Friday, March 31, 2017

Deus quântico



Deus quântico

Anjos, estranhos anjos,
chegam, magos, insólitos,
em tão estranhas cápsulas.
Arautos de um novo deus,
que sempre existiu,
mas também se escondeu.
Invisíveis, abstratos,
cantam surdos cânticos,
se articulam em partículas,
invisíveis, quânticas,
incertas, minúsculas.
Incautos, impossíveis,
narram o improvável,
em contos inverossímeis?
Será o novo Criador,
criador dos criadores,
a soma mais que infinita,
a síntese perfeita,
dos deuses anteriores?

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Thursday, March 30, 2017

O Noel Rosa, as Mamonas Assassinas e outras coisas bem mais doidas



O Noel Rosa, as Mamonas Assassinas e outras coisas bem mais doidas

Alguns cientistas, desses bem loucos e originais, acham que tudo que existe é virtual. Nós, nossas vidas, nosso mundo, o nosso Universo, enfim, tudo, é nada mais do que um grande “software” programado por um grande ser. Um programa de computador fantástico, exuberante. Colocaram em nós, pequenas peças do conjunto, uma importante informação que se chama “livre arbítrio”, que nos dá a falsa e enganosa impressão de que estamos decidindo nossas vidas, nosso destino. Tudo falso. É tudo programado. Pelo menos de acordo com eles.
Meu amigo Nino Belvicino, para variar, resolveu meter sua colher no meio. Não sei como ele chegou a essa conclusão, mas, segundo ele, um dos programadores estava meio distraído e, na hora de fazer os “inputs” do software, distraiu-se um pouco. Colocou um pequeno detalhe, que era do outro Universo, no nosso. Isto tudo que estamos vendo era para ser diferente. Não na essência, mas nos detalhes. Por exemplo, o nosso querido Noel Rosa, na programação inicial, teria nascido muitos anos depois e ainda estaria vivo. Mais ainda, não teria aquele problema no queixo. Mais ainda, faria parte do conjunto “Mamonas Assassinas”. Não é mesmo uma loucura? Aliás o conjunto, ainda na programação original, não teria falecido naquele acidente perto do aeroporto de Guarulhos. Estariam todos vivíssimos, tocando, cantando. Estariam arrependidos daquela música que fizeram sobre os portugueses, no entanto. Mais ainda, estariam agora - faz um ano – fazendo só música “gospel”. Os Beatles não existiriam. O Ringo teria imigrado para os Estados Unidos e faria parte do staff de um McDonald’s em New Jersey. Coitado, vendendo batatas fritas, com gordura e tudo mais. O George Harrison e o Paul estariam trabalhando numa mina de diamantes na África do Sul. Na parte administrativa, é claro. O John estaria morando em New York, trabalhando na Wall Street. Nos finais de semana, fazendo parte de uma pequena banda que tocava em casas noturnas. O Ringo só brincava de cantor entre amigos.
O nosso presidente seria presidente sim, mas de uma ONG cuja função era conservar a mata Atlântica. Uma nobre missão. Os papas, então? Seriam outros. No momento, o Vaticano estaria sendo presidido por um brasileiro. Nesta nossa versão, este pontífice é apenas um pároco no interior se São Paulo. Para você ver como são as coisas! O Paraguai não existiria na versão correta do software. Suas terras estariam divididas entre os países vizinhos. A Argentina, ao contrário do que você possa desejar, seria muito maior e abrangeria uma boa parte do nosso querido Rio Grande do Sul. Pelo menos não teria Maradona. Não que ele não existisse. Ele seria apenas um “boleiro” do River Plate. Mas não adianta ficar falando essas coisas, o erro está feito e vamos ter de aceitá-lo. Nem sei se essa versão é pior que a outra. E foi um erro mínimo, dá para acreditar? O Nino explica isso também. É o efeito dominó. Por isso, tome muito cuidado. Qualquer errinho pode ser catastrófico. É aquele montão de peças desmoronando, uma derrubando a outra. Você não quer isso na sua vida, quer?

