O
Planeta de Gelo
A
espaçonave “Solution” foi lançada da estação espacial “Via Stella”, uma
gigantesca plataforma em órbita da Terra. Vista do chão tinha o tamanho de três
sóis. A maioria das naves de longo curso saíam ou de Marte ou da Lua. A “Solution” entretanto precisou sair de
nossa órbita mais por causa do tipo de construção que ela demandou do que por
outros motivos. Saiu exatamente às 10:37:32 GMT do
dia 27 de outubro de 2167 AD . O tempo programado de viagem era de 14 anos. Nos
últimos 5 teria toda sua tripulação hibernada, devido ao risco que as tarefas
que ela teria de realizar traria para seus viajantes. A sua rota seria dentro
do sistema solar e seu objetivo principal era coletar dados vitais para
expansão das colônias da Terra que então se resumiam apenas a Lua e a Marte.
Parte de sua missão, porém, era sigilosa. Nem mesmo o chefe da missão, Ron,
tinha completo conhecimento de todos os detalhes. O computador principal, cuidava
da rota e da parte principal da missão e um segundo computador tinha os dados
sigilosos da mesma. O primeiro partilhava apenas parte dos dados do segundo,
mas este último “conhecia” toda a missão.
Como
acontece nesses casos, houve muito burburinho, muito comentário e muitas
análises a respeito da grande empreitada. Relatórios diários eram transmitidos
à população. Depois de dois ou três anos, o interesse diminuiu e somente quando
algo de relevo acontecia, o público era notificado. Solution era a primeira de
uma nova linha de naves espaciais com os propulsores que alcançavam velocidades
jamais sonhadas no século anterior. A tripulação era composta de 17
astronautas, todos cientistas ou especialistas em diversos aspectos de inteligência
artificial ou navegação e outros campos de conhecimento necessários ao
cumprimento da missão.
Comandar
a Solution era uma espécie de coroação de carreira para Ron, um apaixonado por
viagens espaciais e astronomia. Ficou mais de cinco anos se preparando. Boa
parte do treinamento era dedicado à maneira como interagir com esses novos
computadores, uma vez que os mesmos eram bastante independentes, podiam e
tomavam decisões que muitas vezes eram difíceis de se aceitar ou de se entendermesmo por cientistas do nível de Dr. Selleck, como era conhecido o Ron. Ludic
era o apelido do computador. Shadow era como eles chamavam o segundo
computador, o que tinha a parte substancial dos segredos do projeto. Ron sabia
que seria fácil ficar irritado con Ludic mas por outro lado ele sabia que o
mesmo possuía uma quantidade absurda de informações que ninguém mais tinha e,
além disso, ele administrava as “prioridades” que nem sempre coincidiam com as
da tripulação. Enfim, tinha de conviver com Ludic e Shadow.
Cada
pessoa da equipe cumpria suas funções regularmente e tentava levar a vida da
forma mais “normal” possível.
Horas,
dias, meses e anos foram se passando. Os cientistas logo perceberam que a
quantidade de informações armazenadas era extarordinária. Perceberam também que
Shadow, além de ter a “missão” inserida em si, era também uma espécie de
garantia no caso de Ludic ficar “super” ocupado ou sofrer avarias. Várias
coisas começaram a acontecer que não faziam parte da informação e instrução que
a tripulação tinha tido. Às vezes, Ludic interrompia quase todas suas funções,
inclusive a comunicação com a Terra. Fazia só o mínimo para manter as funções
vitais dos tripulantes e da nave. Todos pensaram que estivessem diante de um
mau funcionamento. Após alguns dias Ludic informou de que não havia motivo de
preocupação. Estava analisando “data” e economizando energia. A história de
economia começou a ficar mais e mais frequente. Era estranho, pois as naves
dessa última geração possuíam uma energia praticamente inesgotável. Havia uma
certa desconfiança de que Ludic e Shadow estivessem escondendo algo. De
qualquer forma, algo fora do normal estava ocorrendo.
A
rotina da viagem fez os ânimos se acalmarem novamente, até que no começo do
oitavo ano, um antes do processo de criogenia começar, Ludic veio com a
novidade: a hibernação teria de ser ativada um ano antes do previsto. Houve um
início de revolta, mas Ludic conseguiu explicar com gráficos, números e lógica.
