Happy
Ville
Estou muito feliz aqui. Não há nada para se acrescentar,
tudo é perfeito. Foi assim desde sempre e nem me lembro mais de quando esse
sempre começou. Quando acordo, de manhã, a primeira coisa que me vem à cabeça é
que a vida é maravilhosa e que o novo dia vai ser melhor ainda. Acho que é daí
que vem o nome da cidade, Happy Ville. Muito apropriado.
Sento-me à mesa na cozinha e mal posso acreditar no café da
manhã que está bem ali, em frente a mim. Do outro lado da mesa está Lykke, a
minha espetacular esposa. Além de ser de uma beleza estonteante, ela sabe tudo:
fala outras línguas, canta como uma profissional, e, meu Deus, como sabe cozinhar!
Cheguei até a pensar que seria bom de vez em quando a gente
ter algum tipo de problema. Só para variar. Fico com receio de um dia ficar aborrecido
com tanto contentamento. Percebi, no entanto, que isso é besteira. Cada novo dia
é melhor do que o que já passou.
É verdade que há um tempo atrás aconteceu algo estranho.
Ficou tudo escuro por um breve, muito breve, período de tempo. Ao mesmo tempo
eu, de certa forma, perdi a consciência. Não houve consequência nenhuma. Aconteceu
de novo no mês passado, mas o evento foi ainda mais curto que o anterior. Eu
absolutamente não me preocupo com isso. É verdade que meu amigo Steve não
concorda comigo e ele até explicou o porquê. Ele, no entanto, é exagerado e se
preocupa com tudo. Os outros amigos meus também não estão se importando muito com isso
Na semana passada chamei minha esposa, por engano, de Elsker.
Sei lá por quê... Será que já fui casado com outra mulher? Fiquei preparado
para uma briga ou pelo menos um muxoxo. Que nada, ela veio para o meu lado, me
deu um beijo e falou que eu era uma graça, quando trocava os nomes assim.
Ela me explicou que Lykke na antiga Noruega significava
Felicidade e que Elsker significava Amor. Deu um sorriso malicioso e acrescentou
“Não é bom assim?”. Eu não entendi direito o que ela quis dizer, mas fiquei
feliz com sua atitude.
Combinei com o Steve de almoçar no novo restaurante da rua
principal. Isto foi para hoje e foi muito melhor do que eu esperava. Eu não
tenho mais adjetivos para elogiar tudo o que acontece por aqui. E olha que o
Steve ainda tentou me deixar preocupado. Começou com a história do “blackout”.
Disse que aquilo foi uma tentativa de invasão. Eu não aguentei e comecei a rir.
Ele me chamou de idiota. “Não é o tipo de invasão que você está pensando!”. E
então me explicou que tudo que a gente vê, sente, ouve e vive por aqui, é completamente
irreal. É uma tecnologia, uma realidade “inventada”. A vida real é em outro
lugar. E disse que ele “volta” para a realidade - a verdadeira - regularmente. Dá para acreditar? Ele continuou dizendo que nossos corpos estão em uma gigantesca instalação, onde
nos mantêm vivos, alimentando-nos, cuidando de nossa vida. Quando perguntei para
ele por que eu também não voltava para lá como ele, fez um sinal de
aborrecimento, mas explicou. Fizemos contratos diferentes com a empresa "Afterlife”. No meu, disse ele, eles são obrigados a me trazer de volta
para o estado consciente a cada dois anos. No entanto, continuou, tenho ido para lá
com muito mais frequência do que isso. Há uma cláusula que os obriga a me
trazer de volta toda vez que o sistema está em perigo. E é isso que está acontecendo.
Há gente tão revoltada com esses privilégios que nós temos – um céu na terra, de
acordo com a propaganda da "Afterlife”- que contrataram um grupo de “hackers” para
derrubar o sistema de realidade virtual da "Afterlife". Eu sei que nunca vão
conseguir, mas isto pode se tornar uma chateação.
Diante da minha incredulidade, ele me disse que sabia que
eu jamais acreditaria. Eu estava no “sistema perpétuo”, ou seja, não tinha visitas
programadas. Isso só aconteceria se o sistema falhasse de vez, o que jamais vai
acontecer, concluiu ele.
Vou dizer, essa é a história mais estranha que eu já ouvi!
Estou preocupado? De jeito nenhum. Ao contrário, acho que isso também faz parte
da perfeição dessa nossa vida aqui. Um pouquinho de medo, de preocupação, só
para nos lembrar, através do contraste, de como somos privilegiados!
Pensando bem, no entanto, esse Steve tem cada história!
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