Meu
Cérebro Ainda Funciona...
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Não
quero chocar você com a minha situação e é por isso que vou lhe dar as notícias
bem devagar. Na verdade, eu também fiquei sabendo das coisas aos poucos. Se
assim não fosse, acho que meu cérebro explodiria e ele é tudo o que eu tenho,
se é que você me entende. Vamos devagar, não quero atropelar minha narração. Eu
acordei e, pelo menos durante os primeiros segundos, achei que estava tudo
normal. Logo a seguir, porém, percebi que estive dormindo há muito tempo. E
esse foi o primeiro susto que tive. Não sabia por quanto tempo tinha
estado “ausente”, ou onde estava e nem mesmo quem eu era, mas, positivamente,
sabia que muito tempo tinha se passado. A gente, ou pelo menos eu, quando passa
por uma situação muito difícil ou diferente, imediatamente muda as referências,
muda o padrão de exigências, para que as coisas fiquem aceitáveis. Claro, que
mais podemos fazer? Não é por isso que, quando alguém morre, dizemos que “foi
melhor, estava sofrendo muito”? Ou se ele não estava sofrendo, dizemos “ainda
bem que morreu em paz” ou ainda “não viveu muito, mas foi feliz enquanto estava
vivo” ou qualquer coisa assim? Sempre achamos que poderia ter sido pior. No meu
caso, entretanto, foi e está sendo difícil arrumar uma boa comparação, ou uma
referência qualquer para me consolar. Você vai entender, vai ser difícil algo
que possa ser pior ou pelo menos mais estranho. Logo, logo, você vai
compreender o que eu quero dizer.
É
difícil explicar o que estou sentindo. É como não ter corpo. Sinto que tive
sempre uma vida cheia de coisas, de responsabilidades, de pessoas à minha volta,
mas não me lembro de nada, de ninguém, nem de meu nome. Outra coisa
interessante: não vejo nada, mas também não está escuro. Escutar coisas eu
escuto, mas é de um jeito estranho. É como ouvir as palavras sem som. Como
se elas estivessem entrando em forma pura no meu pensamento. Parece óbvio que
eu estou sob o efeito de drogas, drogas fortíssimas. Justo eu que não gosto de
tomar remédios, nem aspirina. Mas não tenho certeza disso também. Pode ser
outra coisa. Por que estou aqui, como cheguei a esse ponto? Não tenho a menor
ideia. Não posso reclamar de dor. Isso eu não sentia e não sinto agora. É como
se eu estivesse existindo sem corpo. Não consigo parar de repetir isso, mas é
bem o que estou sentindo.
O
tempo passa rápido, mas não importa, pois não tenho a menor ideia da época em
que estou, não tenho referência, você entende? Algumas coisas mudaram desde que
tomei consciência dessa minha inconsciência. No começo eu ouvia conversas, mas
não sabia o que estavam falando. Agora escuto frases e conversas inteiras. Mas
não estão falando de mim, não. E, embora eu entenda o que eles estão falando,
não adianta muito pois eu não sei qual é o contexto, qual é a referência. É como
ler um pedaço de um livro ou assistir a um pedaço de um filme sem saber o
começo nem o fim.
Algo
muito importante está acontecendo agora. Estou tendo uma experiência
fantástica. Estou andando numa estrada muito bonita, com casas luxuosas aqui e
acolá, uma paz sem par, como nunca tinha experimentado antes. Interessante sou
eu e não sou eu. Sei que sou eu quem está caminhando, mas não sinto que sou eu.
Ou é ao contrário? Isto está gravado em minha cabeça, não vou esquecer. Parece
que alguém colocou estas imagens lá. Outras vezes eu estou numa sala
conversando com pessoas. Minha voz não sai, mas as pessoas assim mesmo
respondem, conversam comigo. Todos estão felizes, riem muito. Acho que gostam
de mim. Não devem estar sabendo do meu estado. Acho que conheço essas pessoas,
mas não sei de onde. Também não sei o nome de ninguém. Mais estranho ainda, ao
mesmo tempo em que eu participo da pequena reunião eu sou também um espectador.
Quero dizer, estou observando a mim mesmo, que fala animado, conversa. Isso é
bom.
