O
profeta que perdeu as estribeiras
Ele era um homem de cerca
de quarenta anos, barba rala, escura, razoavelmente bem vestido. Chegou na aldeia
dirigindo um fusca velho, branco, com uns amassadinhos no capô e na porta. O
banco de trás estava lotado com bugigangas que, aparentemente, eram seus
pertences pessoais. Parou na venda do seu Antônio, não comprou nada, mas
perguntou, educadamente, onde começava o parque estadual, terra do governo. O
“seu” Antônio falou para o homem o que ele queria saber. Na hora que o
forasteiro estava saindo, o dono da venda arriscou:
-Qual é mesmo sua graça?
O homem olhou para ele com
certo espanto pelo atrevimento – talvez fosse impressão do Antônio – e disse
que ele era o “enviado”. Quando os outros fofoqueiros vieram perguntar para ele
quem era o sujeito, disse com uma certa zombaria: “o enviado”. Todo mundo ria e
dizia que o Antônio estava precisando de um aparelho de ouvido igual ao do
Euclides.
No dia seguinte, correu a
notícia. O recém-chegado tinha montado uma barraca, logo ali no local onde
deveria ser construída a entrada do parque que o governo prometera. Ousado
aquele sujeito, invadindo assim coisa que pertencia ao Estado. Ficava sentado
em frente à sua barraca praticamente o tempo todo. Escrevia e tomava notas em
um caderno, consultava ora um livro, ora outro.
Os boatos começaram a se
espalhar. Comentários de todos os tipos. Alguns diziam que ele estava começando
a ocupação de terras, que um verdadeiro bando viria após ele. Daí seu epíteto
de “enviado”. Outros achavam que era alguém importante que havia perdido tudo e
que estava ali para se esconder, se isolar. Talvez um fugitivo perigoso, se
escondendo da polícia. Simplesmente um louco?
Com o tempo, algumas
pessoas começaram a se aproximar dele e conversar. Aí, então, as coisas
começaram a ficar mais claras. Aparentemente ele era um tipo de religioso. Dava
conselhos e conselhos bons. Falava de perdão, de amor, de conciliação.
Ressaltava também a honestidade, o bom caráter. Quando lhe perguntaram, uma
vez, se ele era de alguma religião ou se ia fundar uma, negou com veemência.
Explicou que aqueles conselhos eram o óbvio, era tudo uma questão de bom senso.
Ainda assim, os boatos de que ele era um líder religioso e que estava ali para
fundar uma seita ou uma igreja, ficavam cada vez mais fortes.
Depois de algum tempo, a
quantidade de frequentadores da barraca do “enviado” passou a ser uma coisa
notória. Vinha gente de outras cidades, algumas até de longe. E ele passou a
ser chamado de “profeta” por quase todos. Como consequência natural dessa
peregrinação, as pessoas começaram a pedir-lhe que curasse enfermidades. Ele se
negava a qualquer coisa desse tipo. Falava que, talvez isso fosse possível, mas
não através dele, mas sim através da própria pessoa. E havia gente que dizia
ter sido curada, que havia seguido a orientação do profeta. E ele, mesmo
repetindo a todo momento que não curava, criou a fama de milagreiro. Nas
conversas do bar, o “seu” Antônio sempre repetia que o profeta era uma pessoa
boa e honesta, mas não queria montar uma religião. Mas, quando o povão acredita
em alguma coisa, nem o diabo segura. E fazia o sinal da cruz.
Numa sexta-feira à tarde,
encostou um caminhão cheio de caixas, que rapidamente começaram a ser
descarregadas pelo motorista e seu ajudante. Atendendo às orientações do
profeta, elas iam sendo colocadas dentro e atrás da barraca. Havia muita gente
lá, naquele dia. Todo mundo ficou surpreso quando o motorista entregou-lhe uma
caixa menor, diferente. Ele abriu-a, tirou de dentro um notebook, abriu-o e o
ligou a uma tomada no chão. O fio vinha de longe, de uma casa distante que lhe
emprestava energia elétrica. Todo mundo estava embasbacado. Um profeta com
computador? Os mais curiosos lhe perguntaram se todas aquelas outras caixas
também eram computadores. Ele respondeu que não. Que eram livros. E começou a
digitar com velocidade em sua máquina. Todo mundo emudeceu diante daquela cena
esdrúxula. Aquilo era um paradoxo metafísico. Quando o sol se pôs, entretanto,
o profeta encerrou o espetáculo e pediu que todos fossem para casa.
Naquela noite, muita gente
resolveu ficar por ali, na cidade. Tinha sido um dia especial. Quem morava lá,
resolveu ficar acordado. Havia uma espécie de premonição no ar. Algo especial
estava para acontecer? Faltavam alguns minutos para a meia-noite quando veio a
resposta. Uma enorme bola, brilhante, que cegava a vista, apareceu do lado do
parque. Estava óbvio que ela estava bem em cima da barraca do profeta. Algumas
pessoas gritavam, outras faziam preces, outras riam tresloucadas. Após algum tempo, ninguém sabe quanto, tudo
parou. O povo inteiro desmaiou e todo mundo só acordou de manhã, com o nascer
do sol.
Em minutos, todos estavam
se dirigindo para a barraca sagrada. Era assim que todos a estavam chamando,
agora. O “enviado” estava esperando por eles. Fez sinal para se acalmarem.
