Monday, April 24, 2017

O Cão Rebelde, uma fábula canina


O Cão Rebelde, uma fábula canina
(ou “Uma história de cães e lobos)


Não sei se é justo chamá-la de República dos Lobos, mas assim era seu nome. Digo isto porque a grande maioria da população era constituída de cães. Um fundamento sólido para tal topônimo é que  ambas as espécies têm uma origem comum. Melhor explicando, os simpáticos caninos se originaram de lobos. Talvez possamos ir direto ao ponto e explicar que, na verdade, os lobos é que mandavam e por isso escolheram o nome. Esse é sempre o argumento mais forte.
Os poucos lobos, todos no poder, eram abusivos e prepotentes. Procurar na história da república uma razão para tal era uma tarefa muito difícil. As origens e os meandros pelos quais passou a nação, eram confusos e cheio de contradições, o que torna a tarefa quase impossível. Assim, é difícil  apontar a razão do poder e da arrrogância dos lupinos. Já o comportamento dos cães era fácil de se explicar, era próprio de sua natureza, como indica o nome científico da espécie: “canis familiaris”.
Mas, bem ou mal, a terra dos lobos continuava sua marcha para a civilização. Eram até bem organizados, com regras e leis para tudo e para todos, especialmente para os caninos. Era praticamente impossível se encontrar um só item que não estivesse contido na “Cãostituição”. Não estranhe o nome, ele está certo. Neste setor, de leis a serem obedecidas, os lobos fizeram questão de que  a Carta Magna tivesse um nome parecido com o dos caninos. Uma questão de psicologia. Podia se inferir que as leis máximas eram para ser obedecidas especialmente pelos ditos cujos.
Ironicamente, assim como usamos a expressão “lobo em pele de cordeiro”, apareceu por lá um “cão com pele de lobo”.  Ele se achava com direitos. Sempre fora revoltado, mas acabava se conformando, pois era muito difícil reclamar uma vez que a “Cãostitução” previa penas horríveis para quem decidisse se rebelar. Ele aguentou de tudo, mas chegou uma época em que ele e seus colegas começaram a ficar com mais fome do que o normal.
Antes de entrar na fase épica desta fábula, é necessária uma explicação. Os lobos sabiam que podiam abusar à vontade de seus subalternos, exceto por um só aspecto. Não podia faltar comida. Isso não dava para aguentar. Por isso a Cãostituição previa um grande armazém que continha reservas para que os subalternos da república jamais precisassem passar por essa privação. Eles, os lobos, desde o  nascer de sua civilização, sabiam que isso não poderia acontecer, as consequências seriam desastrosas. O que estava ocorrendo, era que muitos lobos de escalões inferiores e até alguns de escalões mais altos, não contentes com sua própria ração – que já era bastante farta – começaram a surrupiar comida dos cães, ou seja, estavam invadindo o grande depósito. Tinham todo um esquema de troca de favores entre eles. Os guardas deixavam seus colegas lupinos entrarem nas dependências e se saciarem do alimento destinado aos caninos. Em troca lhes eram oferecidas lobas famintas de prazer, cuidadosamente escolhidas para tal. E a coisa toda estava funcionando bem. O Lobo Maior fazia de conta que não sabia de nada, pois entre os comilões estavam figuras importantes da república, tais como, juízes, legisladores e republicanos – assim chamados por pertencerem à República -  que conseguiam votos importantes para a perpétua reeleição do Lobo Maior e seus assessores.
O Cão Rebelde, de quem falamos há pouco, sabia que tinha chegado a sua hora. Os seus compatriotas nunca ligaram para suas reivindicações porque sabiam que tudo acabava dando em nada. Mas, comida faltando? Isso era uma questão de guerra. E o Cão Rebelde ficou famoso apenas alguns dias depois que lançou o manifesto “O Direito de Comer”. Era bem escrito, com as palavras certas. Tinha até expressões em Latim para impressionar a Suprema Corte dos Lobos.
Diante de uma causa tão nobre e tanta revolta popular, o Lobo Maior não teve outra  alternativa. Montou uma Comissão Lupina de Inquérito. O povo canino apoiou – pela primeira vez – um ato do governo. Três lobos ficaram encarregados de convocar outros dez de sua ala e um representante canino – que não fosse o Cão Rebelde – para fazer parte da comissão. Até fazia sentido, pois os integrantes teriam de ser neutros e ele certamente pendia para sua própria causa.
