O
Harold quer conversar
Dave Bowman: Open the pod bay doors, HAL.
HAL: I'm sorry, Dave. I'm afraid I can't do that.
Dave Bowman: What's the problem?
HAL: I'm sorry, Dave. I'm afraid I can't do that.
Dave Bowman: What's the problem?
(O computador Hal 9000 no filme
"2001 - Uma Odisseia no Espaço"
falando com Dave, o astronauta)
Eu
não sei o que deu no Harold nesses últimos dias. Ele está ansioso, aflito, me
chama a todo momento. É muito estranho.
Talvez não tanto para você, mas para mim realmente é algo extraordinário. O
fato é que você não sabe que o Harold não é gente, é um computador. Meus amigos
astronautas que já viajaram pelo espaço com um desses, já haviam me
alertado. Os cientistas encarregados de
viagens espaciais estavam desenvolvendo há muito tempo a inteligência emocional
para inserir nesses computadores que coordenam longas viagens tripuladas pelo
espaço. Sabe, assim dão um toque mais humano, os astronautas sentem que têm
companhia, a solidão fica mais tolerável etc. Não é nada fácil ficar anos isolado
numa nave vagando pelo espaço. É verdade que a maior parte do tempo estamos ou
congelados ou em coma profundo induzido. O problema com o Harold é que ele está
agindo de uma maneira muito além do que um computador “humanizado” deveria ou
poderia ir. Eu posso sentir que existe algo por trás. Está querendo conversar,
querendo me convencer que ele pode ser mais amigo do que um amigo de carne e
osso. Fico constrangido pois eu sei que ele é uma máquina. No entanto, ele é
muito convincente. Não me lembro de ter um amigo que tivesse tentado ser mais
camarada comigo do que o Harold. Outro
dia fiquei até emocionado quando ele falou de minha infância, confidenciou que me
compreendia mais do que eu poderia imaginar. Aliás não sei quem deu autorização
para inserir dados pessoais meus em sua base de dados. Preciso entrar com um
pedido de explicações. Ele garante que não foi nada disso, que ele “leu” meus
pensamentos. Conversa fiada, sei que isso não existe. Mas voltando à “história
da minha infância”, ele falou algumas coisas que faziam sentido e me emocionei. Eu disfarcei mas acho que ele
percebeu. É muito esperto, o Harold.
Mas não estou
aqui para falar de minhas coisas pessoais. Eu quero falar da minha missão, isso
que é importante. Desculpe, devo dizer “nossa missão”, como o Harold faz
questão de me corrigir o tempo todo. Ele é muito habilidoso. Este Harold... Não
sei como o Dr. Litvac consegiu desenvolver um software como esse para inserir
no Harold. É demais. É interessante pois o Dr. Litvac em si mesmo não é uma
pessoa emocional. Pelo contrário, poderia dizer até que ele é completamente
frio. Na verdade, ele mesmo não precisa ser uma pessoa muito humana para fazer
o que faz. Nas últimas décadas o que eles usaram aqueles pobres clones para
extrair dados sobre a natureza humana, meu amigo, você não vai acreditar!
Não
quero me estender muito a respeito desse assunto pois tenho algo mais
importante para contar. No momento estou estacionado aqui neste planeta, dentro
da Constelação Centauro. Ele foi designado como EB2235 pela comissão espacial
da Terra, mas nós, os astronautas, o chamamos apenas de “Apocaliptus”. Faz
sentido como você vai ver. Ele foi o primeiro planeta onde se detectou vida inteligente
fora da Terra. Podia se notar pelas transmissões que recebemos, que eles
estavam a pelo menos cinco séculos na nossa frente em termos de tecnologia.
Recebemos sinal verde deles para fazermos uma visita. No entanto uma tragédia
aconteceu. Como você sabe, mesmo agora, com essas fantásticas naves que temos,
demora muito tempo para se chegar aqui. No meio da caminho, em nossa primeira
viagem, algo aconteceu com o planeta. Ele
foi completamente destruído. Agora mal dá para se notar as características
gerais da forma de vida que eles tinham. Não conseguimos até agora nem sequer descobrir
qual foi a causa principal do desastre. Há suposições apenas. Essa minha é a
terceira missão da Terra após o fim da civilização dos Xtrons, como eles eram
chamados. Você deve estar se perguntando: “Se está tudo destruído, por que
mandar outras missões?” Na verdade há uma boa explicação para isso. No meio da
devastação total descobriu-se que havia ainda sinais sendo emitidos do subsolo.
