As
coisas que fiz no dia de hoje
Autor: Flávio Cruz
Era
um emprego que definitivamente causava desgaste. Entretanto toda manhã Brian
chegava disposto e alegre. Minha função era verificar se ele estava bem, se
estava pronto para o trabalho. Estávamos no começo do século 22 e nós, humanos,
não mais fazíamos esforço físico, apenas tínhamos funções de controle. Nosso
departamento cuidava dos clones. Esses
sim trabalhavam duro. Quando havia algum problema com eles, eram
enviados para nós. Nós os fazíamos dormir e os colocávamos numa grande máquina.
A maioria tinha problemas fáceis de se
resolver e imediatamente os fazíamos voltar para o trabalho. Alguns poucos, no
entanto, perecisavam de mais cuidados. Para ser franco, quando eles precisavam
de muitos cuidados, nós...bem, nós encerrávamos suas carreiras. Na verdade essa
era a função do Brian, a minha, como eu disse, era ver se ele estava em
condições de executar as suas obrigações. Você deve estar se perguntando porque
todo esse cuidado com o Brian. Bem, não era nada fácil tomar as decisões que
Brian tomava. Estávamos em uma época de paz, de grande respeito pela vida,
praticamente não havia violência. Na
verdade a única coisa estranha que ainda restava na nossa civilização era essa
história de clones. Eles eram geneticamente “configurados” para exercerem funcões específicas,
exatamente como haviam previsto grandes escritores e cineastas nos séculos 20 e
21. Tínhamos assim duas grandes classes de seres humanos: nós e os clones. Eles
eram humanos, por mais que os cientistas
apresentassem argumentos ao contrário. Verdade é que a engenharia
genética fazia de tudo para que eles não se parecessem conosco. Os sentimentos,
a sociabilidade e a emoção em geral eram mantidos no menor nível possível:
apenas o suficiente para executarem seus trabalhos. A inteligência prática era
aguda, objetiva, aguçada e direcionada. Apesar de toda a tecnologia que
tínhamos, às vezes as coisas não davam
certo. De certa forma, lá no fundo,
alguns simplesmente se recusavam a seguir seu destino. Era como se, aquilo que
antigamente chamávamos de alma ou espírito, se recusasse a aceitar o que a
ciência genética estava obstinada em fazer. O Brian, eu não queria estar na
pele dele, tinha que tomar aquelas decisões horríveis. Pior que isso, tinha que
executá-las. Como disse, não valia a pena muitas vezes tentar “acertar” um
clone que estava com problemas. E Brian tinha que ir até o fim, ou seja,
apertar o botão - na verdade um leve toque na imagem holográfica projetada pelo
computador – e esperar alguns segundos até que o corpo fosse desintegrado.
Ironicamente entre os “não-clones” era dificil encontrar alguém com essa frieza
de tomar a decisão e executá-la. No final do dia Brian estava uma lástima,
sentia-se um monstro. Como éramos bons em criar e também destruir os clones, tínhamos
de ser bons também em resolver problemas iguais aos de Brian. Havia outras funções
iguais às do Brian. Essa parte era eu
que fazia. Colocava o Brian numa pequena célula, ajustava uns terminais em sua
cabeça e...deletávamos todas as más memórias do dia. Mais do que isso,
substituíamos essas imagens por outras muito mais agradáveis. Todos os dias Brian ia para casa feliz pelo
bom trabalho que tinha feito ao longo da jornada diária. Não se lembrava de
nada desagradável. À noite fazia o que gostava de fazer em casa e no dia
seguinte começava um novo dia, cheio de boas lembranças...
Ainda
assim, momentos antes de cada sessão de “deletamento” Brian sofria muito com
remorso do que acabara de fazer. Não achava certo também deletar as memórias
como se nada tivesse acontecido.
Ele
foi muito habilidoso, de tal forma que eu não percebi quando burlou o
procedimento. Para ser franco nem sei ao certo como ele fez. Por não ter
deletado as lembranças do dia, passou uma noite horrível pensando em todas as
coisas que teve de fazer. No dia seguinte, quase não autorizei a sua entrada na sala de
procedimentos. Era como se ele estivesse
punindo a si mesmo. Pela segunda vez ele conseguiu se livrar do deletamento.
Foi o que acabou com ele. Passou a noite se torturando. Ele ainda conseguiu vir
trabalhar. Deve ter usado algum mecanismo tranquilizante antes de vir. Uma vez
dentro de sua sala de operações, chamou um clone que estava liberado para
trabalhar e deu algumas instruções para ele. Entrou na mesma célula onde já
havia “desintegrado” inúmeros clones e esperou. O clone seguiu à risca as
instruções que recebera e no momento certo colocou seu dedo no cilindro
holográfico. Brian e todo seu remorso desapareceram instantaneamente. O último
suicídio registrado ocorrera há decadas. Inicialmente pensou-se que um clone
havia se rebelado ou que houvera um acidente, coisa rara de acontecer. Depois, durante
a investigação, ficou claro por pistas deixadas pelo próprio Brian, que era aquilo
que ele queria. Achava que não merecia viver e que um clone deveria terminar
com sua existência. Afinal...
A
política de reciclagem de clones e da própria criação dos mesmos foi
rediscutida após o incidente e inúmeras e profundas modificações foram
introduzidas no programa. Este foi o legado de
Brian, o homem que achava que não se pode apagar as coisas que foram
feitas durante o dia...
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