Um
pássaro azul
O
Jenuíno foi o primeiro. Foi ficando esquecido, esquecido, até não se lembrar de
mais nada. A gente olhava para ele e ele ficava com aquela cara de
interrogação. Não sabia do que a gente estava falando. Seu sorriso era
distante, uma vaga impressão de que sabia do que se tratava. Quando o Alberto
ficou exatamente do mesmo jeito, e ele era o melhor amigo do Jenuíno, muita
gente pensou que era uma coisa que “pegava”. Existe gente que é ignorante, não
entende como funcionam essas coisas de bactérias e vírus. Eu também não entendo
muito, mas pelo menos sei que loucura não é contagiosa, não dá para pegar. O
fato é que o doutor da cidade também descartou essa possibilidade. Disse que o
único jeito de descobrir essas coisas era fazendo exames. Coisa sofisticada, em
laboratório. Ele já estava providenciando. Essas coisas não podem ser feitas
assim, no mais ou menos. Ciência é coisa séria, não é coisa de opinião, muito
menos coisa de comadre conversando na rua.
De
repente, a coisa pegou fogo. Você pode argumentar o que quiser, mas contra
fatos não há argumentos. O doutor Euzébio não conseguiu mandar ninguém para
fazer exame na cidade grande. O motivo foi bem simples e ao mesmo tempo
assustador. Ele também “pegou” a estranha doença. Coisa de louco, sem querer
fazer jogo de palavras com coisa tão séria. Não clinicava mais, só balbuciava
umas palavras e tinha aquele mesmo olhar perdido dos outros dois. Agora estava
claro. Não só aquilo era coisa que “pegava” como também era coisa do capeta.
Imagina só, o próprio doutor. Um homem formado, que sabia das coisas, que
conhecia higiene como nenhum outro, pegar uma coisa daquelas. Já pensou quanta
cultura ali, desperdiçada?
O fato é que os moradores começaram a ficar
com medo. Tinha gente que fervia água, tinha gente que punha álcool em tudo.
Que tolice. Como é que álcool vai impedir uma coisa dessas? Ignorância é uma
coisa triste. É verdade que, às vezes, as coisas são tão complexas que até
mesmo pessoas inteligentes não conseguem entender. Veja o caso do doutor. Nem
ele sabia o que estava acontecendo. A ignorância é também uma coisa relativa.
Até o mais sabido de todos pode ser um ignorante. Ele sabe um monte de coisas, porém não sabe outras que estão muito acima dele. O fato é que para entender o
que estava acontecendo ali, tinha de ser alguém com uma sabedoria muito grande.
Não era qualquer um que podia explicar. Com certeza, não.
A
única coisa que se sabia era que aquilo era uma coisa esquisita. Primeiro, dois
amigos. Depois o doutor que estava tentando descobrir uma solução. Pode ser
coincidência, mas parecia que existia alguém por trás daquilo. Os dias foram
passando e os três apareciam de vez em quando na rua, cumprimentavam as pessoas, mas não estavam melhorando. Falavam coisas sem sentido entre eles e com a gente
também. Isso à parte, o resto era normal. Comiam, bebiam, andavam pela cidade.
Devagarinho a gente foi se acostumando com a ideia. Acho que para isso não
acontecer, o ente que estava provocando tudo isso, resolveu dar uma mostra de
poder. Em uma só semana, atacou mais cinco. Um parente do doutor, dois tios de
sua mulher, um primo do Jenuíno, outro conhecido do Alberto. Tinha lógica e não
tinha. Eram parentes ou amigos. No entanto ali na cidade, quase todo mundo acabava
sendo parente ou relacionado de alguma forma. Só podia ser doença ou uma coisa
sobrenatural. Uns três jovens, todos de certa forma ligados aos “atacados” –
como agora eram chamados – resolveram sair da cidade. Nunca se sabe, podia ser
mesmo contagioso.