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Wednesday, March 29, 2017

Coitada da Juliet


Coitada da Juliet

Coitada da Juliet. Estava tranquila, passeando num estacionamento em Atlanta, na Georgia, quando seu companheiro foi atropelado. Foi fatal. O pobre marido morreu na hora. Isto, por si mesmo, já é muito triste. O problema é que ela não conseguia se recuperar da tragédia. O fato se deu no começo do ano, em um estacionamento de shopping, onde moravam. Ficou quase três meses ali mesmo, na esperança de algum milagre. Talvez voltar no tempo?
Funcionários das lojas do shopping traziam comida para a pobre viúva. Finalmente, o gerente do local pediu que todos parassem de alimentá-la, na esperança de que ela seguisse seu caminho. Que nada. 
Os filhotes do casamento - seu ninho tinha sido lá - acabaram indo embora, mas a inconsolável gansa precisou ser retirada do local. Ficaram com medo de que o pobre animal morresse de tristeza. Arrumaram um novo companheiro para ela. Será que vai dar certo?
Fiquei comovido, principalmente com o fato de que há animais que têm mais sentimentos do que muitos seres humanos. Mas isso, a gente já sabia...


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Tuesday, March 28, 2017

O Papa quântico


O Papa quântico

Não sei não, mas o Papa Francisco vai acabar criando uma confusão com o pessoal mais reacionário da Igreja. Ele acabou de afirmar que “... o Big Bang e a teoria da evolução não só existem, como são essenciais para entender Deus.” Nossa, por essa eu não esperava.
Sempre achei, no entanto, que as teorias reacionárias sobre a origem do mundo, ao invés de engrandecerem Deus, acabavam por torná-lo menor, restrito a umas características humanas ou, no máximo, um grande mágico cósmico. Muito pouco para o absoluto e maior e Ser do Universo. Deste e de todos os outros possíveis. Deus não é o trovão, ou o raio, como talvez alguns indígenas pensavam. Ou, mesmo modernamente, um Ser que supostamente fica dando lições de moral e que muita gente tenta interpretar e divulgar. Muito menos tem tempo para fazer aparições para alguns maníacos que pensam que são privilegiados ou grandes profetas. Acho que Ele tem coisa mais importante para fazer. O que Ele nos deu de mais precioso certamente foi a inteligência. Não podemos desprezá-la ao tentar entendê-Lo ou concebê-Lo. Se é que isso é possível. Aliás, toda vez que tentamos definir o que é Deus, nós estamos colocando limites. Nós não sabemos quase nada, ninguém sabe quase nada. Existe muita gente que acha que a maior parte dos cientistas é ateu. Não é nada disso. Eles apenas acham que tudo que falam sobre o Criador é muito pouco, pelo pouco que já se pode vislumbrar desde já, do futuro da Ciência. Se for preciso aceitar um Deus, aquele que conseguir se entender através da Ciência vai ser infinitamente mais bonito e mais completo.
Esta nova abordagem do Papa é muito sadia, e muito inteligente. Gostei dele. Para mim, ele é um Papa “quântico”. E eu que nunca pensei que fosse conhecer um...




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Saturday, March 25, 2017

Uma fábula científica



Uma fábula científica

A muitos milhares de anos de agora, finalmente, o homem terá construído uma máquina perfeita. Ela vai ser a soma de toda a sabedoria e inteligência humana. Vai ser a soma de todas as máquinas inteligentes que já existiram.
Milhões de vezes multiplicada.
Finalmente, então, o grande cientista vai poder sentar-se frente a ela e fazer a grande pergunta. Aquela que todos fazem e para a qual nunca houve resposta satisfatória. Existe Deus? Qual é o significado da vida?
Ela, soberana e poderosa, vai ficar parada por alguns instantes, como se estivesse pensando. O grande cientista, também por alguns segundos, vai ficar decepcionado. Ela precisa pensar?
Então, calmamente, ela vai responder:
-Não, não estava pensando. Estava saboreando o momento.
Ele, aflito, então, insistirá:
-Existe um Deus? Qual é o significado da vida?
É exatamente sobre isto que estava refletindo. Eu sei a resposta, mas...
-Mas o quê?
-Não posso falar. Primeiro, porque você não vai entender. Segundo, porque, se entendesse, faria mau uso dela.
E vai se calar, dentro de sua quase infinita inteligência. E quase infinita sabedoria, também...