Stuart, o mais entendido em inteligência artificial chegou a sugerir
secretamente para Ron um boicote. Disse que poderia causar um pequeno
“acidente” no Ludic e no Shadow para limitar suas capacidades. Ron chegou a
considerar a possibilidade pois estava começando a ficar preocupado com o
andamento do projeto. Depois reconsiderou e achou que havia muitas incógnitas
no processo. A essa altura certamente havia informações absolutamente
necessárias para sua sobrevivência que estavam sendo ocultadas por Ludic e Shadow.
O risco seria muito grande.
Começar
o processo de criogenia um ano antes significava começá-lo dali a dois meses e
esse era também o tempo de preparação
para a mesma. Em outras palavras, a rotina havia acabado e inúmeros
procedimentos especiais tinham de ser ativados imediatamente. A alimentação
mudava completamente e vários elementos químicos teriam de ser diariamente
aplicados em todos. O processo em si mesmo durava 72 horas mas isso não fazia
diferença nenhuma pois a essa altura estariam todos inconscientes, em estado de
sono profundo. O último a perder a consciência seria Ron, por uma questão de
segurança, pois se houvesse algum tipo de problema ele poderia ainda sustar o
processo. Da mesma forma, no momento do “descongelamento”, ele seria o primeiro
a voltar para supervisionar a “volta” dos outros. Era um sistema seguro e havia
sido usado milhares e milhares de vezes antes, mas os procedimentos tinham de
ser mantidos.
Ao
lado da desconfiança e da ansiedade, havia também um certo alívio, pois aquilo
significava o final da missão. Afinal de contas, quando acordassem, seis anos
depois, estariam na órbita da Terra esperando a acoplagem da “Solution” na “Via
Stella”.
Finalmente
o dia chegou. Todos se despediram antes de começar o “caminho de volta”. Muitos abraços antes de
entrarem nas cápsulas. Uma vez lá dentro, lentamente iriam perder a consciência
e dormir e depois... temperaturas baixíssimas iriam envolver seus corpos.
Enquanto monitorava seus colegas, antes de ele mesmo ser monitorado por Ludic, Ron ainda
pensava... Aquele congelamento não era por causa de energia. Ludic ou Shadow
tinham descoberto algo diferente, precisavam fazer experiências e não podiam ou
não “queriam” executá-las na presença consciente da tripulação. Consolou-se,
dizendo para si mesmo que talvez fosse melhor assim.
Finalmente
chegou a vez de Ron. Colocou sua assinatura digital numa das telas do Ludic, concordando
com tudo, entrou na cápsula, olhou o pequeno monitor diante de seus olhos e
clicou “oK” com seu indicador. Imediatamente os “gases do sono” começaram a ser
injetados na cápsula. Ron ainda teve tempo de pensar: “Definitivamente não é
uma questão de economia... existe algo mais estranho e profundo nessa história...Talvez...”
e daí o cérebro de Ron estava emitindo ondas elétricas tão fracas que um branco
invadiu tudo e ele se foi...
A Volta
Ron
não sabia se estava sonhando ou se era apenas um sono pesado. Via pequenos
pontos azuis que iam e vinham. Depois tudo ficava escuro, então tudo voltava.
Após algum tempo começou a ver linhas. Podia reconhecer números e letras.
Tentou se concentrar. Abriu e fechou os olhos. Não estava claro nem escuro. Ao
longe uma voz, voz de computador. Por mais perfeita, você ainda a reconhece.
Agora já podia ler melhor.
Ano: 373401 AD
Tempo de viagem: 371.234 anos
Velocidade média: desconhecida
Eventos: consultar LOG
Energia: nível crítico
Pensou. A falta de energia está afetando os dados.
Não, isso não acontece mais, os computadores não fornecem dados errados. Ou
estão desligados completamente ou não falham. Devagar foi se lembrando. “Solution”.
Missão. O ano tinha de ser 2181 AD. Talvez uma simulação? Congelamento, agora
se lembrava. Estivera congelado. Seu cérebro, talvez seu cérebro estivesse
afetado. Ouviu um clique. O pouco movimento que fizera causou a abertura automática
da cápsula. Tentou se levantar. Não conseguiu, estava muito fraco. Sentiu que
ar carregado de alguma substância saía dos dois lados da cápsula. Lentamente
suas forças iam voltando.
