(ou “Uma história de cães e lobos)
Não
sei se é justo chamá-la de República dos Lobos, mas assim era seu nome. Digo
isto porque a grande maioria da população era constituída de cães. Um fundamento
sólido para tal topônimo é que ambas as
espécies têm uma origem comum. Melhor explicando, os simpáticos caninos se
originaram de lobos. Talvez possamos ir direto ao ponto e explicar que, na verdade,
os lobos é que mandavam e por isso escolheram o nome. Esse é sempre o argumento
mais forte.
Os
poucos lobos, todos no poder, eram abusivos e prepotentes. Procurar na história
da república uma razão para tal era uma tarefa muito difícil. As origens e os
meandros pelos quais passou a nação, eram confusos e cheio de contradições, o
que torna a tarefa quase impossível. Assim, é difícil apontar a razão do poder e da arrrogância dos lupinos.
Já o comportamento dos cães era fácil de se explicar, era próprio de sua
natureza, como indica o nome científico da espécie: “canis familiaris”.
Mas,
bem ou mal, a terra dos lobos continuava sua marcha para a civilização. Eram
até bem organizados, com regras e leis para tudo e para todos, especialmente
para os caninos. Era praticamente impossível se encontrar um só item que não
estivesse contido na “Cãostituição”. Não estranhe o nome, ele está certo. Neste
setor, de leis a serem obedecidas, os lobos fizeram questão de que a Carta Magna tivesse um nome parecido com o dos
caninos. Uma questão de psicologia. Podia se inferir que as leis máximas eram
para ser obedecidas especialmente pelos ditos cujos.
Ironicamente,
assim como usamos a expressão “lobo em pele de cordeiro”, apareceu por lá um “cão
com pele de lobo”. Ele se achava com
direitos. Sempre fora revoltado, mas acabava se conformando, pois era muito
difícil reclamar uma vez que a “Cãostitução” previa penas horríveis para quem
decidisse se rebelar. Ele aguentou de tudo, mas chegou uma época em que ele e
seus colegas começaram a ficar com mais fome do que o normal.
Antes
de entrar na fase épica desta fábula, é necessária uma explicação. Os lobos sabiam
que podiam abusar à vontade de seus subalternos, exceto por um só aspecto. Não
podia faltar comida. Isso não dava para aguentar. Por isso a Cãostituição
previa um grande armazém que continha reservas para que os subalternos da
república jamais precisassem passar por essa privação. Eles, os lobos, desde o nascer de sua civilização, sabiam que isso não
poderia acontecer, as consequências seriam desastrosas. O que estava ocorrendo,
era que muitos lobos de escalões inferiores e até alguns de escalões mais
altos, não contentes com sua própria ração – que já era bastante farta – começaram
a surrupiar comida dos cães, ou seja, estavam invadindo o grande depósito.
Tinham todo um esquema de troca de favores entre eles. Os guardas deixavam seus
colegas lupinos entrarem nas dependências e se saciarem do alimento destinado
aos caninos. Em troca lhes eram oferecidas lobas famintas de prazer,
cuidadosamente escolhidas para tal. E a coisa toda estava funcionando bem. O
Lobo Maior fazia de conta que não sabia de nada, pois entre os comilões estavam
figuras importantes da república, tais como, juízes, legisladores e republicanos
– assim chamados por pertencerem à República - que conseguiam votos importantes para a
perpétua reeleição do Lobo Maior e seus assessores.
O
Cão Rebelde, de quem falamos há pouco, sabia que tinha chegado a sua hora. Os
seus compatriotas nunca ligaram para suas reivindicações porque sabiam que tudo
acabava dando em nada. Mas, comida faltando? Isso era uma questão de guerra. E
o Cão Rebelde ficou famoso apenas alguns dias depois que lançou o manifesto “O
Direito de Comer”. Era bem escrito, com as palavras certas. Tinha até
expressões em Latim para impressionar a Suprema Corte dos Lobos.
Diante
de uma causa tão nobre e tanta revolta popular, o Lobo Maior não teve outra alternativa. Montou uma Comissão Lupina de Inquérito.
O povo canino apoiou – pela primeira vez – um ato do governo. Três lobos
ficaram encarregados de convocar outros dez de sua ala e um representante
canino – que não fosse o Cão Rebelde – para fazer parte da comissão. Até fazia
sentido, pois os integrantes teriam de ser neutros e ele certamente pendia para
sua própria causa.