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Thursday, March 23, 2017

Uma máquina de escrever



Uma máquina de escrever

Outro dia vi, num depósito, uma velha máquina de escrever. Uma Remington. Ainda tinha uma folha branca de papel enrolada em seu cilindro. A folha branca não era mais branca, era amarelada. Foi o tempo, o tempo cruel. Esse mesmo tempo que impiedosamente acabou com sua utilidade, que a aposentou. Estava coberta de pó, coitada. Aposto que fazia anos que ninguém batia em suas teclas. Os dedos agora estão ocupados com outras máquinas. Poderosas, velozes, inteligentes. Adivinham o que você vai escrever, sabem o que você está pensando. São arrogantes. Imaginem só, corrigem você, querem dizer o que você quer escrever. Se você não tomar cuidado, roubam o seu pensamento e o colocam no ar. Sem saber, você se torna vítima de curiosos e inescrupulosos.
Eu tive uma vez uma máquina de escrever, moderna para a época. Era fraquinha, no entanto. Às vezes eu precisava consertar suas teclas. Era uma delicadeza, mas conseguia escrever tudo o que eu queria. Tinha até tinta vermelha, que era para realçar os meus pensamentos. Seu nome era Manuela. Coitadinha, era fraquinha a minha Manuela. Ela desapareceu, nem me lembro como. Nem de longe se parecia com a Remington do depósito.
Cheguei mais perto e examinei o papel que, teimoso, permanecera ali anos a fio. Para minha surpresa, havia algo escrito. Cheguei bem  perto e li: “Querida Consuelo”. Mais nada. Fiquei imaginando o coitado do remetente com aquela dúvida cruel. O que falar, a seguir? Dizer que a amava? Talvez fosse apenas uma parente, talvez fosse apenas uma conhecida. Acho que não. Por que teria escrito “Querida”, então? Será que alguém o chamou e ele teve de sair? Por que não continuou depois? Nunca vamos saber. Uma carta inacabada. Pior, mal começada. A Consuelo também nunca ficou sabendo que alguém a chamou de “querida”. Talvez ela estivesse precisando. Sabe, mesmo quando é mentira, é bom alguém chamar você de ”querida”. Talvez a carta fosse uma grande revelação, uma coisa que iria mudar a vida da Consuelo. Que diabos, por que ele não terminou a carta? Nunca vamos saber.
Cheguei mais perto e me deu uma tristeza. Uma sensação de coisa mal resolvida. De repente, não me contive e comecei a teclar:
“Tenho muitas saudades de você. Por que você não volta? Do grande amor de sua vida.
Um desconhecido.”
Eu sei que foi uma mensagem idiota, mas ninguém vai ler mesmo.
Dei uma última olhada para a Remington, me lembrei da Manuela, fechei a porta e nunca mais a vi. Me arrependi, ao invés de “um desconhecido”, deveria ter escrito “Manuel”. 
Quem sabe, uma outra vez...




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Tuesday, March 21, 2017

Sutil e perigoso acerto de contas: uma história que só pode ser lida por maiores de não sei quantos anos


Sutil e perigoso acerto de contas: uma história que só pode ser lida por maiores de não sei quantos anos