O tempo foi passando e a tal da comissão nunca se formava. Alguns convidados eram impugnados por um dos três lobos, outros ficavam doentes pouco antes da primeira reunião, enfim,  a coisa não ia para frente. Antes que o povo  desanimasse, o Cão Rebelde lançou um segundo manifesto falando que aquela demora era proposital e que o governo estava querendo se safar da acusação. Aliás, dizia ele na sua redação, os lobos gulosos continuam roubando nossa comida “neste exato momento em que lanço este manifesto”. Palavras certas, duras, incisivas. Era um momento político pesado. O Lobo Maior embora tivesse muito poder, estava consciente de que a quantidade de cachorros era muito grande e se eles conseguissem se unir, poderiam fazer um estrago. Foi aí que o grande líder anunciou: estava formando uma segunda comissão para apurar as irregularidades da primeira. O que estaria causando tanta demora na simples constituição de um grupo? E assim fez. Desta vez não houve muito júbilo. Estava clara a intenção de não resolver o problema. Por uma questão de ordem, o Cão Rebelde resolveu dar mais um tempo. Ninguém poderia acusá-lo de intransigente, de comunista, de badernista.
Um bom tempo se passou. A primeira comissão estava parada, pois precisava esperar a apuração da segunda comissão. Esta última ainda não tinha feito nada. Não conseguia reunir elementos suficientes para ser formada. A emenda foi pior que o soneto, sendo esse o soneto dos cães, é claro. O soneto dos lobos era uma obra magistral, oganizada e em perfeita sintonia.
Passou mais tempo ainda e a paciência do Cão Rebelde se esgotou. Com muita astúcia conseguiu o endereço onde estaria funcionando a comissão que investigava a primeira comissão. O local estava fechado. Com ajuda de alguns cães locais, ficou sabendo que o presidente passava de vez em quando por ali, para salvar as aparências. Ninguém poderia acusá-lo de não estar fazendo seu trabalho, que, era difícil e penoso. Afinal de contas, é uma responsabilidade e tanto fiscalizar quem deveria estar apurando, ou seja, a primeira comissão. O fato é que o encarregado nem sequer entrava no prédio. Ele apenas dava uma passada rápida na “Cantina do Lobo”, do outro lado da rua, comia muito bem com a verba destinada para esse fim, tomava uns dois copos de uísque, marcava a presença e pronto. Sempre tinha o cuidado de pedir para colocar “refrigerante” no recibo que levava para prestar contas. Não ficava bem beber em serviço e muito menos usar dinheiro público para tal.
Quando entrou na cantina para confrontar o mau lobo, o Cão rebelde imediatamente identificou seu suspeito e esse identificou o primeiro, uma vez que a essa altura ele já era uma figura pública. O rebelde pensou nas frases que iria falar para aquele safado, mas, quando chegou bem perto e viu aquele ser desprezível com o copo de uísque na mão, zombando dele, não aguentou, deu uma mordida feroz em sua jugular e saiu dali. O lobo foi socorrido e se salvou, apesar de ter beirado a morte. O Cão Rebelde foi preso minutos depois na “Via Lupa Maior” onde tentava se esconder.
Aquilo foi um presente para o Lobo Maior. Resolvia todos seus problemas. Os cães tinham perdido a razão porque seu líder tinha perdido a cabeça. Como punição decretou que uma parcela do depósito dos alimentos caninos fossem redirecionados, agora oficialmente, para os lobos famintos. Para surpresa dos cães, entretanto, não dissolveu nenhuma das duas comissões de inquérito. Deixou-as como instituições permanentes embora não precisassem mais funcionar de fato. Dobrou o sálario de seus componentes. Aliás, fique esclarecido que, depois da mordida do Cão Rebelde, as duas tiveram suas vagas paradoxalmente  preenchidas. O salário desses zelosos funcionários do sistema de justiça foram dobrados. O cargo do único canino do grupo foi extinto antes mesmo de ser preenchido. É verdade que continuaram recebendo a mesma coisa- o que não era pouco – pois os outros 50%, aqueles referentes ao aumento -  foram destinados a causas não especificadas, pois era uma questão de seguranca nacional.
O Cão Rebelde continua preso, sem julgamento, não se sabe em que prisão. Ele se sente muito só, ninguém o visita, nem mesmo seus fiéis amigos caninos. Não pode sequer pedir  “habeas-corpus”, pois os lobos não permitem que presos terroristas tenham repesentação legal. De nada adiantaria, de qualquer forma. A República dos Lobos não tem a menor ideia do que seja este instrumento legal. Nem está prevista na “Cãostituição”.

Assim termina a triste e curta saga do “Cão Rebelde”.

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