Finalmente conseguiu se levantar e sair. Andou
um pouco e se lembrou dos companheiros. Primeiro precisava checar os dados.
Computador de emergência, energia própria, separada, tinha de estar funcionando.
Sentou-se, tocou a tela. Os dados começaram a aparecer na tela. Clicou em
“Status da Missão”. Os estranhos números apareciam novamente:
Ano: 373401 AD
Tempo de viagem: 371.234 anos, dois meses 5
dias 4 horas 48 min 3 seg...
E os segundos e centésimos de segundos
rodavam vertiginosamente.
Antes de checar as outras cápsulas, Ron
acionou o grande painel para ver o que se passava lá fora. Ele não abriu, não
havia energia suficiente. Abriu então, manualmente, algumas escotilhas.
Ficou atônito. Uma grande planeta branco,
coberto de gelo, brilhante... Para ter certeza de que era a Terra, verificou a
posição da Lua. Lá estava ela com suas manchas e tudo, orbitando em volta de
nosso planeta.
Voltou para o computador e clicou em
“localização”:
Local: Planeta Terra
Situação:Órbita distante
Status de operação: aguardando autorização
para órbita próxima
Ron não acreditava em seus olhos, em seu
cérebro, em nada. Resolveu então ver mais detalhes da missão: 7 tentativas de
aproximação da Terra em 2181, três falharam, quatro não foram autorizadas. Viu
então que Shadow passou a operar em escala total. Trinta e sete anos depois
ordenou o auto “adormecimento” e a desativação do Ludic. Bloqueou energia
suficiente para a volta para a órbita da Terra no caso de as condições
favoráveis retornarem e para a manutenção do sistema de criogenia.
O cérebro de Ron martelava: Mas por quê 371.234
anos? Ficou imaginando, “nessas centenas
de milhares de anos, algo aconteceu no sistema solar...” Imaginou que talvez as
consequências do impacto de um enorme meteoro tivesse causado na Terra o
bloqueio dos raios do sol...”Mas com todos os sistema de prevenção que
tínhamos...? “
Ficou sem pensar nada por um
instantes...D aí imaginou que talvez tivesse havido uma deslocação violenta do
eixo da Terra...”Mas por quê...?”
Finalmente decidiu verificar o protocolo de
emergências. Ficou desolado ao verificar quem em 27 horas e dezenove minutos as
condições de habitalidade na nave cairiam para zero. E...logo abaixo vinham as
opções de auto-destruição. Ele tinha participado da confecção deste programa.
Sabia que a auto-detruição seria automática. Era uma maneira de evitar a
captura da nave por inteligências alienígenas que então obteriam informações cruciais
sobre nosso planeta, nossa civilização. Você tinha a escolha de antecipar a
desintegração da nave. Era uma espécie de “golpe de misericórdia” cósmico...
Ron pensou em acordar os outros. Idiotice.
Não daria tempo e só causaria dor. Ele sabia o que tinha de fazer. Aproximou-se
da tela e clicou o ícone fatal. O computador começou a contagem regressiva: 37
minutos e uma bomba nuclear interna não deixaria uma partícula inteira sequer.
Ron lembrou-se então dos fortes boatos que
ouvira antes de sair, sobre experimentos que estariam sendo feitos em Marte
como transposição para mundos paralelos, viagem para outras dimensões e manipulação
de sub-partículas descobertas nas últimas décadas. Teriam eles sido cobaias de
algum experimento? Estaria a Terra,
circulando bela e cheia de vida em outra dimensão? Não haveria como saber.
Tomara que sim...
Se Ron pudesse ter visto, teria gostado do
espetáculo. Lá de baixo, sobre a superfície do gelo, foi possível ver uma
grande e silenciosa explosão, Silenciosa, pois não havia ar para propagacão do
som. O fogo não era vermelho mas sim de um amarelo vívido, com manchas azuis e
verdes. Alcançou a enorme planície alva da Terra e reverberou de volta para o
espaço. Até o sol desapareceu do céu. Um espetáculo gigantesco, dantesco e ao mesmo tempo
harmônico, estético. Era o fim da “Solution”... Racional como era, Ron talvez
também tivesse pensado na ironia do nome de sua espaçonave: “Solution...”. Terminava
ali a grande jornada.
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