente era um local proibido para nós e eu nem ousava olhar com muita atenção. Com o tempo, criei coragem e dava uma parada para examinar melhor. Era majestoso. Parecia um manjar de deuses, pelo menos comparado com a nossa comida. Algum tempo depois, tendo olhado para todos os lados, ousei entrar... abri a jarra e agarrei alguns biscoitos. Saí rápido e fui comê-los no banheiro. Nunca havia saboreado algo tão delicioso! Sabia que aquilo era um pecado grave, mas não mortal. Achei que valia a pena. Duvidava que o Ser Supremo me mandasse para o inferno por aquilo. No máximo, um pouco de purgatório. Fiquei acostumado e sempre que possível, repetia a operação. Até hoje refiro-me àquele refeitório como  a “Sala dos Manjares Celestiais”... Os padres eram amantes de Deus mas certamente gostavam de comer bem.

Lançamento:

Um livro importante para quem está aprendendo Inglês

Minidicionário de expressões e phrasal verbs 
da Língua Inglesa

Saturday, December 19, 2015

Estou sonhando


Estou sonhando

Sonho sim, estou sonhando:
com o passado insensato,
com o futuro improvável
e com um presente de horrores.
Com um precioso diamante,
uma terra longe, distante,
plantada com muitas flores,
um azul estúpido de anil.
Sonho com a ciência eloquente,
com a religião inconsequente,
de um arcanjo voraz.
Sonho com os Beatles, com a Elis:
regina, rainha da paz,
com Pixinguinha, Cartola e tais.
Sonho com donzelas sensuais,
com uma história feliz,
onde sou um herói audaz.
Estou sonhando com a vida,
vivendo com meu sonho,
com medo de um dia,
sem mais, nem menos
ele simplesmente acabar.

==(((()))===


Lançamento no Clube de Autores:  Insólito

Para comprar no Brasil ( impresso ou e book) clique: 


Para comprar nos Estados Unidos clique

Thursday, December 17, 2015

O zepelim azul

O zepelim azul



Era um lindo zepelim azul, tendo como fundo, o outro azul infinito do céu. No começo, ninguém percebeu. Era uma cor em cima da mesma cor, quase não dava para notar. Aos poucos, porém, aquela visão fantástica chegou tão perto, que a palavra se espalhou.  E vieram crianças, e vieram adultos, casados, solteiros, e por casar. Padre, prefeito, vereadores e tudo mais. Gente que nunca saía, saiu. Todos, boquiabertos, olhando para cima. E aquele dirigível enorme foi chegando e baixando cada vez mais. Já quase tocava a torre da igreja, da cidade o ponto mais alto. Suspiros, gritos de exclamação. Havia cestas de vime penduradas, como aquelas que se penduram nos balões de ar quente. E como aquele gigante voador era da mesma cor do firmamento, as cestinhas pareciam flutuar, sozinhas, mágicas, no espaço. Dentro delas, pessoas certamente nobres. Pareciam reis e príncipes  e assim se vestiam. Monárquicas vestimentas, vermelhas, verdes e azuis cobriam seus corpos. Lantejoulas. Gala total. Barbas reais e bigodes cobriam seus rostos. Véus sutis cobriam das madames os rostos, e penas, raras e caras, saíam de seus chapéus. E a real caravana, acenava, orgulhosa, benigna e condescendente, lá do alto. O prefeito fazia sinais mostrando o ideal lugar para se pousar. No chão, se apresentaria como o regente local, se ajoelharia e, do supremo monarca, as mãos beijaria. De repente, porém, o dirigível começou, novamente a se mover. Foi, devagar, se afastando, sem o chão tocar. Ainda, ao longe, as figuras reais, acenavam, fascinantes, com um distante sorriso no vazio do ar. Aquele ponto azul foi diminuindo, diminuindo. Finalmente sumiu no anil estúpido do horizonte.

As esperanças, doces e tênues, esmoreceram. No peito daquela gente sofrida, o vazio, que já era grande, aumentou. Naquele dia de sol infinito, o zepelim malvado tinha sido apenas uma vã esperança, um sonho desnecessário, quase um engodo. Toda aquela gente perdeu seu rei. O rei que nunca existiu...

Histórias do Futuro




Para adquirir este livro no Brasil 



Para adquirir este livro nos Estados Unidos 

Wednesday, December 16, 2015

Tenho pena



Tenho pena

Tenho pena do homem raivoso,
do homem irado, nervoso,
que espreita feroz na esquina.
Tenho pena do homem que se confina,
assustado com seu próprio eu.
Sinto pena do homem que se ilude,
e que, confuso, se engana amiúde.
Muita pena mesmo eu sinto
de quem pensa que tudo é verdadeiro,
que acredita na mentira que escuta,
como verdade, pura, absoluta.
Do homem que espalha medos,
os medos que tem dentro de si
e outros que não são segredo.
Do homem que tem poder de agir,
mas que não sabe usar ou definir.
Pena do homem que não tem pena
e que nem sabe o que é penar.
Mas os que me dão mais pena mesmo,
são os homens que não sabem pensar
e aqueles coitados que nem sequer
sabem que não sabem amar.