Começo
a sentir melhor o espaço. Quando nada está acontecendo, tenho a impressão de
que estou numa sala. Não vejo nada, mas sinto a presença de pessoas circulando,
falando. Acho que não falam de mim. Acho que não me veem, mas não tenho
certeza. Sinto pela primeira vez o corpo, mas como tudo mais, não parece meu
corpo. Talvez a lembrança de um corpo? Por pouco tempo. Agora a sensação está
indo embora. Cada vez mais posso entender o que as pessoas estão conversando na
sala. Estou pensando comigo mesmo – gozado falar isso, nunca tinha pensado
nessa expressão - estou pensando “comigo mesmo”... Eu deveria estar preocupado
com a situação. Com certeza o que está acontecendo comigo não é nada normal.
Gozado, não consigo me preocupar. Estou curioso, porém. Estava falando “normal”,
mas agora tenho dúvidas. Quero dizer, nem sei mais o que é normal.
A
última vez que ouvi conversas na sala, tive certeza de que falavam de mim. Dessa
vez era de mim que eles falavam. Duas pessoas estavam discutindo sobre minha
pessoa, sim senhor. Falavam como se eu não pudesse ouvir. Um deles dizia que
estava preocupado. Que, se pudesse, não teria participado de tudo aquilo. Podia
sentir tristeza não na sua voz, não na voz, na sua...não sei dizer o quê.
Porque o que eu ouvi não era som, era como se fosse um pensamento. O outro
parecia menos procupado, parecia mais excitado com o que estava acontecendo,
seja lá o que fosse.
Cada
vez mais fico “próximo” dos dois. Interessante, pois posso sentir que os dois
também me “sentem” mais. Acho que nunca vou conseguir explicar a sensação. Eles
falam coisas estranhas, às vezes. Tão estranhas que eu acho que não pode ser
verdade e eu me recuso a pensar nelas. Desta última vez, entretanto, a conversa
foi tão direta, tão explícita, que fui obrigado a acreditar e enfrentar a
realidade.
Um
deles estava ficando irritado com o outro. Não estava mais aguentando a
choradeira. Acho que o “outro” estava com pena de mim, estava comovido com a
minha situação, que nem eu sei qual é. Mas além de comovido, acho que ele
estava preocupado. Eu estou ficando bom nisso. Consigo cada vez mais “sentir”
as pessoas por dentro, pelo menos aquelas duas, sem mesmo vê-las. No meio do
bate-papo dos dois, o primeiro, aquele que estava irritado, falou algo que
realmente mudou tudo. Interessante que ele tinha falado a mesma coisa antes mas
eu não tinha percebido o verdadeiro significado. No meio da discussão, ele
falou para o “outro” parar com aquela choradeira, pois “aquilo era apenas um
cérebro”. Antes eu sempre achei que quando ele falava “cérebro” ele se referia
a minha pessoa inteira. Sabe, como quando a gente fala que alguém é “uma
cabeça”? Foi aí que senti a coisa toda. Eu era apenas um cérebro mesmo. E desta
vez ele falou tudo. Eu era “um cérebro mergulhado num líquido especial e com
centenas de microfios ligados, tudo dentro de um cilindro de vidro”. Acho que
ele mencionou também que havia uma máquina. Eu só percebi que eu era “um cérebro”
mesmo, quero dizer só um cérebro, sem corpo, porque ele usou a palavra “aquilo”
junto. O “aquilo” era eu. Senti um choque mas logo me recuperei. Por pior que
fosse a realidade, havia alguma coisa que eles tinham feito em mim que não me
deixava ficar angustiado, humilhado ou triste. Também não sentia alegria. Como
tudo havia acontecido? Não sei. Talvez um acidente? Ou será que foi tudo de
propósito? Também não sei. Não me importo com isso. Sem problemas. O que vai
acontecer? Não sei e não me importa. Eles devem saber o que estão fazendo. E se
não souberem ou se for algo abominável? Não importa também. Eu sei que eu
deveria estar desesperado, deveria estar angustiado e sentindo as piores
sensações que uma mente pode sentir. Mas não...não sinto nada. Agora você
entende porque eu disse no começo que queria explicar tudo devagarinho. Também
agora você pode entender quando eu falei que “cérebro é tudo que eu
tenho”...Definitivamente, cérebro é tudo que eu tenho.
Amei o artigo,muito bem feito!
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