Ele fez as contas e só aí se deu conta de que a amante tinha contas demais. Ficou por conta e deduziu que seria difícil pagá-las. Tirou um extrato da conta e levou para ela ver. “Olha aí  as contas, sem conta, que você fez!” Ela fez de conta que aquelas contas, embora fossem por demais da conta, não eram contas das quais ela poderia tomar conta. “Tenho minhas próprias contas para pagar”, disse  ela com um muxoxo, que o deixou por conta. E ele perguntou se ela não podia balançar melhor as contas antes de gastar. “Claro”, ela disse. Ela, porém, precisava de sapatos novos, e perguntou se, por enquanto, podiam fazer uma conta de chegar. Ele ficou furioso e foi se deitar.
Mais, tarde, com calma, ela foi chegando. Bem baixinho, contou para ele um conto, daqueles que não dá para se contar. Só sei que ele parou, por algum tempo, de fazer contas. Por conta de outros contos que ela iria contar, fez um balanço das contas todas e ficou assim. Arredondou as contas e pediu para o contador acertar, pois é isso que ele faz. Afinal de contas, existe gente que não dispensa uma mulher que, embora não saiba fazer contas, dá conta de recados tais, dos quais nem posso falar.

Deixa esse recado chegar até a mulher do fulano. Aí, sim, ele vai ter muita história para contar... Quanto a esse acerto de contas, nem quero pensar!

