A Grande
Lição, mil anos depois
Tarkus
olhou pela janela de seu apartamento e repetiu para si mesmo que já era tempo
de ministrar a “Grande Lição” para seu filho Sirak. Essa tradição já durava
séculos e certamente era uma das coisas mais importantes, não só para a
educacão dos jovens, como também para a reafirmação social da nova civilização.
Além disso, Sirak estava mais do que preparado para o acontecimento. Era
inteligente, curioso e interessado. Seu pai já o havia alertado para a ocasião
e ele estava na expectativa. Todos os garotos de 12 anos esperavam por esse
momento. Além de ser especial em si, era como um ritual de passagem e dava ao
“noviço” uma série de direitos e privilégios.
Finalmente
chegara o dia de Sirak. Seriam 7 horas de conversa com seu pai Tarkus. Essa era
a “Grande Lição”. Era uma coisa de pai para filho e havia toda uma preparação.
Comeriam só pratos leves e, pela primeira vez, ele poderia tomar uma bebida
ligeiramente alcoólica. Ao meio-dia sentaram-se junto a uma mesa da sala e Tarkus
começou a sua fala:
-Sirak,
meu filho, você vive num mundo maravilhoso agora, mas você não sabe como
chegamos até aqui. Muita coisa aconteceu. Coisas que você acha absolutamente
normais, são preciosas conquistas que nossos pais conseguiram com luta e
sacrifício. Eu não quero assustar você com as coisas que vou contar. O objetivo é apenas evitar que nossos filhos
e filhos de nossos filhos cometam os mesmos erros de nossos antepassados mais
distantes.Como disse, não quero assustar você, mas coisas horríveis, além da
imaginação, aconteceram há séculos atrás. Sirak, você certamente sabe quantas
pessoas há no mundo hoje, certo?
-Claro,
meu pai.Cerca de 118.000.000 de habitantes espalhados nas 11 zonas habitacionais
do planeta.
-Muito
bem, isso mesmo. Você sabe também que esse número variou muito pouco nos
últimos 200 anos.
-Sim,
alguns milhares a mais ou a menos, conforme a década.
-Há 970
anos atrás, no ano 2000, você sabe quantas pessoas havia naTerra?
-Ainda não
estudamos isso, meu pai.
-Eu sei.
Essas coisas só se ensinam depois da “Grande Lição”. Pois bem, no final do
século 20 havia cerca de 6 bilhões de pessoas no mundo.
Sirak
olhou assustado. Havia uma grande interrogação em seu rosto. Parecia absurdo.
Não poderia haver lugar para tanta gente...Pelo menos, não do jeito que a vida
era agora.
-O que
aconteceu?
-Ainda
não, meu filho, nós vamos chegar lá. Antes, há outras coisas que quero
explicar.Você já conhece cinco das onze zonas habitacionais. Você deve ter
notado que os habitantes não são muito diferentes de nós. Quero dizer, a cor da
pele, o tipo físico, enfim, tudo. Nos tempos antes do Grande Evento as pessoas
eram diferentes, muito diferentes uma das outras, nas diversas partes do mundo.
Havia pessoas completamente negras, outras vermelhas, brancas, e com outras
tonalidades de cores.Os formatos do rosto e o tipo físico eram bem variados.
Era o que eles chamavam de raça. Não havia harmonia como agora. Muitas vezes um
ódio enorme crescia entre eles, gerando destruição, morte e guerra.
Tarkus
então mostrou filmes de pessoas falando estranhas línguas. Algumas lembravam o
idioma que eles falavam agora.
Os olhos
de Sirak estavam estatelados ao ver as fotos e imagens que seu pai mostrava.
Parte delas estavam num grande livro, outras iam se sucedendo na tela do
computador. Pessoas e roupas estranhas. Pessoas mutiladas.Violência e sangue.
Se o objetivo de Tarkus era impressionar o filho, certamente ele estava
conseguindo.Ele estava começando a ficar assustado ao entrar naquele reino até
então desconhecido. Essa era a ideia da “Grande Lição”. Os principais fatos,
histórias e imagens de antes do “Grande Evento” não estavam à disposição do
público em geral e muito menos das crianças e jovens. O objetivo era não
banalizar os horrores que aconteceram na segunda metade do século vinte e
começo do vinte e um. A descrição do “Grande Evento”, o que realmente
acontecera, suas consequências, só eram revelados nesse dia especial. O
mistério envolvendo este costume era muito importante na formação de todos os
humanos.
Durante
quase quatro horas Tarkus relatou as barbaridades ocorridas de 1900 a 2030,
data do “Grande Evento”. Passou pelas duas grandes guerras mundiais, pelo
holocausto, outras guerras, fanatismo, terrorismo, injustiça social,
fome...Falou também das coisas boas: a ida do homem à Lua, do avanço científico
e tecnológico, do controle das pestes, do avanço da medicina, etc. Explicou
como era o fanatismo religioso que levava as pessoas à destruição de seus
semelhantes. Falou do ódio de nações inteiras contra outras, da escravidão que
alguns impunham a outros seres humanos, às mulheres. Sirak mal podia acreditar
no que estava ouvindo. Ele sabia que as revelações da “Grande Llição” seriam chocantes, mas não imaginava quanto.
Ele sentiu
por alguns momentos como se uma nuvem negra estivesse invadindo seu cérebro,
sua mente, o mundo em que vivia. A civilização atual era extraordinária, embora
em alguns aspectos pudesse parecer extremamente controladora. No entanto,
ninguém sentia ódio. A religião havia sido completamente banida, embora
houvesse a noção de Deus, de um Criador. As pessoas podiam falar, escrever
sobre a maneira como viam a criação, mas não podiam formar religião, cultos ou
seitas em volta de suas crenças.