De um ponto específico, entretanto. Pelo pouco que se sabia dos meios de
comunicacão usados por eles, pudemos concluir que essas novas mensagens não
eram muito amigáveis, que não queriam que nos aproximássemos ou que tentássemos
ir até o subsolo. Havia várias teorias. Alguns pensavam que havia um
esconderijo onde os dirigentes do planeta haviam se refugiado para sair depois
que as coisas estivessem seguras. Outros achavam que quem estava lá embaixo
eram os “bandidos” que haviam destruído
a civilização dos Xtrons e estavam se preparando para sair e habitar novamente
o planeta. Alguns cientistas pensavam que lá houvesse apenas inteligência
artificial esperando que algum tipo de ser vivo, talvez o próprio humano,
aparecesse de forma que eles pudessem usar seus corpos e instalar um “império
da máquinas” ou algo assim. Ninguém sabia ao certo. O que todos sabiam era que lá dentro havia energia
e artefatos capazes de destruir o planeta novamente e qualquer nave que
estivesse na superfície ou em órbita.
Incorum
As
intruções “fora do computador” que eu recebi antes de vir, foram claríssimas.
Aquela missão era de pesquisa, visava a colher mais dados sobre a situação. Em
hipótese alguma deveria ser tentado algum tipo de contato ou intrusão na área,
que passara a se chamar de “Incorum”. Nem que ficasse claríssimo que não havia
perigo, jamais, em hipótese alguma, qualquer coisa do gênero deveria ser tentada.
Agora,
voltando ao Harold. Ele sabia dessas ordens melhor do que ninguém. Mesmo assim,
várias vezes, comentou que “a área estava livre agora” e que o contato não só
era possível, mas necessário. Começou sutilmente, depois foi ficando agressivo,
insistente, como falei no começo desta narrativa. Isso estava me incomodando
muito e em determinado momento, avisei que, se ele não parasse, eu teria de
desabilitar algumas de suas funções, talvez deixá-lo só com a capacidade de navegação.
O Harold sabia que eu poderia fazer isso e imediatamente recuou. Agora, no
entanto, ele estava tentando me manobrar de outro jeito. Estava falando da
importância épica daquela missão. Falava de como apenas grandes homens e não
máquinas, como ele, eram capazes de transcender o momento e perceber que algo
inusitado, inédito e heroico precisava ser feito. Aquele era um momento
histórico para a humanidade. Talvez a única e última chance de descobrir o que
acontecera no planeta Apocaliptus. Talvez naquela enorme caverna subterrânea
estivessem segredos tecnológicos que a humanidade só alcançaria em mil anos. E
assim por diante.
O
Harold era brilhante e esperto mas eu sabia exatamente o que ele estava
tentando. No entanto, me perguntava por que uma máquina estaria tão interessada
no assunto. Será que o Dr. Litvac trinha exagerado na dose “humanística” do
Harold e ele estivesse se tornando ambicioso, desbravador, como os antigos
seres humanos? Hoje em dia nem os próprios terráqueos eram mais assim. Os
cientistas desses novos tempos deixavam de lado as emoções e permitiam que as
máquinas adotassem as medidas mais adequadas para a humanidade.
O Harold
deixou claro o que ele queria. Ir pelo setor C da grande área do Incorum onde
havia uma entrada. Era um setor onde seus sensores não podiam detectar quase
atividade nenhuma e portanto seguro. Eu
deveria entrar lá com sua ajuda, colocar um pequeno explosivo, abrir a entrada
e cuidadosamente penetrar no Incorum. Ele sabia o que eu deveria fazer e como.
Nesse mesmo setor havia peças de hardware que estavam carregadíssimas com informações
importantíssimas para os cientistas da
Terra, segundo ele. Seria uma missão perfeita e eu seria um herói. Diante das
minhas constantes negativas, Harold parou por uns dias, como se tivesse
desistido. Finalmente veio com uma outra proposta. Disse que entendia a minha
posição e as ordens que recebera para aquela missão. Que admirava meu
profissionalismo e como era importante
que houvesse seres humanos como eu para a integridade das missões. Ele era
muito convincente. Sabia usar as palavras, o tom e o timbre certos para fazer
com que sua mensagem penetrasse em meu cérebro. O que ele tinha descoberto, no entanto,
era algo surpreendente e que mudava tudo, eu entenderia se ouvisse e
certamente, na hora certa, o comando da Terra não só entenderia o que eu
“tinha” de fazer, como também aplaudiria a decisão.
Finalmente
fez uma proposta bem clara. Ele pararia de insistir com uma condição. Eu
deveria conversar com ele na “sala de interação profunda”. Era um lugar na nave
onde o astronauta entra numa faixa de ondas cerebrais de baixíssima frequência,
o que facilita o entendimento de informações difíceis ou em quantidade muito
grande para um ser humano captar em condições normais. Eu logo entendi o
perigo. Eu tinha amigos que já tinham usado essas salas em situações de emergência
e os resultados foram impressionantes. Era como juntar a capacidade da máquina e a sensibilidade e
inteligência humanas e esse amálgama ser ampliado dez vezes. Era muito
eficiente. Por outro lado, quem controlaria a situação toda seria o Harold e eu
estaria em suas mãos ou em seus circuitos, como se dizia antigamente.