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Sunday, March 19, 2017

O outro lado do rio




O outro lado do rio


Existe coisa misteriosa neste mundão de Deus, existe sim. Muita história. Eu mesmo tenho uma para contar. Esta do reverso aconteceu de verdade, mas nem eu mesmo acredito mais.
Faz muito tempo e eu era muito criança. Ao contrário de agora, que vivo numa cidade grande, vivia num lugarzinho perdido lá no meio do Mato Grosso. Havia um rio caudaloso, bonito, forte, que para nós era o centro de tudo. Tinha uma curiosidade danada de saber o que havia do outro lado, apesar do medo que tinha de atravessar. Sempre que perguntava para meu pai, ele dizia que não era nem para pensar naquilo. O outro lado - e franzia a testa - era uma coisa cheia de mistério. Só um ou outro voltava e, quando voltava, era com a cabeça toda mexida, cheia de estranhamentos. Meu pai tinha esse jeito gozado de falar, que eu não sei onde ele aprendeu. Tinha uma pressa danada de acabar qualquer conversa sobre esse assunto. Terminava sempre com a frase “É o reverso do mundo aquilo lá. O outro lado é o reverso do mundo.” Eu não entendia o que era reverso, pelo menos naquela época e no sentido que meu pai dizia. Ele não gostava de falar daquilo. Não gostava, com certeza.
Eu e meu irmão mais novo, nós ficávamos com aquela curiosidade misturada de medo. Eu mais de curiosidade e meu irmão mais de medo. Ainda assim, um dia eu arrisquei. Mas não foi assim, de ímpeto, sem pensar. Que eu nunca fui assim. Sempre fui cheio de precaução, coisa que me custou muitas coisas nessa vida cheia de competição. Mas não estou aqui para reclamar, estou para contar e é o que eu vou fazer. Depois que decidi – a gente sabe quando não tem mais jeito, que a gente vai mesmo fazer – me enchi de cautelas e preparativos. A primeira foi convencer o pequeno Mário, meu irmãozinho, de que não devia contar nada para o papai. Expliquei que o mundo é assim, que todo mundo tem direito a certos segredos, não muitos, porque daí vira engodo, enganação. Não sei se foi minha lábia, ou se foi a esperança de ter outras aventuras comigo, mas ele concordou e ficou firme. Tive orgulho dele, apesar de saber que o que estava a fazer não era de muita correção, nem de muita prudência. Muita desgraça aconteceu nessas partes perdidas do mundo por se falhar nessa parte de nossos códigos de palavra. Mas, por outro lado, tem tanta gente tão certinha que acaba se dando mal do mesmo jeito, que achei que devia ir em frente.
Voltando aos meus preparativos, primeiro arrumei uma corda bem comprida lá na venda do seu Gonçalo. Ele estranhou quando juntei os trocados que tinha recebido de presente no meu aniversário e paguei à vista sem pôr tudo na caderneta. Ele sabia que o papai sempre punha as coisas “na conta”. Fiquei com medo que ele comentasse algo com mamãe quando ele viesse fazer compras. Mas isso não aconteceu. O uso da corda era uma coisa óbvia e inteligente. Eu ia amarrar o barco do meu lado. Sabia que a correnteza ia puxar a gente rio abaixo, e assim eu ia garantir que poderia voltar.  O Mário olhava admirado enquanto eu fazia os preparativos e queria muito ajudar. Eu dei algumas tarefas para ele, só para dizer, pois ele era muito pequeno e pouco sabia. Nem sequer sabia dos perigos daquele rio. Aquilo era irresponsabilidade minha. Mas não tinha jeito, quando a gente está com uma coisa na cabeça, não tem nada que faça a gente parar. Outra coisa que fiz, foi arrumar uma vara bem comprida, além dos remos. Alguma coisa que pudesse espetar no leito do rio numa emergência. Meu irmão só ficou um pouco assustado quando enrolei as pernas dele com um pano que arrumei no porão de casa. Expliquei que era para evitar picada de cobra. Não devia ter falado nada, pois não fazia muito tempo, um moleque da escola havia morrido envenenado por uma dessas malditas. Ficou meio assustado, mas queria mostrar que era corajoso como eu.
Medo da travessia eu não tinha. O que me deixava nervoso era o tal do “reverso” que meu pai falava. É gozado como certas palavras mexem com a gente, principalmente quando somos pequenos. Até hoje, sabendo já de todos os significados do tal vocábulo, ainda sinto uma coisinha lá dentro. Talvez papai só quisesse assustar a gente, quando franzia a testa para falar do reverso. Talvez fosse só superstição boba de quem vive no mato. Talvez fosse tudo verdade, e, daí, eu seria responsável pelas consequências do reverso, principalmente em relação ao caçula.
Deu um pouco de medo, que eu escondi, quando a gente atravessou para o outro lado. Eu não sabia o que assustava mais: se era a força do rio ou a escuridão das águas. Até hoje não sei. Não sei se é pior a força do destino levando a vida embora, a da gente e das pessoas que a gente ama, ou se a escuridão da noite sem estrelas. A escuridão da noite, até, não é tão difícil, é só arrumar uma luz e tudo se resolve. O que dá medo é a escuridão de algumas pessoas, por dentro, isso sim dá medo. Desculpe o meu divagar. Às veze penso se faço isso - fugir do assunto - porque é coisa de contador de histórias, ou se é porque não estou querendo enfrentar o miolo da conversa. Para ser mais direto e franco, para evitar o confronto com o reverso. Que palavra danada essa, reverso, até dá arrepio. E já estou divagando de novo.
Chegamos do outro lado com bastante dificuldade. Tinha que administrar o meu esforço de tal forma a não assustar meu irmãozinho, pois eu era tudo para ele. Meu pai também era, mas o Mário não sabia, pois meu pai era fechado e não tinha muito tempo nem jeito para conversa. Foi com muita luta que consegui agarrar um arbusto do outro lado e segurar o barco que as águas, furiosas, insistiam em levar. Rio caudaloso. Isso é coisa que dá medo. Agora que já estou bem mais velho, eu sei que há coisa mais perigosa. Até carro com velocidade no urbano de nossas vidas é mais ameaçador. Mas a impressão ficou. É uma espécie de metáfora. Aquela água forte, escura, querendo levar a gente embora. Eu não li em lugar nenhum, mas eu sei que isso é a representação do destino. Querendo levar a gente. A gente, um serzinho de nada, na correnteza absurda da vida. Por isso é que gosto de águas calmas, claras, transparentes. Que coisa, eu divagando de novo.
