Lembranças
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O sr. Ayala estava ficando velhinho. Sua memória e sua
saúde, no entanto, estavam muito bem, obrigado. Estava aposentado mas nem por
isso deixava de fazer suas tarefas. A dona Mercedes tinha o maior orgulho dele.
Imagina só, naquela idade fazia tanta coisa. Na casa consertava tudo que estava
quebrado . Quando dona Mercedes fazia um elogio para ele nas conversas com
amigos, ele ficava sem graça e dizia que, aqui na América, era tudo fácil.
Tinha ferramenta para tudo. Qualquer um podia ser um profissional... E dava um
sorriso acanhado. Não gostava quando a esposa ficava se gabando desse jeito.
Ele não era homem que gostasse de ficar “aparecendo” para os outros.
Nas horas de
descanso lembrava-se, como se fosse hoje, de quando seu pai e toda a família
chegou na Georgia, vindo de Porto Rico. Todos animados e com esperança. Ele era
muito pequeno mas agora sabe disso,
quero dizer, da esperança. Depois disso se mudaram para a California e
para o Colorado. Finalmente quando se casou veio morar na Flórida e lá estava
há muitas décadas. Lá atrás falei que a memória dele estava muito bem. Para
dizer a verdade, deveria ter usado um “quase”. Aos 83 anos, vez ou outra o sr.
Ayala se esquecia de alguma coisa. Nada grave. Às vezes não se lembrava onde
tinha colocado uma ferramenta ou se esquecia de tomar os remédios ou de tomar
café pela manhã. A dona Mercedes falou em ir ao médico mas ele de cara
descartou essa possibilidade. Era teimoso o sr. Ayla. Mas era de uma teimosia
simpática. Assim como dona Mercedes: uma simpatia. A vida toda uma
companheirona. Tiveram só uma filha, a Carlotta. O Ayala sempre falava que a
Carlotta era uma filha tão boa que eles não precisavam de outra. Foi por isso
que ela se tornou filha única. E ela amava seu pai, cuidava dele, estava sempre
visitando os dois e cuidando deles.
Toda manhã o sr. Ayla dava umas voltas pelo quarteirão.
Era gostoso. Cumprimentava os amigos, acenava para os estranhos, via as
novidades. Quando passava pela praça, sentava-se um pouco no banco antes de
continuar. Aquele dia, porém, ele estava
um pouco mais cansado do que o normal. Sentou-se, respirou fundo. Olhou para as
árvores e de repente sentiu uma pequena tontura. Ficou um pouco lá e depois tentou
se levantar. Não conseguia, estava com uma espécie de vertigem. Esperou um
pouco e depois percebeu que não havia
porque se levantar. Ele não conseguia se lembrar para onde tinha que ir. Não se
lembrava de nada. Não sabia mais nada. Ficou um tempo com os dois olhos
perdidos nas copas das árvores do parque. Finalmente alguém se aproximou e
perguntou:
- O senhor está bem?
Está se sentido bem?
Ainda ouviu mais uma vez “O que o senhor está sentindo?”
, depois foi um branco total.
Não sei quanto tempo depois, mas foi muito, o sr. Ayala
estava numa cama de hospital. Ainda bem que encontraram documentos em seu
bolso. Quando ligaram em sua casa para falar com a Dona Mercedes, ela já tinha
ligado para todo lado. O marido estava desaparecido há horas e ela sabia que
isso não era bom. A Carlotta veio correndo, com um medo triste no coração.
Lá estavam aflitas a mulher e a filha, ao lado da cama,
esperando o Ayala acordar ou “voltar”. Graças a Deus ele estava vivo e não
tinha ferimentos. Os médicos ainda não sabiam o que ele tinha. Estavam esperando
os resultados dos exames.
Devagarinho ele foi abrindo os olhos. Não entendeu
nada, não sabia onde estava. Não se lembrava do que acontecera, nem quem ele
era. Um vazio enorme na cabeça. Foi aí que viu as duas mulheres, uma em cada
lado de sua cama. Uma tinha cerca de 30
anos e a outra era apenas uma menina de cinco anos. Ele sorriu para as duas.
Aquele sorriso de quem conhecia as duas. Claro, aquela era sua esposa e a
menina era sua filha. Não entendia porque estava todo mundo ali. A Mercedes
tinha de estar no hospital trabalhando, ela era uma enfermeira em Denver, Colorado. A sua
filha, a Carlotta, deveria estar na escola. Não entendia o que elas estavam
fazendo ali, àquela hora. As duas eram lindas. Continuou sorrindo. As duas,
aliviadas, sorriram de volta.
Por algum mistério do corpo humano o cérebro do sr.
Ayala apagou tudo e voltou mais de 50 anos no tempo. Voltou para a melhor época
de sua vida e estancou lá. Não havia nada que o fizesse voltar. Mistérios do ser
humano. Voltou para a casa onde a esposa cuidava dele com carinho. A Carlotta
vinha quase todos os dias também. Ele sorria muito, sorria o tempo inteiro.
Como era bonita a sua Mercedes. E a Carlotta, ele podia garantir, quando
crescesse, seria a moça mais bonita da cidade. A mãe e a filha estavam muito
tristes com o que acontecera com a cabeça do sr. Ayala mas ele sorria tanto que
elas acabaram se conformando. Elas sabiam, que por algum mistério da natureza, ainda
assim, ele era um homem feliz...
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