A receita do jornal
A dona Joana tinha um emprego bom. Era o começo da década dos 70 e ela era empregada doméstica na residência da família Mendes de Almeida. Gente fina, gente boa, além de educada e rica. Tradição de São Paulo. À tarde, quando o senhor Antônio chegava de seu escritório, deixava o jornal na mesinha ao lado da porta de entrada. Geralmente, depois dali, ia para o lixo, pois ele já tinha lido. Ele avisava para a empregada quando já tinha acabado de ler.
Ela, embora com dificuldade, sabia ler um pouco. Mas as notícias eram estranhas, ela não entendia nada de política, nem de economia e nem das outras coisas. Daí ela percebeu que havia, ultimamente, muitas receitas no “Jornal da Tarde”. De bolos e doces. E isso ela adorava. Gostava de preparar todo tipo de comida para os filhos e os netos. Foi então que ela se interessou mais pelo vespertino. Ali estava algo de que ela entendia e bastante. E por isso mesmo, foi que notou algo estranho. Na maioria das vezes, eles não terminavam de explicar como fazer o delicioso bolo de fubá com coco, por exemplo.
Não passou desapercebido pelo “seu” Antônio o interesse dela pela leitura. E, um dia, perguntou se ela gostava de ler. Claro que sim. Mas falou também que aquele pessoal do jornal não conseguia escrever direito. Quase nunca terminavam as instruções para se finalizar o doce ou o bolo. O “seu” Antônio sabia muito bem que aquilo era só para repor material censurado pela ditadura. Que era feito às pressas, ninguém estava interessado na receita. Desconfiou então que, atrás daquela pessoas simples, existia alguém com preocupação política, com coisa para dizer. Talvez até tivesse um filho “subversivo” que tivesse explicado para ela a história do golpe militar. Talvez estivesse usando de ironia para saber o que o patrão pensava daquilo tudo.
Foi por pouco tempo, porém. Estava claro que não era o caso. Ela era apenas uma boa cozinheira que gostava de aprender mais e mais. Em tempo, refeito de seu pensamento, falou para ela que, talvez, ela pudesse ajudar lá no jornal. Seria uma boa jornalista culinária. Gostava de brincar com pessoas simples. A dona Joana ficou muito satisfeita com o comentário do patrão. Ele era um homem bom, sim senhor. Sabia que estava só brincando com ela, mas deu um sorriso grande com aqueles dentes bem brancos contrastando com a boca morena.
E o “seu” Antônio, depois, ficou pensando. Até que aquela ditadura tinha umas coisas gozadas. A dita cuja tinha sua parte cômica. É pena que muita gente estivesse sendo torturada e assassinada. Ainda bem que havia as receitas para substituir aquelas notícias ruins. Coitada da Joana... Já pensou ela lendo aquelas barbáries?
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