Amarrei o barco do outro lado, do lado reverso, com muitos nós. Ter certeza de que não seria levado embora. Já pensou a gente, sozinho, do outro lado, sem poder voltar? Papai sem saber de nada, sem saber onde procurar? Ou, sabendo, ter que enfrentar o reverso, para nos procurar? E ele viria, com certeza. Nós dois e minha mãe eram as únicas razões pelas quais ele enfrentaria o reverso. Tudo seguro e amarrado, peguei o facão, dei a mão para meu irmão e fomos entrando na mata. Foi daí que o Mário falou que tinha medo de que alguém cortasse a corda e nosso barquinho fosse embora. Pensei, que besteira, só mesmo uma criança para pensar uma coisa daquelas. Falei para ele que era bobagem, bem confiante. Mas depois pensei comigo mesmo que ele tinha uma certa razão. Fiquei com aquilo nos recônditos da consciência. Criança, às vezes, fala verdades mais poderosas que um adulto. Depois, ainda raciocinei, que aquilo - cortar as cordas - já seria algo pensado, premeditado, de inimigo declarado. Entretanto, o que me dava medo era outra coisa, assim, do outro mundo, essas que ninguém entende. Na verdade, estava pensando, mais uma vez,  no “reverso do mundo” de que meu pai tinha falado.
Fomos entrando mais e mais. Daí o pequenino fez outra observação que, inicialmente, me deixou assustado de novo. E se a gente não soubesse voltar? Respondi automaticamente que era só seguir o corte que estava fazendo na vegetação. Era a melhor indicação da rota, o que estávamos fazendo. Honestamente, porém, não tinha pensado nisso. Foi aí que comecei a cortar tudo com mais intensidade. Criança diz cada coisa. A gente devia ouvir mais esses pequeninos, posso lhe dizer. E fomos andando, andando, com aquele pavor de ser picado por uma víbora. Esse era o medo do irmãozinho. O meu era esse, mais o reverso. A essa altura, o “reverso” para mim era uma pessoa. Pior que isso... Nem gosto de falar, mas acho que não preciso, você já entendeu. Penso mesmo que era isso que papai pensava. Estava claro por que ele franzia a testa. Mas eu sabia que tinha de fazer aquilo, ou pelo menos agora eu sei. São aqueles momentos na vida em que você tem de enfrentar os seus medos.
E daí, eu tive medo de verdade. Vimos, entre as folhas, uma cabana. Paramos. Dava para ouvir o coração bater e a nossa respiração. E o que fazer, então? Ficamos ali, parados um bom tempo. Finalmente saiu da casa um homem. Seus cabelos não eram tão compridos, mas certamente estava na hora de cortá-los. Cabelos loiros, iguais ao de minha mãe. Aquilo não era coisa comum naquelas bandas. Assim, só conhecia minha mãe e agora, aquele homem. O Mário tinha saído com a mesma cor dela, acho que, até então era o único menino loiro que eu tinha visto. E agora conhecia também um homem loiro. De repente alguém o chamou lá de dentro e ele voltou. Houve uma conversa no interior da casa e depois, os dois saíram. E a mulher tinha cabelos negros como meu pai. A cabeça da gente é gozada mesmo. Eu mal sabia o que significava reverso e, ainda assim pensei, que aquilo era o reverso de meu pai e de minha mãe. Que besteira, mas não é assim o nosso pensar, cheio de idiotices brincando o tempo todo nos nossos miolos? Reverso. Que besteira.
Passou um tempo assim, eles falando animados lá fora da casa, e eu achei, na minha razão, que era hora e tempo e voltar. Era a sabedoria falando. Coisa óbvia. Mas quem disse que é a cabeça que manda? A curiosidade era grande demais. Ouvimos mais vozes. Eram de crianças. Não demorou para saírem dois garotos de dentro, um maior, outro bem menor. Tal qual nós dois. E, ainda mais estranho... Para você entender esse novo estranhamento, preciso explicar mais algumas coisas. Meu nome é Fernando e, ao contrário do meu irmão, tenho cabelos pretos, puxei ao papai. O pessoal até brincava que eu era o filho do pai e o Mário era o filho da mãe. Pois não é que o moleque pequeno, que tinha saído da casa - bem modesta – era moreno como eu e o maior era loiro como o pai dele e como a minha mãe e meu irmão? Minha cabeça estava girando. O reverso do reverso, do reverso. Olhei bem para me certificar. Estava ficando já meio assustado e o meu irmãozinho estava percebendo. Achei que era hora de ir embora. Não havia mais nada a fazer ali. Conversar com eles não podia, estava em sua propriedade. Conversar o quê? Sobre o reverso? Eles iriam achar que eu era um demente. A única coisa reversa que eles iriam notar era o meu moreno e o loiro do Mário. Estava certo, tinha de voltar e avisei para meu irmão que concordou muito rápido. Antes de sair, porém, ouvi o mais velho chamar o mais novo de Fernando. Para ele se apressar. O pequeno reclamou que ele estava sempre com pressa e o chamou de Mário. A essa altura parecia já minha imaginação funcionando, mas que ele chamou, chamou. Eu tinha certeza também, embora nunca tenha confirmado - isso é pura teoria - de que o homem se chamava Mário, pois Maria era o nome de minha mãe e a mulher se chamava Fernanda, pois Fernando era o nome de meu pai e é por isso que tenho esse nome.
Voltamos com muita pressa. Na minha cabeça rodopiavam aquelas imagens, aqueles nomes, tudo rodopiava. Meu irmão só estava com pressa, queria voltar. Ele não tinha percebido nada. Nem dava para discutir essas coisas com ele, pois ele jamais entenderia. Nunca entenderia o que era reverso. Qualquer dia eu vou falar com ele para ver se ele se lembra disso tudo. Claro que ele se lembra. Mas não do reverso. Essa parte vou ter de engolir sozinho. Nunca pude falar isso com papai por motivos óbvios. Talvez devesse ter falado depois de adulto, mas fiquei com medo de passar por idiota. Qualquer dia falo com o meu irmão loiro, o Mário, essas coisas, talvez. A parte do reverso, não. Vou ter de morrer com esse segredo.
Além do mais pode ter sido tudo imaginação. Quero dizer, a travessia, as pessoas, tudo isso existiu. A parte de um ser loiro, outro moreno, os nomes invertidos, isso, talvez. Na verdade, tenho certeza de que vi e ouvi bem. Mas você sabe, a cabeça da gente é perigosa, está sempre pregando peças. Além do mais, existem incríveis coincidências neste mundo, não existem? Talvez o reverso, de que meu pai falava, era outra coisa completamente diferente, alguma coisa que tivesse a ver com demônios. Demos escondidos na mata, do outro lado do rio, o lado que não era esse. Era o perigo da morte naquela floresta escura. O reverso, palavra incomum para nós, era só para assustar. O loiro e o moreno, os nomes trocados, tudo, apenas uma coincidência. Será que coincidir é coisa do demônio?