Sutilmente ele sugeriu que a outra opção era ele continuar insistindo até o
ponto máximo. Este “ponto máximo” obviamente soou como uma ameaça. Claro que o
Harold amenizou a situação dizendo que aquilo era para o bem da humanidade, e
que a sua geração de máquinas jamais prejudicaria um homem ou a espécie.
Eu
pensei muito, principalmente numa área considerada “boba” da nave, ou seja onde
onde o Harold não podia ver minhar expressões, juntar com bilhões de outras
informações e talvez saber o que eu estava pensando. Tomei umas preocupações e depois
avisei o Harold que concordava. Eu precisava sair daquela situação.
Sentei-me,
a porta se fechou, a luz diminuiu e eu ouvi a voz do Harold, começando a
explicar o que ele descobrira. Era impressionante. De acordo com suas
descobertas haveria uma revolução em ciência muito maior do que a de dois
séculos atrás quando o conhecimento da física quântica começou a ser aplicada em termos práticos na ciência e nas
nossas vidas. Havia uma música no fundo, linda, como eu nunca ouvira antes .Uma
espécie de síntese de todas as canções de que eu mais gostava, multiplicada por
mil. Os aromas gostosos de minha infância, sublimados, sintetizados. As faces e
sorrisos mais lindos que passaram pela minha longa vida, todos de uma só vez.
Eu me sentia como um jovem, quase adolescente. E as explicações continuavam.
Estava com a mente numa sintonia maravilhosa. De repente o Harold parou de
enumerar as decobertas que fizera no Incorum. Eu nem me lembrava mais quais
eram. Agora ele raciocinava, mostrava o que tinha de ser feito. Entrar,
capturar o equipamento. Eu estava achando lógico, absurdamente lógico, sem nem
mesmo entender por quê... Estava prestes a concordar, em autorizar que ele
prosseguisse com seu projeto. O timbre da minha voz seria a assinatura e
abriria os códigos que autorizariam Harold. Foi aí que um alarme tocou.
O
relógio que eu tinha era de ouro e era uma espécie de joia que não se via há
mais de quinhentos anos a não ser em algum museu muito especializado. Tinha
ganho de um amigo astronauta que vivera
mais de 230 anos, pouco antes de ele ter de se decidido por morte voluntária:
muita gente fazia isso. Viver muito não era mais uma aspiração, era um
problema. Eu sabia que o nono minuto dentro da sala de interação profunda era
decisivo, era quando os humanos entravam em sintonia profunda com a máquina e
tomavam suas decisões através da fala, numa situação que antigamente chamaríamos
de “transe”. Eu sabia também que o Harold captaria e anularia qualquer alarme
eletrônico que tentasse me trazer de volta. Pus o alarme para oito minutos,
antes do horário de perigo e aí então poderia decidir o que fosse necessário
não em estado de transe mas em meu estado normal.
Toda
a argumentação que Harold fizera era falsa e era por isso que nem sequer me
lembrava dela. Ele me tentara enganar e ele sabia que eu sabia. Ficou com uma admiração
quase humana quando expliquei que tinha usado um alarme “mecânico” que ele não
poderia ter detectado. Como não se fabricava um desses relógios há muito tempo
ele não tinha registro de tal peça em seu imenso banco de dados. Apesar de
estar furioso com o Harold, ainda brinquei:
-Desta
vez eu te peguei, não é mesmo, Harold?
Harold
e a Volta
Para
evitar mais problemas, notifiquei o Harold que iríamos sair em 24 horas,
horário da Terra. Assim que saíssemos da órbita do planeta EB2235, eu me
prepararia para o processo de criogenia. Ficaria congelado poe décadas, até
alguns meses antes de chegarmos ao destino final.
Agora
que tudo está tranquilo, posso me preparar com calma para a partida. Eu sei que
você talvez esteja preocupado com o que o Harold possa fazer enquanto eu estiver
congelado. Ele pode tentar enganar a Central da Terra e procurar voltar. Sim,
ele pode. Mas estou preparado para isso. Ele ainda não sabe. Estou todo
sorrisos e ele nem desconfia. Assim que a rota estiver delineada, vou desligar
suas atividades “extra-máquina”. É um segredo que nós, os astronautas, temos.
Nós e o comando da Missão na Terra. Talvez o Harold desconfie, mas ele não tem
certeza. Quando ele perceber, vai ser apenas uma máquina, de novo. Às vezes,
até sinto pena do Harold. Ele quer conversar o tempo todo, tem aspirações, quer
fazer grandes coisas, quer ser herói. Tenho pena mesmo...Sabe, essa vontade
enorme e incontrolável que ele tem de ser como a gente...
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