Histórias do Futuro




Para adquirir este livro no Brasil 



Para adquirir este livro nos Estados Unidos 

Sunday, December 13, 2015

Teatro no ônibus

Teatro no ônibus



Tilico, apesar de pobre, sempre gostou de teatro. Quando era muito pequeno, e ele ainda estava na escola, a professora trouxe um grupo teatral que se apresentou no pátio do estabelecimento. Ele se lembrava de todos os detalhes e se apaixonou pela arte.
Nunca teve chance, porém. Não demorou muito e precisou abandonar a escola. Logo depois morreu seu pai e, logo a seguir, sua mãe. Cada filho foi parar numa família de parentes. Todos tinham seus problemas, mas deram um jeito de não deixar os pequenos abandonados.
Depois que fez 14 anos, entretanto, arrumou um trabalho que, pelo menos, dava para financiar suas próprias coisas, uma vez que comida e moradia seus tios conseguiam prover. Todo dia pegava um ônibus de manhã e voltava no final da tarde. Sorte sua, o emprego era em outro bairro e não no centro e, por isso, o ônibus não era tão cheio. Foi aí que ele teve aquela ideia. Fazer uma mini peça de teatro e se apresentar ali, no ônibus mesmo. E se o pessoal gostasse? E se alguém o visse e conhecesse alguém de teatro? A gente deve tentar sempre, não deve? Além disso, os passageiros tinham de ficar aquela meia hora na condução mesmo, por que não diverti-los com um pouco de arte?
Fez um enredo, bem simples, com dois personagens. Um deles era um garoto da idade dele mesmo. Ele fazia os gestos e as falas, O outro personagem era um adulto. Ele tinha de fazer também. Quando chegava a hora do outro falar, ele ficava de costas e imitava voz de adulto. O enredo era que um assaltante – o adulto – chegou e apontou a arma para ele, um funcionário. Daí ele fez um pequeno diálogo em que o seu personagem  tenta convencer o assaltante a desistir daquilo e ir embora. E ele está quase conseguindo fazer isto, pois aquele era o primeiro crime do outro personagem. Uma tragédia porém, acontece. Quando o “criminoso”, concorda com ele, abaixa a arma e se prepara para sair, desistindo do assalto, uma mulher que está entrando no estabelecimento, dá um grito. O homem armado se assusta e dá um tiro, sem querer, nele, o “funcionário”.
Foi nessa parte que Tilico teve a ideia de esconder um papel celofane vermelho por dentro da camisa. Na hora do tiro, ele põe a mão no peito e puxa, disfarçadamente, o celofane para imitar o sangue correndo.
As pessoas que usavam aquele ônibus começaram a gostar da história, mesmo já sabendo do final. Além disso, sempre havia alguns passageiros novos. Dessa forma, ele acabou se tornando uma pequena estrela naquele reduzido mundinho do ônibus. Aquele era seu palco.
Já fazia um mês que Tilico estava dando seu espetáculo. Naquela segunda-feira, ele pensou em algumas inovações. Mudou um pouco o diálogo e para fazer o papel do outro personagem, ao invés de ficar de costas, ele mudava rapidamente de lugar e punha um boné para fazer o papel do bandido.
Estava feliz com os ajustes e subiu todo confiante na condução. E, como sempre fazia, depois do segundo ponto, quando o motorista pegava uma pequena estrada que ligava os dois bairros e onde não havia muita gente descendo e subindo, ele começou com vigor. O seu personagem principal cantarolava e arrumava as coisas na prateleira do pequeno mercado imaginário  onde trabalhava. De repente, para fazer o papel do assaltante, ele pulou para o outro lado, pegou uma arma de madeira, pintada de preto e gritou:
-É um assalto, fica aí parado!
Os passageiros sabiam que aquele era o momento em que o funcionário  começa tentar a convencer o assaltante de desistir daquilo, o que seria do futuro dele numa cadeia, etc...
Algo muito estranho então ocorreu e todos demoraram um pouco a entender o que era. No início, acharam que o Tilico se enganara e que puxara o celofane vermelho de dentro da camisa na hora errada, uma vez que ainda não estava na hora do sangue. Não entendiam também por que tinha havido aquele barulho de tiro que era só para acontecer no final da peça.
Foi aí que viram um policial vindo de trás do ônibus, ainda com a arma em punho. Ele estava dormindo, acordou com com a frase “É um assalto, fica aí parado!” e puxou a arma. Um espectador inesperado, que não conhecia o enredo, que não conhecia a peça, que não conhecia o ator.
O celofane não era celofane, era o sangue verdadeiro do Tilico. A arma do policial também era de verdade. Ninguém conseguia acreditar no que tinha acontecido, no engano. Um tiro bem no coração do ator único e principal.
O Tilico jazia ali no chão, o sangue de verdade escorrendo no peito, a camisa toda ensaguentada.
Essa foi a maior e última apresentação do grande ator. Foi o maior papel da vida de Tilico, o mais realista.


o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o0o


Essa vida da gente

Para adquirir este livro no Brasil 

--------------------

Para adquirir este livro nos Estados Unidos