A
hora dos lobos
Lobos
famintos e ferozes atacariam a vila no
meio da noite. Era preciso vigiar. Eles eram enormes. Do tamanho de um
boi. Não adiantava atirar, não adiantava se defender. Queriam carne, queriam
sangue de gente. Era a sina.
O Dino
repetia isso o tempo todo, mas com as palavras dele, com a voz dele, com o
jeito dele. E não era fácil de entender, não. Eram praticamente uns grunhidos.
Era tudo que ele conseguia fazer com todos os problemas que tinha. Ele,
coitado, era retardado, doente mental. Muito poucas pessoas entendiam o que ele
falava, mesmo assim, prestando muita atenção. Uma delas era o Sandro. Além de
ter pena do coitado, ele achava também que havia algo de bondade nele, alguma
coisa espirirtual, sei lá. Provavelmente era besteira, mas era o que ele
sentia.
O Dino
morava com a mãe, muito velhinha. Tinha coisas que ela não conseguia mais fazer na sua velhice, tinha coisas que ele
não podia fazer no seu atraso mental. Juntavam, então, o pouquinho que cada um
podia e tocavam a vida. Às vezes precisavam de uma ajudazinha aqui e acolá e
acabam sempre tendo uma mão amiga. Viviam da pensão que o pai, falecido, tinha
deixado.
Toda
noite, por volta das dez, o Dino saía de casa e entrava no bosque que havia
perto de sua casa. Era grande e se estendia até perder de vista. Escuro
como breu. Não se sabe como o Dino
conseguia andar por lá . Ficava umas três horas lá dentro e depois voltava.
Toda vez que o Sandro perguntava, ele dizia que ia lá acalmar os lobos, dizer
para eles não virem. Tinha de conversar, cantar baixinho para eles se
acalmarem. Era o único jeito. Não podia falhar uma só noite, pois, do
contrário, eles viriam para vila e matariam pessoas até ficarem saciados. Tudo
isso o Dino dizia, do jeito dele, com a voz dele. O Sandro era o único que
acreditava. Quase acreditava.
Era uma
missão importante, essa do Dino. Tinha gente cuja vida dependia dele. Ele não
gostava de deixar a mãe sozinha à noite, mas aquilo era uma coisa sagrada que
só ele podia fazer. Acalmar os bichos,
conversar com eles, era seu destino e só
seu.
O Dino,
durante o dia, andava para lá e para cá, com aquele jeito desajeitado que ele
tinha. Meio desengonçado, ia atravessando as ruas, sem muito olhar. Não havia
muito perigo, pois havia poucos carros e todo mundo já o conhecia na redondeza.
Viam aquela figura manquitolante, lá de longe, e já diminuíam a marcha.
Naquele
dia, porém, havia alguém de fora chegando na cidade. Quando percebeu, o Dino
estava bem na frente do carro, não teve como desviar. A velocidade não era muita,
mas pegou o coitado de jeito. Foi levado para a
Santa Casa, em estado nada bom. A
cabeça que já não era muito certa, levou uma pancada também.
Logo
chegou o Sandro, comovido com a notícia. O atropelado estava dormindo, mas
assim que percebeu a chegada do amigo, acordou e ficou agitado. Queria falar
alguma coisa. Sandro encostou os ouvidos na boca do enfermo. Mal dava para
perceber o que ele falava, mas o Sandro já tinha prática e entendeu tudo. Era
para ele ir embora da cidade por uns dias. Não tinha como evitar, os lobos iam
atacar. Não dava para ele ir conversar com eles naquela noite, para acalmar,
para cantar. Ninguém podia evitar, ele tinha de sair.
Sandro,
apesar de assustado, não conseguia acreditar naquilo que o Dino falava. Ainda
assim, como tinha uma visita pendente para um irmão na cidade vizinha, usou
esta desculpa para si mesmo e viajou.
Três
dias depois, voltou. O Dino, pobre,
tinha falecido e jazia no pequeno cemitério da vila. Na rua de sua casa, que
era bem perto da rua do Sandro, uma grande desgraça. Na noite anterior, houve
assassinatos em cinco casas. Treze pessoas, no total, haviam morrido e pouco
tinha sobrado delas. Quem – ou o que - quer que tenha atacado, ou jogou a maior
parte dos pedaços dos corpos fora, ou os tinha comido. Tinha sobrado pouca
coisa. Sangue nas paredes, sangue no chão, sangue na porta. Nas casas ninguém
restou para contar como foi que tudo aconteceu. Uma tragédia.
Ninguém
conseguiu relacionar o que o Dino
costumava falar com o que tinha acontecido. Ou porque num evento de tal
magnitude, simplesmemente ninguém se lembrou da pobre figura, ou talvez porque
nunca ninguém tinha entendido direito o que ele estava dizendo. Só o Sandro
sabia.
O Sandro
sabia também que os lobos não voltariam mais. Acho que o Dino tinha explicado para
ele uma vez que, se eles atacassem, iam atacar só uma vez.
Sandro
morou na pequena localidade pelo resto de sua vida. Sempre houve muita paz
depois disso. Muitas vezes ele ficava pensando
que aquilo era uma pena que a cidade tinha de pagar, às vezes pensava
que era coincidência e tudo tinha sido feito por um assassino maníaco que
passava casualmente por ali. Nunca a polícia descobriu o que realmente tinha
acontecido.
O fato é que aconteceu tudo do jeito que o
Dino falou. Acho que às vezes Deus fala através dos tolos e o diabo através dos
lobos. Quem quiser acreditar, que acredite. Todos são filhos de Deus e Ele
escolhe quem ele quiser para ser seu mensageiro. Pode ser também que o Dino tivesse
premonição. E, por que não? Ou ainda podia
ser que na loucura dele, ele tinha capacidade de criar monstros na vida real,
na forma de lobos ou não. Acho, porém, que isso é improvável. A única coisa certa, é que tudo aquilo
aconteceu. E tudo aconteceu do jeito que o Dino falou. Ele mesmo, o Dino,
louco, débil mental, retardado...Pelo menos para o resto de nós, ele era.
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