O
tempo foi passando e a tal da comissão nunca se formava. Alguns convidados eram
impugnados por um dos três lobos, outros ficavam doentes pouco antes da primeira
reunião, enfim, a coisa não ia para
frente. Antes que o povo desanimasse, o
Cão Rebelde lançou um segundo manifesto falando que aquela demora era
proposital e que o governo estava querendo se safar da acusação. Aliás, dizia
ele na sua redação, os lobos gulosos continuam roubando nossa comida “neste
exato momento em que lanço este manifesto”. Palavras certas, duras, incisivas.
Era um momento político pesado. O Lobo Maior embora tivesse muito poder, estava
consciente de que a quantidade de cachorros era muito grande e se eles
conseguissem se unir, poderiam fazer um estrago. Foi aí que o grande líder
anunciou: estava formando uma segunda comissão para apurar as irregularidades
da primeira. O que estaria causando tanta demora na simples constituição de um
grupo? E assim fez. Desta vez não houve muito júbilo. Estava clara a intenção
de não resolver o problema. Por uma questão de ordem, o Cão Rebelde resolveu
dar mais um tempo. Ninguém poderia acusá-lo de intransigente, de comunista, de
badernista.
Um
bom tempo se passou. A primeira comissão estava parada, pois precisava esperar
a apuração da segunda comissão. Esta última ainda não tinha feito nada. Não
conseguia reunir elementos suficientes para ser formada. A emenda foi pior que
o soneto, sendo esse o soneto dos cães, é claro. O soneto dos lobos era uma
obra magistral, oganizada e em perfeita sintonia.
Passou
mais tempo ainda e a paciência do Cão Rebelde se esgotou. Com muita astúcia
conseguiu o endereço onde estaria funcionando a comissão que investigava a
primeira comissão. O local estava fechado. Com ajuda de alguns cães locais,
ficou sabendo que o presidente passava de vez em quando por ali, para salvar as
aparências. Ninguém poderia acusá-lo de não estar fazendo seu trabalho, que,
era difícil e penoso. Afinal de contas, é uma responsabilidade e tanto fiscalizar
quem deveria estar apurando, ou seja, a primeira comissão. O fato é que o
encarregado nem sequer entrava no prédio. Ele apenas dava uma passada rápida na
“Cantina do Lobo”, do outro lado da rua, comia muito bem com a verba destinada
para esse fim, tomava uns dois copos de uísque, marcava a presença e pronto.
Sempre tinha o cuidado de pedir para colocar “refrigerante” no recibo que
levava para prestar contas. Não ficava bem beber em serviço e muito menos usar
dinheiro público para tal.
Quando
entrou na cantina para confrontar o mau lobo, o Cão rebelde imediatamente
identificou seu suspeito e esse identificou o primeiro, uma vez que a essa
altura ele já era uma figura pública. O rebelde pensou nas frases que iria
falar para aquele safado, mas, quando chegou bem perto e viu aquele ser
desprezível com o copo de uísque na mão, zombando dele, não aguentou, deu uma
mordida feroz em sua jugular e saiu dali. O lobo foi socorrido e se salvou,
apesar de ter beirado a morte. O Cão Rebelde foi preso minutos depois na “Via
Lupa Maior” onde tentava se esconder.
Aquilo
foi um presente para o Lobo Maior. Resolvia todos seus problemas. Os cães
tinham perdido a razão porque seu líder tinha perdido a cabeça. Como punição
decretou que uma parcela do depósito dos alimentos caninos fossem redirecionados,
agora oficialmente, para os lobos famintos. Para surpresa dos cães, entretanto,
não dissolveu nenhuma das duas comissões de inquérito. Deixou-as como
instituições permanentes embora não precisassem mais funcionar de fato. Dobrou o
sálario de seus componentes. Aliás, fique esclarecido que, depois da mordida do
Cão Rebelde, as duas tiveram suas vagas paradoxalmente preenchidas. O salário desses zelosos
funcionários do sistema de justiça foram dobrados. O cargo do único canino do
grupo foi extinto antes mesmo de ser preenchido. É verdade que continuaram
recebendo a mesma coisa- o que não era pouco – pois os outros 50%, aqueles referentes
ao aumento - foram destinados a causas
não especificadas, pois era uma questão de seguranca nacional.
O
Cão Rebelde continua preso, sem julgamento, não se sabe em que prisão. Ele se
sente muito só, ninguém o visita, nem mesmo seus fiéis amigos caninos. Não pode
sequer pedir “habeas-corpus”, pois os
lobos não permitem que presos terroristas tenham repesentação legal. De nada
adiantaria, de qualquer forma. A República dos Lobos não tem a menor ideia do
que seja este instrumento legal. Nem está prevista na “Cãostituição”.
Assim
termina a triste e curta saga do “Cão Rebelde”.
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