Reverso, que coisa estranha, como meu pai foi ter uma ideia dessas? Fiquei a vida inteira com isso na cabeça. Reverso. Nunca vou ter certeza. Pode ter sido, pode não ter sido. Quase tudo é assim, no final. O que manda, mesmo, é nosso pensamento. Às vezes a gente pensa o reverso do que quer pensar. Mas eu não quero falar mais em reverso. Pelo menos, não por enquanto.

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Saturday, March 18, 2017

As crianças e a poesia


As crianças e a poesia

As palavras, às vezes, não vêm. Quando vêm, chegam soltas, fora da frase, indefinidas. Quando conseguem se juntar na sentença, juntam-se sem sentido, sem sintaxe. O que faz o poeta? Desespera-se ante a tirania da linguagem?
Olha quase em desespero para os lados, para as pessoas, procurando onde se inspirar. Talvez num gesto suave, num sorriso casual, em algum ponto indefinido, esteja a inspiração...
De repente, vê uma criança. Uma menininha que brinca, que ri. Ela nem sabe falar e já “diz” tanta coisa...Por que será? Como será?
O poeta pensa um pouco e descobre a solução do enigma. A menina não precisa de palavras, nem de nexo, nem de sintaxe, nem de metáforas. Ela já é a poesia. A poesia pura, perfeita. Ela é a própria essência da vida, ela é a poesia em si mesma!


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