A
República dos Prazeres
autor: Flávio Cruz
Era
uma vez uma república. Muito grande, muito rica, fabulosa. Trabalhava-se muito,
ganhava-se muito e comia-se bem e bastante. Ah, sim, comida era algo muito
especial. Como ninguém tinha tempo de prepará-la pois precisavam ganhar
dinheiro, modernas fábricas se encarregavam disso. Elas faziam alimentos
saborosos. Uma delícia. Especiarias crocantes, apimentadas e salgadas. Os doces então, não dá nem para descrever. O que não se economizava
era o açúcar. Era tudo muito doce e isso era necessário porque antes o salgado
e o crocante já tinham atiçado o paladar. Muito importante igualmente era o o óleo.
Tudo precisava ser muito bem frito e ter aquele colesterol gostoso e
indispensável. Outra coisa muito interessante era que eles colocavam sal nos
alimentos doces para contrabalançar um pouco – era muito doce – e colocavam
açúcar nos alimentos salgados, também para contrabalançar. Eram uns gênios em
termos de culinária industrial.
Havia
no entanto um pessoal chato e desmancha-prazeres. Inventaram uma história ridícula
de que essas coisas não eram boas para a saúde e que até as crianças estavam
ficando gordas. Conversa fiada.Todo mundo estava feliz, por que se preocupar?
Existe gente que consegue ver problema em tudo. Esse pessoal que estava
reclamando era muito chato e não parava. Eles eram iguais aos comunistas e subversivos.
Estão sempre querendo mudar a ordem vigente. O pessoal não estava dando muita bola para eles. Se gostavam de falar, que falassem. O problema é que eles eram
muito insistentes. Começaram a fazer estísticas. Pior que isso, ficavam falando
das mesmas para todo mundo: nos jornais, na televisão. Alguns abusados
escreveram até livros. Tem gente que não pode ver felicidade dos outros que
quer estragar. Que mal pode haver no doce, no salgado, no azeite? Afinal de contas, tudo vem da natureza.
Alguns
mais chatos que os outros, começaram a fazer umas contas esquisitas. Que muita
gente estava com diabetes (imagina
culpavam o coitado do açúcar!) e com pressão alta (imagina que falavam que era
por causa do sal).Chegaram ao absurdo de dizer que tinha gente com problemas no
coracão por causa do colesterol! Tudo isso dava para aguentar, mas quando
falaram que, no final das contas isto poderia custar mais dinheiro no setor de
saúde e que este dinheiro teria que ser conseguido através de mais impostos,
então a coisa ficou feia.
A
República, entretanto, tinha grandes cabeças e grandes
estrategistas. Imediatamente explicaram o mal entendido, não havia necessidade
de se apavorar. Pelo contrário, a ordem era só regogizar. Tudo muito óbvio e
muito simples. Se era verdade que mais pessoas precisavam ir ao hospitais,
verdade era também que estavam tomando mais remédios. Muitos remédios:
comprimidos, injeções, soluções. E não era só isso. Havia mais consultas, mais
receitas, mais médicos, mais enfermeiras, mais hospitais e o grande argumento:
mais empregos! Era impossível não se ver
o benefício geral para a República. Ah, estava esquecendo, claro que haveria
mais impostos também. Não estou nem mencionando
a questão da propaganda. Quanto dinheiro girava em anúncios! Pessoas felizes
nas telas saboreando coisas crocantes, doces, salgadas, picantes e até geladas!
Pessoas curadas por remédios fantásticos dando testemunhos na telinha. Propagandas
de doutores e hospitais! De novo, mais anúncios e mais empregos para gente importante
que sabe “bolar” um anúncio e para gente não tão importante que iria colar os
anúncios nos “outdoors”. Só um idiota completo não conseguiria ver a quantidade
enorme de benefícios para toda a nação! Existe gente que se perde em detalhes e
não consegue ver o “todo”.
Há
cidadãos que nunca estão felizes e por isso alguns ainda insistiram. Falaram
com os representantes do povo e pediram para eles intervirem e pararem com aquela
loucura. Precisava haver controle, regulamentação, algo precisava ser feito
antes que toda a nação ficasse doente.
Estavam diante da inevitabilidade de um país de obesos, hipertensos, circulando
em cadeiras de rodas e outros aparelhos especiais. Que besteira! Além do mais,
se isso fosse verdade, já pensaram na tecnologia a ser desenvolvida para esses
veículos, as fábricas, os empregos? Mal
podia se antever toda a gama de oportunidades para todos. Isso sem contar o conforto com que as pessoas
poderiam circular daqui para a frente.
Voltando
aos representantes do povo, a maioria não ligou, mas alguns resolveram discutir
o assunto. Mas não tinha jeito. Aquele povo todo que fabricava alimento mandou
um verdadeiro exército – tudo dentro da lei – para provar o erro dos subversivos,
como eles não entendiam de economia, como eles iriam acabar com a República, dificultando negócios, transacões e
eliminado empregos com aquele debate desnecessário sobre alimentação saudável.
A
discussão era tanta e tamanha era a confusão que muitos advogados eram necessários.
Com tantos advogados, eram precisos também mais anúncios para que eles pudessem
explicar que eles eram melhores do que os outros e que iriam ganhar a discussão
para você, desde que você pagasse as custas e os honorários necessários para se
ganhar um argumento. Mais anúncio, mais gente fazendo anúncios… mais tudo.
Alguns
representantes, muito poucos, estavam firmes na questão de preservar a saúde
pública e prometeram fazer algo. Foi aí que aconteceu uma tragédia ainda maior e que não tinha nada a ver com os doces e salgados.
Aquele pessoal que cuidava do dinheiro das indústrias e do povo em geral, ousou
mais do que era permitido ousar, aventurou-se mais do que era sábio aventurar. Uma
catástrofe, perdeu-se muito dinheiro e, pior que isso, muito emprego. Todo
mundo ficou mudo. Até pararam um pouco de falar do doce e do salgado. Agora só
se falava de dinheiro e emprego.
Claro
que o fato de não se falar sobre o fato não impede que continue aumentando a quantidade de gente em
cadeiras de rodas, gente nos hospitais, gente andando de ambulância… Mas acho
que não há problema, pois isso vai gerar mais emprego, mais negócios, etc… e a
República vai continuar a crescer, se divertir e ser feliz! Viva a República!
P.S.:
Esta é uma história absurda, sem fundamento na realidade, pura obra de ficção,
e qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é pura e incrível coincidência!
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