Para minha querida nora, Mirella,
mãe de minha linda neta
e que também "sabe fazer filmes"...
“Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três...”
(João e Maria: Chico Buarque)
Veja o vídeo
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Estávamos
no final dos anos 50, quase chegando aos gloriosos 60. O nosso personagem era
apenas uma criança e nem 10 anos tinha. Fazia sua lição de casa, algumas
tarefas que sua mãe lhe passava, e depois perambulava pelo bairro, nunca muito
longe de sua casa. E naquela época nem havia muito motivo para se preocupar,
pois tudo era mais seguro. Mas você sabe como são as mães: nunca o filhote pode
ir muito longe.
Havia,
porém, um lugar especial que o menino sempre visitava. Era o cinema do bairro.
Se você não viveu nessa época, eu preciso explicar como funcionavam esses
lugares. Era tudo diferente. O velho cinema tinha poltronas de madeira – pelo
menos o da nossa história, que se passa em Perus, São Paulo - e você sabe, as
“fitas” eram realmente fitas e quebravam de vez em quando. Daí todos ficavam
vaiando enquanto o pobre operador não conseguia emendar a dita cuja de volta.
Espera angustiante. Também, quem mandava quebrar bem na hora do perigo? Bem na
hora que o mocinho ia levar um tiro ou um soco? Talvez fosse isso mesmo, para
dar tempo de avisar nosso herói. Naquele tempo não tinha essa história de
torcer para o bandido, como certas pessoas que conheço, fazem hoje em dia. Não.
Todos, sem exceção, torciam para o mocinho. E não é que o danado sempre levava
a melhor! Uma vez houve um herói, num dos seriados, que estava preso numa
esteira e essa se movia em direção a uma serra circular. Sua cabeça pendia para
fora, bem na direção dos dentes cortantes da lâmina. Claro, o vilão havia feito
isso. Bem quando chegou a hora de seu pescoço encostar na serra, o filme parou.
Não, não tinha quebrado a fita. Tinha terminado a sequência e era preciso
esperar uma semana inteira para saber como ele iria se livrar do perigo. Naquela
época não havia seriados de TV, eles aconteciam no cinema do bairro. O menino
não se lembra mais qual era o herói, talvez fosse o Flash Gordon. Não importa,
o garoto, agora homem crescido, se lembra muito bem que ele se safou. Vamos
voltar agora à fita quebrada.
O
desastre era sempre antecedido por uma espécie de buraco que se formava na
grande tela branca. Como se ela estivesse queimando ou algo assim. O som parava
e ouvia-se um ruído característico da película se debatendo nos carretéis do
grande projetor. O operador, então, se apressava em cortar as duas pontas para
tirar as irregularidades e emendá-las novamente. Um suspiro coletivo de alívio
da plateia e lá estávamos de novo em ação. Uma coisa banal, corriqueira, que acontecia
várias vezes nas matinês.
Para
o menino de nossa história, no entanto, isso era o motivo de algo muito importante
que aconteceu na sua meninice e que influenciou toda sua vida. Os pedacinhos do
filme que eram cortados, iam para um latão ao lado do prédio. E foi aí que o
menino de nossa história descobriu esses “quadrinhos” de filmes. Dá para
acreditar que jogavam fora essas preciosidades?
Nosso
personagem morava numa casa bem simples, mas cheia de salas, lá em cima, no
morro. Numa delas havia uma cristaleira. Dentro dela, taças, doceiras, copos
antigos, transparentes, desenhados, coloridos: azul, verde, vermelho. A janela
tinha duas folhas de madeira, que ao se fecharem, deixavam, talvez por causa de
um pequeno defeito de ajuste, uma fresta minúscula. E, por essa, passava um
raio de luz. Não um raio de luz qualquer. Ele durava não muito tempo e
acontecia numa hora certa, numa hora divina em que o sistema solar se ajustava
de tal maneira, geometricamente, num ângulo certo para permitir o fenômeno. Daí
então, o menino, sozinho, tinha a sala de projeção mais bonita do planeta. A
grande sessão começava com as diversas peças de vidro se movendo, através das
mãos infantis, ao longo do raio de luz. Essa, graciosa e, ao mesmo tempo,
poderosa, deslumbrante, se multiplicava em formas e cores mil e se espalhava e
se espelhava nas paredes brancas da sala. Era um milagre. A luz reverberava,
implodia, explodia, resplandecia. Então vinha a segunda parte. Os pequenos
pedaços de filmes, que, com cuidado haviam sido recolhidos anteriormente, eram
colocados sob a luz. E então o menino via as cenas dos filmes antigos,
coloridos ou não. Um rosto, um carro, uma rua, um acontecimento. Inicialmente
não se mexiam pois eram apenas um quadro. Mas, de repente, como numa mágica, a
imaginação do garoto dava movimento e força para os quadrinhos. As cenas se
desenrolavam, os automóveis andavam, os mocinhos e as mocinhas sorriam e
cantavam e corriam. E se o bandido viesse para atrapalhar, num dos pedacinhos
de fita, coitado dele. Era sumariamente destruído.
O
raio de luz finalmente começava a desvanecer. Era o momento do “grand finale”.
Os personagens iam se retirando... Voltavam cuidadosamente para a caixa de
papelão. Os cristais, solenes, então retornavam para finalizar o evento com um
espetáculo de luz. O menino – diretor de cinema – comandava com maestria o show.
As luzes se distorciam em curvas, retas, círculos e nuances, juntavam-se
novamente e explodiam, mais uma vez, em novos formatos... Até que a composição
cósmica dos planetas se desfazia e a luz se esvaía... As peças de vidro
voltavam em formação para seus postos na cristaleira da mãe... A escuridão
voltava e o menino também, para sua vida normal.
Mas
o colorido vibrante, multifacetado e os enredos e histórias daquela “sessão de
cinema” continuam até hoje dissipando as nuvens e sombras da mente de adulto
daquele que um dia foi um menino... o menino que fazia filmes...
ooooooOOO0OOOooooo
Essa vida da gente
Para adquirir este livro no Brasil
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Eita moleque danado esse de Perús!
ReplyDeletePenso que continuamos a pagar o preço de ser uma geração, toda ela enganada por propaganda, falsos heróis, a semiótica explica.
Os "mocinhos" da época eram na maior parte deles, os bandidos de hoje travestidos.
mereceram os índios o "Gal." Custer?
Continuam a nos ludibriar hoje e mais do que nunca, agora é a primavera árabe
Por Internet e todo o mundo que aí esta, u puder e sua ressonancia, a grande Midia insiste em nos manter idiotizados, manipulados, frutos de uma cultura materialista e competitiva, egoísta.
Concordo totalmente! Obrigado por prestigiar minhas crônicas. Flávioi
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