De volta para a infância
O “ seu” Anastácio nem parecia ter 78 anos. Era cheio de
vida. Sorria para todos, brincava, contava piadas. Se você perguntasse a idade
ele, iria responder com orgulho: “quase oitenta”. Nunca estava parado. Tinha
tarefas todos os dias, cada hora inventava uma coisa nova para fazer. Algo que
ele nunca deixava de lado era a caminhada da tarde. Colocava seu chapéu, saía
pela porta da frente, abria o portão, virava à direita e partia. Fazia quase
sempre o mesmo roteiro. Com pequenos intervalos, tinha vivido ali praticamente
toda sua vida, e portanto, como ele mesmo se gabava, “conhecia aquilo ali como
a palma de sua mão”. Naquela tarde de outono não foi diferente, começou a
percorrer os dez blocos de seu bairro. Na volta costumava fazer um roteiro diferente “porque era bom
variar”.
O “seu” Anastácio ia
cumprimentando todos pelas ruas, acenando, às vezes tirando o chapéu. Era tão
assíduo que servia de referência para muita gente: antes e depois de “seu” Anastácio
passar. Depois de andar uns cinco minutos, no entanto, sentiu uma pequena
tontura. Achou estranho pois até aquele momento seu dia tinha sido até melhor
do que o normal. Estendeu um dos braços e com ele apoiou o corpo contra um
poste. Após alguns segundos sentiu-se melhor, e como – tinha me esquecido de
dizer – ele era um pouco teimoso, continuou a caminhar. Logo a seguir, começou
a se lembrar de uma cena de infância. Para ser mais exato, quando viu a
sorveteria da esquina. Era a mesma, com pequenas modificações, de muitas
décadas atrás.Veio à sua mente uma cena muito comum. Eles e seus amigos
comprando sorvete, depois virando à esquerda numa rua estreita que dava para
uma praça, onde agora é o prédio da prefeitura. Ali ficavam horas, às vezes,
fazendo todo tipo de brincadeira, principalmente nas férias escolares.
Esqueciam-se do tempo. Era muito comum uma das mães, às vezes o pai ou um irmão
mais velho, aparecer lá, furioso, porque a hora de estar em casa tinha passado.
Não sei o que deu na cabeça do “seu” Anastácio, que ele
resolveu fazer o roteiro da infância. Ficou assustado quando viu o edifício
municipal à sua frente. Atrapalhado, tentou achar a praça que não mais existia.
Depois desistiu e começou a andar a esmo pelas ruas. Ele não via o que as
outras pessoas viam, ele via tudo como era no passado. Não pense que ele estava
desesperado ou coisa assim. Estava feliz em voltar àquela época. Viu rostos
conhecidos, acenava para todos, até para quem já havia morrido, pois muitas das
pessoas que via, já não existiam mais.
Lá em casa, todo mundo preocupado. O “seu” Anastácio nunca
fazia isso. Desaparecer não era coisa dele. Depois que passou uma hora além do
normal, sua esposa junto com seu filho mais velho, saíram de carro à sua
procura. Reviraram o roteiro que ele fazia umas cinco vezes, pararam em
diversos lugares, perguntaram e...nada. Pensando no pior, voltaram para casa.
Começaram os telefonemas, esperançosos, pois a cidade era pequena, alguém teria
de dar uma notícia. Após algumas chamadas já obtiveram algum resultado. Na
Santa Casa de Misericórdia, estava um senhor que a polícia havia achado deitado
num banco. Não conseguiam identificá-lo pois falava coisas incoerentes e
aparentemente não se lembrava de nada. Com o coração em sobressalto voaram até
o local. Após falar com as enfermeiras foram até o quarto onde estava o “seu”
Anastácio. Ele recebeu a todos com um grande sorriso. Entretanto, como já
haviam informado, ele só falava coisas incoerentes.
Levaram o “seu” Anastácio para diversos médicos, inclusive
em outras cidades. Ele não tinha nada no coração ou em outros órgãos. O que
estava acontecendo era que ele não estava mais se lembrando de coisas recentes.
Melhor dizendo, só se lembrava de um passado distante, mais precisamente de sua
infância. As coisas incoerentes que ele falava eram isso: fatos de sua
meninice. Aparentemente não havia cura.
Foi uma tristeza daquelas. Todo mundo chorando nos cantos. O
“seu” Anastácio já estava de volta em casa e, como os especialistas haviam
dito, ele não se lembrava de nada e seu estado era o mesmo. Todas as pessoas
intímas sentiam como se ele tivesse partido.
O sorriso continuava, agora até mais frequente. Era um
pouco diferente, no entanto. Era um sorriso infantil. Podia se ver claramente
que sua mente estava cheia de lembranças e atividade. Todos sabiam que ele
tinha tido uma infância feliz. Às vezes seu rosto se iluminava, outras vezes se
enchia de surpresa e satisfação. Todos o queriam “de volta”. Por outro lado,
bem lá no fundo, sabiam que ele estava cheio de alegria. Não é isso que
importa? Afinal o que realmente conta é o que a gente sente por dentro. Por um
truque do destino, o “seu” Anastácio estava preso, para o resto da vida, dentro
da criança que estava dentro dele.
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Essa vida da gente
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