“Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.”
(I-JUCA-PIRAMA,
Gonçalves Dias)
No seminário, meu apelido era Castor. Talvez por causa da situação, lá os meninos se tornavam agressivos e malvados. Sempre buscando humilhar os colegas. Eu sei que isso é normal nas crianças de uma certa idade. Mas ali era mais do que isso. O ambiente favorecia. Essa atitude não combinava com a “bondade”e “humildade” que nos ensinavam as palavras de Jesus repetidas tantas vezes nos sermões e nas aulas de religião.
Bom, eu tinha mesmo
dois dentes grandes e proeminentes bem na frente e na parte de cima. É verdade, acho que lembrava um castor. Daí meu
apelido. Para mim foi tudo muito natural. Não resisti porque não podia e,
obviamente, nas circunstâncias era o melhor a fazer.
De quando em
quando tínhamos apresentações teatrais: material cuidadosamente escolhido pelos
padres, é claro. Não sei como, fui escolhido para recitar o poema I-Juca-Pirama
de Gonçalves Dias. Estava apreensivo pois eu era extremamente tímido e avesso a
exibições públicas. Mas tinha de fazer. Decorei com esmero o poema todo.
Repetia-o, quando estava sozinho, a todo o momento e em todo lugar, em todas as
suas partes. Até dormia recitando os versos em minha cabeça. Não podia falhar,
era uma missão importantíssima, Não poderia dar vexame.
Dia da
apresentação, dia importante. Todos presentes: alunos, empregados, padres e reitor.
Era um grande momento. Havia outras apresentações, é claro, e a minha era
apenas uma delas e certamente não a principal. Para mim, no entanto, era o dia
de maior responsabilidade até aquele ponto de minha vida. Tinham me preparado
nos bastidores. Roupa de índio, cocar e tudo mais. Puseram um tipo de tinta
marrom sobre meu rosto, acho que era a cor do índio. Eu tinha decorado o poema
de tal forma, que mesmo que me desse pânico, ainda assim eu o recitaria, pois
ele sairia automaticamente de minha boca.
Abrem-se as
cortinas do palco. O cenário é uma mata densa, feita de papelão pintado. Eu
entro, silencioso, e vou para o lado direito do palco como me tinha sido designado.
Uma marcha solene – combinando com a majestade da floresta e a valentia do
guerreiro, começa a ser tocada. Com o canto dos olhos, eu aguardo o sinal do
instrutor para começar a recitar o poema. Até então ninguém sabia quem era o
ator misterioso, pois a caracterização era
muito forte: pele pintada, penas coloridas, colar de ossos, etc.
Obviamente ninguém conseguia ver os dentes do Castor, que até então mantivera
sua boca fechada. Tinha certeza de que todos estavam curiosos para saber quem
era o “artista”. O som abaixa, recebo o sinal para começar a recitar, encho os
pulmões, e solto: “No meio das tabas de amenos verdores...” Gargalhada geral.
Pensei por um segundo que havia feito algo errado. Não. Todos começaram a
gritar “ É o Castor, é o Castor”. Não havia nada de errado, era apenas o fato
de ser eu, o Castor. Pura gozação. Eu não sei se senti ódio, frustração, medo
ou o quê... Depois de uma fração de segundos e o aviso de silêncio dado pelo
padre “da disciplina”, pude continuar. Foi então que senti o guerreiro dentro de mim. Estava com
raiva. Queria lutar contra toda a audiência. Não sei onde achei tanta
força. Enchi os pulmões e falei, sílaba
por sílaba, o poema todo, sem errar, sem parar... Eu me lembro ainda hoje da
força que pus ao falar:
“Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu
canto de morte, Guerreiros, ouvi.”
Acho que
Gonçalves Dias ficaria orgulhoso de mim, ali, enfrentando aquela plateia. Acho que ele gostaria de estar lá a me
ouvir. Acho mesmo que
ele escutou meu canto forte e heroico lá do outro lado...
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