Uma cidade chamada “Céu Estrelado”
Estavam
todos dormindo na pequena vila quando se ouviu um som surdo, grave. Demorou uns
dois ou três minutos. Ninguém sabia o que era, mas todo mundo acordou e ouviu.
Entretanto ninguém se preocupou em levantar e verificar o ocorrido. Quase todas
as pessoas tiveram a mesma ideia: se é algum problema, alguém vai lá ajudar.
Sempre alguém ajuda. Só de manhã que todos ficaram sabendo da coisa ruim. O
“seu” Valério foi o primeiro, depois a “dona” Saméria. Os outros, praticamente
todo mundo, vieram logo a seguir, quando esses dois primeiros saíram correndo
para dar a notícia.
Um
grande, profundo e assustador buraco, havia aparecido bem no meio da praça.
Engoliu, sem cerimônia, o coreto, os bancos ao redor, a estátua do fundador da
cidade, as árvores, tudo. Só parou na frente da igreja. Foi assim que pela
frente não dava para entrar. O padre conseguiu fazê-lo pelos fundos, numa porta
que era um acesso para a sacristia.
Diante
de tão grande tragédia, o sacerdote esperava que os fiéis viessem para a missa,
de tal forma que pudessem iniciar a negociação com Deus para resolver aquela
profundidade de problema. A fé não era tanta assim e todo mundo ficou com medo
do resto desmoronar e levar a igreja junto, com eles lá dentro. Nem as beatas
mais fervorosas arriscaram. É nessa hora que a gente vê a fé verdadeira. Mas
quem sou eu para criticar? Não sei o que eu mesmo faria numa situação dessas.
Começaram
as especulações. Coisa da geografia, movimentação de terra, lençóis de água e
tudo mais... Muitas teorias, além daquelas que não são tão científicas, como
uma maldição antiga, coisa do demo. O Vigário, com certeza, sabia que aquilo
estava relacionado com a degradação dos costumes, o adultério que se alastrava
como erva daninha pela cidade. Mas não era coisa de Deus, não. Aquilo era coisa
do maligno, explicou. Todo mundo podia perceber que o danado parou bem em
frente do edifício sagrado. Ali o chefe das trevas não tinha chance, precisou
parar. Alguém tinha dúvida? Estava escrito com todas as letras, era só ler a
mensagem. O “seu” Isidoro não entendeu direito pois não conseguia ver nada
escrito em lugar nenhum. A única coisa
que ele via era aquela cratera enorme. Quando explicaram para ele que aquilo
era uma metáfora, daí ele se perdeu de vez. Existe gente que é mesmo exibida,
como você vai querer que alguém que não entendeu algo tão simples, vá saber o
que significa “metáfora”? É explicar uma coisa difícil com outra mais difícil
ainda.
O
prefeito, ao contrário do que se esperava, não quis enumerar as prováveis causas. Disse que teria de haver um estudo.
Mas o que o preocupava mesmo era que aquilo era uma chateação. Aquela coisa
grotesca bem no meio da paisagem urbana. Se fosse na periferia, numa vila qualquer,
tudo bem. Talvez fosse até bom. Podia dar emprego, movimentava a administração.
Ele poderia dar uma de eficiente, de pai de todos, aquele que ajuda quem
precisa. Mas ali, no coração de tudo, a um bloco da sede da prefeitura, aquilo
era uma indignação. E o pior que o maldito era profundo e de tal forma
construído – melhor dizer, “desconstruído” – que não se via onde terminava.
Parecia mesmo uma coisa de outro mundo, em todos os sentidos que esta expressão
tem. Alguém sugeriu jogar todo o lixo da cidade ali, até encher o danado. Mas
depois, e com razão, alguém argumentou que não ficaria bem ter um lixão bem ali
na praça, e ainda mais, na frente da igreja. Encher aquilo tudo com terra e
pedras, ia dar um trabalho monstruoso, além de custar um dinheirão. Coisa que a
cidade não tinha e que certamente o governo estadual não iria dar, tal era a
crise econômica em toda a nação.
Assim
foi que a solução do problema, se é que ela existia, foi adiada por tempo
indeterminado. O prefeito tinha esperança de que, pelo menos, alguns turistas
aparecessem e trouxessem alguma ajuda econômica para o seu governo. Que nada,
ninguém estava interessado em buracos.