Logo
depois do Grande Evento, os poucos seres humanos que restaram, começaram a
formar famílias, juntando raças completamente diferentes. A princípio era
praticamente uma necessidade. Depois virou um programa de governo. Quase mil
anos depois, tinham uma raça única sem religiões ligadas a elas. Isso, por si
só, reduzia enormemente a possibilidade de conflitos. A língua era uma só, uma
especie de mistura do antigos idioma Inglês com línguas latinas e alguns
elementos de línguas asiáticas. O governo que se formou logo após a grande
tragédia resolveu eliminar definitivamente tudo que pudesse se relacionar ao
passado e ao horror relaionado a ele.
Depois de
um silêncio prolongado. Sirak perguntou:
- Essas
pessoas todas, quero dizer, nossos antepassados, eles eram mais avançados que
nós?
-Quando
tudo aconteceu, ficou pouco da imensa tecnologia que eles tinham. Os
sobreviventes não chegavam a dois milhões de seres espalhados pelo planeta.
Felizmente havia grandes inteligências e grandes cérebros entre eles. Ainda
assim, foram quase mil anos para se chegar ao mesmo nível em que a humanidade
estava naquele fatídico mês de 2030.
-Pai, o
senhor está falando agora do “Grande Evento”?
-Sim, meu
filho, é disso que estou falando.
Diante da
cara de interrogação de Sirak, Tarkus continuou:
-Foi no
mês de fevereiro de 2030. A tensão entre os países islâmicos e as grandes
potências europeias e Estados Unidos estava chegando a um ponto irrecuperável.
A China e a Coreia do Norte estavam com problemas econômicos insuperáveis
depois da grande pressão americana para recuperar sua hegemonia. Havia problemas
tão grandes e tão graves que os menores, como ataques cibernéticos e terrorismo,
haviam passado para um segundo plano. Foi aí que a tudo começou. Aproveitando-se
dessa confusão total, terroristas se juntaram a “hackers” e num mesmo dia
atacaram todas as redes mundiais de comunicação de ambos os lados. O ataque
ciebernético foi tão volumoso e tão poderoso que os governos europeus e o
americano resolveram reagir em conjunto. Era sabido que os ataques desse tipo
haviam sido patrocinados pela Coreia e
pela China. Lançaram ataques massivos contra eles e alguns países árabes. Ao
mesmo tempo estavam acontecendo atentados terroristas no mundo inteiro.
Foi um mês
de caos. Foi usado praticamente todo o arsenal atômico que restara dos acordos
de desarmamento entre os anos 2018 e 2027. Incêndios monstruosos, ataques
nucleares, armas químicas, tudo estava acontecendo ao mesmo tempo. A capacidade
de socorro era inexistente. Uma guerra bacteriológica de abrangência mundial foi
iniciada como último recurso para parar o conflito mundial. Foi efetiva no
sentido de que realmente liquidou o pouco que havia sobrado de todas as partes envolvidas
naquela luta insana.
Foram
décadas até que os sobreviventes começaram a se juntar e recolher o que havia
sobrado do avanço tecnológico da raça humana. Quase cinquenta anos mais tarde,
depois de muito caos, começaram a se formar governos isolados. Logo eles
começaram a se encontrar, fazer reuniões, com receio de se recomeçar uma nova
fase de retaliação entre os sobreviventes. Tiveram sucesso depois de quase dois
séculos. Negociaram coisas drásticas. Todos os tipos de armas foram proibidos.
Encontros religiosos também. Organizaram melhor uma mistura de línguas que havia
se formado anteriormente e a impuseram como oficial. Incentivaram casamentos e
uniões familiares entre culturas diferentes para se formar uma “raça” universal.
Cultivaram nas crianças, desde a mais tenra idade, o medo de conflito e a
vontade de ser “igual” aos outros. Dividiram a Terra em onze “zonas
habitacionais” e fizeram tudo que foi possível para mantê-las semelhantes. Era
incentivada a viagem e contato entre as diversas zonas para evitar qualquer
tipo de animosidade ou formação de “nacionalidade”.
Finalmente
para se dar um ar de misticismo e respeito à paz, criou-se o dia da “Grande Lição”.
Antes de começar a adolescência, todo ser humano passaria por essa espécie de
ritual, onde aprenderia e tentaria conservar para sempre a ideia fundamental da
harmonia.
Essa nova
raça havia renunciado a coisas básicas, partes essenciais das aspirações de um
ser humano, em prol de uma vida sem guerras, sem animosidade. Além disso havia
perdido quase mil anos de evolução científica e tecnológica. Estavam no ano 2970,
era o mês de fevereiro. Tarkus e seu filho Sirak deram-se as mãos e ficaram em
silêncio, meditando, para encerrar a “Grande Lição”. Ela terminava ali, mas a
luta pela paz definitiva continuava lá fora, a apenas alguns anos do novo
milênio que iria nascer. Pela janela do apartamento podia-se ver um avião,
bastante parecido com as naves de dez séculos atrás, cruzando o azul quase
escuro do céu, naquele lindo começo de noite. Havia poucos deles agora. Carros
também semelhantes aos modelos do início do século 21 trafegavam na avenida lá
embaixo. Ao redor do conjunto habitacional havia muito verde, muito espaço. A tranquilidade
e o sossego podiam ser respirados no ar.
Finalmente
o homem havia conseguido a paz no mundo.Custou quase seis bilhões de vidas e
quase mil anos de planejamento e reconstrução. Mas valeu a pena.Certamente
Tarkus sabia disso. Podia-se ler em seu rosto, brilhante e sereno, enquanto ele
encerrava a cerimônia da “Grande Lição” e afagava a cabeça de seu filho Sirak, um
novo príncipe dos novos tempos, um novo príncipe da paz.
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Estranhas Histórias
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