Falou então que tinha novidades. Tinha recebido uma espécie de “código de
conduta” de alguém, lá de cima. Explicou que não tinha nada de especial, era
simplesmente o óbvio, o bom senso. Ser honesto, respeitar os outros, respeitar
a comunidade, ajudar a quem precisasse, enfim, aquilo que todo mundo já sabia.
Mas era importante, ele disse, pois o que é mais esquecido hoje em dia, é
justamente o óbvio. Sem mais palavras, ordenou que todos ficassem em fila. Aconteceu,
então algo surpreendente. Quando a pessoa chegava frente a frente com o
“profeta”, ele perguntava se a mesma tinha computador ou não. Para quem tinha,
ele dava um CD, para quem não tinha, ele dava um folheto. Estava explicado o que
havia dentro do caminhão, que havia chegado no dia anterior.
As pessoas começaram a ler
o que estava escrito nas páginas daquele livrinho. Quem tinha computador,
colocou o disco para ser lido. Realmente, nada de especial. Era aquilo que se
esperava de um bom cristão ou de alguém de qualquer religião que se preze.
Ainda assim, as pessoas estavam maravilhadas com o evento e todo mundo prometia
aos outros e a si mesmos, cumprir tudo tim-tim por tim-tim.
Com o tempo, muitas
pessoas voltavam para a barraca sagrada. Queriam tirar dúvidas. O profeta
respondia com perguntas ou mandava a pessoa olhar na página tal. Estava claro o
que ele queria dizer. Não havia necessidade de profeta. Todos os ensinamentos,
além de evidentes em si mesmos, estavam muito bem explicados nos discos ou nos
folhetos. Mas o povão precisava era do contato com alguém de autoridade,
precisava de reforço. Além disso, acontecia muito - e o profeta não gostava
nada disso – as pessoas queriam milagres, eventos especiais. Ele estava cansado
de explicar que, se milagre houvesse, deveria partir da própria pessoa. Ele não
sabia fazer milagres e achava que ninguém sabia. Muita gente queria deixar
contribuições. Ele, rapidamente, recusava todas.
O tempo foi passando e, ao
invés de as pessoas se acostumarem com essa nova moda de ser profeta, elas
insistiam na moda antiga. Queriam explicações divinas, queriam milagres,
queriam dar contribuições. Talvez quisessem “comprar” alguma graça, conforme
sugeriu o profeta. E ele sempre repetia que não queria vender nada.
Mas quem segura o povo? O
fanatismo foi aumentando, aumentando. O grande líder, então, resolveu dar um
basta. Convocou todos para uma grande reunião dali a dois domingos. De manhã,
às onze, que era para todo mundo ter tempo de chegar.
No dia acertado, havia lá
gente a perder de vista. Todo mundo estava esperando algum grande comunicado,
embora o bom senso dissesse o contrário: ele queria parar com aquele fanatismo.
Isto estava bastante claro através de todos seus atos e palavras anteriores.
Dessa vez, ele usou um
alto-falante. Falou de novo o que sempre falava, Que ele não era santo, nem
profeta, nem fazia milagres. Ele apenas usava sua vida para mostrar aos outros
que se deve viver com dignidade, com respeito. O povo, entretanto, parecia,
estar ouvindo outra pessoa. Eles deliravam, aplaudiam, choravam, clamavam. O
profeta já estava ficando irritado, mas se conteve. Afinal, ele tinha de ser
paciente com a ignorância, segundo seus próprios ensinamentos. Avisou que
aquilo não podia continuar. Que ele iria partir e, quem tivesse boa fé e bom
senso, iria seguir as regras de um bom cidadão. Viver em harmonia. Foi então
que, uma mulher na primeira fileira começou a gritar:
-Não nos abandone, mestre!
Sem ti, não somos nada. Não nos deixe em perdição. Depois passou a falar
palavras sem sentido e quase todos passaram a segui-la. Ajoelhavam-se e
imploravam para o profeta não partir.
Ele foi ficando cada vez
mais vermelho e irritado. Sua voz estava abafada pela multidão. Aconteceu,
então, o que de mais improvável poderia acontecer. Ele pegou o notebook e
bateu-com violência na cabeça da fiel. Tinha, finalmente, perdido o controle. A
mulher desmaiou e podia se ver o sangue correr de sua testa. O profeta, então
chutou, literalmente, o pau da barraca e começou a andar para um pequeno
bosque, na direção oposta à multidão. Foi indo, indo, e sumiu no meio da mata.
Nunca mais voltou, nunca mais se ouviu falar do profeta.
No dia seguinte, a mulher
que tinha sido agredida, estava boa. Nem marca do golpe havia. E ela parecia
iluminada. Olhava com aqueles olhos estatelados para o nada ou, talvez, para o
infinito. A notícia se espalhou. O profeta tinha sido arrebatado para os céus,
mas não antes de fazer um milagre. E as pessoas começaram a visitar a vítima e
esta se sentia escolhida. Talvez alguém fizesse uma religião a partir disso.
E foram inúmeras as
versões do incidente. Alguns diziam que o computador saltou da mão do profeta
no momento em que ele foi arrebatado. Há outras versões tão esquisitas, que nem
ouso contar. Na verdade, agora estou até duvidando da grande bola de luz que
pairou sobre a barraca, talvez tinha sido imaginação. Um helicóptero do governo
para monitorar a situação? Quanto ao notebook sagrado, ninguém mais o viu. Uma
versão é que alguém o tenho guardado como relíquia. A outra, menos encorajadora,
é que alguém o tenha surripiado mesmo.
Foi assim que o profeta do
notebook perdeu as estribeiras.
oooooOOOooooo
Estranhas Histórias
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