Claro,
a mando da prefeitura, foi colocada uma cerca ao redor, para evitar um mal
maior, se é que é possível um mal ser maior ainda. Mesmo sem poder mais ver
claramente o fundo do buraco – assustador – ninguém conseguia deixar de pensar
nele. Os habitantes não só pensavam, sonhavam também com o dito cujo. Cada um
com seu sonho, um mais esquisito do que o outro. Depois de algum tempo, alguns
sonhos começaram a se repetir, e as pessoas começaram a sonhar sonhos parecidos
e até iguais. Aquilo parecia uma comoção coletiva. Um dos mais comuns – e até
dá para entender – era de que máquinas e caminhões trabalhavam intensamente para
encher a cratera. Alguns já sonhavam com a coisa pronta. Uma praça novinha em
folha, com uma bandinha tocando no coreto.
Sonhar
é bom.
Eles
foram ficando cada vez mais intensos e cada vez mais parecidos. Deve haver
alguma explicação. Tenho certeza de que os psicólogos e os psiquiatras sabem
exatamente o porquê disso tudo.
Finalmente,
numa noite de sábado, houve um grande sonho. Todos, sem exceção, sonharam
exatamente a mesma coisa. Foi um sonho coletivo, de fato. E era assim: no
domingo de manhã, escutaram uma linda marchinha sendo tocada por uma banda,
impecável, vestida de branco e usando dragonas cor de ouro. A música era
irresistível. Todos se levantaram, puseram a melhor roupa que tinham e se
dirigiram para a praça. O padre insistia que todos deveriam primeiro ir à missa
– nunca mais ninguém tinha ido à missa – e depois assistir a banda. Mas, como
foi explicado, a música era irresistível e mesmo o pároco acabou indo para lá,
na esperança de todos depois irem para a cerimônia eclesiástica, assim que a apresentação
musical terminasse. E era uma coisa linda. As notas penetravam nos ouvidos, na
alma. As pessoas quase se sentiam culpadas de se sentirem tão felizes. Neste
sonho, o buraco não estava mais lá. Uma praça elegante, cheia de árvores e
bancos. Os músicos, sublimes, como se fossem anjos, tocavam, tocavam...
Mas
veja você, o que de fato aconteceu. Por isso que alguns dizem que sonhar é
perigoso. Daquele, ninguém nunca mais acordou. O que aconteceu, na verdade, é
que, sonâmbulos, levantaram-se de suas camas e, enganados por aquela música
fatal, que não era real, dirigiram –se para o grande buraco, pensando que era a
nova praça. Foram todos, sem exceção, caindo, caindo. Acho que a sensação de
êxtase veio de quando eles estavam pairando no ar, antes de chegar ao fundo.
Digo isto porque sempre há uma relação entre o que a gente sonha e o mundo
exterior, verdadeiro, aquele que nos cerca. Aquela sensação divina que eles
sentiam, com aquela banda tocando como se fossem anjos... Não sei, talvez eles
estivessem indo para o céu e tivessem confundido a banda com os anjos. Mas aí
já estamos entrando numa área complicada, de filosofia, de metafísica.
O
fato é que todo mundo morreu com a queda, pois a altura era realmente muito
grande. Uma coisa que não dá nem para pensar, a cidade toda, sonâmbula, se
jogando naquele abismo, pensando numa onírica e festiva banda. Não sobrou
ninguém para contar o que aconteceu para as autoridades estaduais e federais
quando eles chegaram para examinar a tragédia. Nenhum corpo foi recuperado,
devido à profundidade.
Não
sei o que aconteceu depois. Parece que o buraco foi se enchendo de água com o
tempo, até virar um lago. Ninguém vai lá porque é perigoso e profundo. Está
cercado e é tudo proibido.
O
nome da cidade era “Céu Estrelado”. Pena
que não tenha sobrado ninguém, pois iria perguntar a origem desse nome. Como é que
escolheram essas palavras, etc. Isso é interessante, gosto de saber. A origem
dos nomes é simbólica, pode trazer luz para os fatos. Às vezes é só um nome,
nada mais. Mas, como dizem, não sobrou ninguém para contar a história, assim
não se sabe o porquê de “Céu Estrelado”.
oooooOOOooooo
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