A
nossa pequena comunidade era muito isolada do mundo e a gente tinha quase de
tudo que precisava por ali. Talvez tenha sido esse o motivo pelo qual ninguém
decidiu procurar ajuda, ver o que estava acontecendo. Eu tenho cá para mim
que o verdadeiro motivo era o medo. Medo de descobrir o que realmente era. Se
fosse uma doença curável, tudo bem A gente fazia o que tinha de fazer. E se
não fosse? De repente era uma coisa do mal, e a gente ia ficar numa situação
comprometedora. Com essas coisas não se brinca. Do jeito que estava, não estava
bom, mas mexer naquilo podia ficar pior. Ninguém falava as coisas claramente,
mas dava para saber o que todo mundo estava pensando. Como disse, não era nada
bom, entretanto era melhor assim do que ficar pior.
Eles
não atrapalhavam ninguém, a gente foi se acostumado de novo e cada vez mais, as
coisas foram andando. Todo mundo sabia que não ia ficar por aí. Tem coisa
que não tem uma lógica visível, mas dá para saber que é o óbvio. Mais algumas
semanas se passaram e mais algumas pessoas ficaram “atacadas”. Depois de alguns
meses eram centenas, as pessoas nem avisavam mais. A cidade era pequena, tinha
pouco mais de mil habitantes e chegou-se a um ponto onde havia mais “atacados”
do que gente normal. Tirando o caso do doutor que tinha uma função muito
complexa, os outros todos continuavam a cumprir suas funções sem muitos
problemas. Faziam as coisas mecanicamente, como autômatos. Entretanto, a gente
sabia que eles não estavam pensando, que seus cérebros não funcionavam.
Éramos
agora bem poucos, os “sadios”. E a “coisa” parou por um tempo. Achamos até que
tudo tinha acabado. Aí outra coisa esquisita começou a acontecer. Uns pássaros
grandes, do tamanho de urubus, começaram a descer na cidade. Mas não eram
pretos, não. Eram de um azul escuro, muito bonito. Também não eram agressivos.
Ficavam por ali, andando ao invés de voar. Vez ou outra eles voavam um pouco,
mas voltavam. Havia centenas. Ninguém podia dizer do que se alimentavam.
Ficavam bem à vontade, não pareciam ter medo da gente. Às vezes pousavam sobre
nossos ombros, bem amigáveis. Vá se entender. Se não fosse o problema que a
gente já tinha, ia ser uma confusão danada. Mas o que era aquilo perto do que
nós estávamos passando?
Finalmente
todos ficaram “atacados”. A gente sabia que isso ia acabar acontecendo. Eu fui
o último. Agora, aqui de cima, posso ver meu corpo, lá embaixo, andando pela
cidade, fazendo as coisas que precisam ser feitas. Assim, sem saber o que está
acontecendo. Mas sou eu mesmo que decido para onde meu corpo vai, o que vai
fazer, o que vai comer. Não estou falando de meu corpo de pássaro. Estou
falando do meu corpo de gente. Só não consigo falar, e estou me esquecendo de
quase tudo. Mas agora, pelo menos, as coisas fazem sentido. Eu sou um belo
pássaro azul, consigo controlar meu corpo. Só não dá para a gente conversar com
os outros pássaros, quero dizer, com os outros habitantes da cidade. Mas a
gente se entende. Voa um pouquinho, pousa lá na rua. A gente se vê por aí. Eu
sou um belo pássaro azul. Bonito mesmo. Como disse, as coisas agora se
encaixam. Claro, não têm explicação, a causa nós não sabemos. Mas quem sabe a
causa de alguma coisa? A gente não sabe de nada, ninguém sabe como tudo
começou. Claro, estou falando agora do mundo, do Universo. Como as coisas
apareceram? Quem sabe? Nós não sabemos nada. Pelo menos, eu sei agora, que eu
sou um pássaro azul. Bonito. Quando quero, posso voltar para o chão. Quando
quero, posso voar. Isso é mais do que suficiente. Para que eu iria querer saber
mais? Não precisa. Ser um pássaro, e ainda mais azul, é para mim, mais do que
suficiente, pelo menos por enquanto...
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