Um
pedaço do céu, um ateu e a Dona Zulmira
Quem colocaria numa
cidade o nome de “Pedaço do Céu”? Pois bem, entre tantos nomes estranhos, pelo
menos esse era auspicioso. Diria, até, apropriado. Por ser pequena, muito pequena, talvez
devesse ser “pedacinho”, mas aí entrou um pouquinho de vaidade e o diminutivo
ficou de lado. Não sei se por causa do destino,
ou de fatores sociológicos, ou até mesmo antroplógicos, o fato é que o nome
tinha tudo a ver. Não havia em toda a cidade, uma só pessoa que não frequentasse
a igreja. Além do Centro Espírita, que certamente deve ser contado, havia pelo
menos mais quatro igrejas com sede e tudo mais. O Centro ainda não tinha um
templo, tudo era feito na casa do “seu” Joseval. O homem tinha mesmo aquele
olhar distante e calmo, de quem sabe o que há no porvir. De quem conhece o outro
lado da existência.
Embora não houvesse grandes contendas
metafísicas, vez ou outra, uma contenda filosófica ou teológica, aumentava um
pouco a tensão. Fora isso, era um harmonia só. Até o horário oficial dos
cultos, da missa e da sessão espírita, era sincronizado. Ninguém, acho, queria
ser pego de surpresa por um concorrente
de fé.
Foi por isso que,
quando o professor Carlos chegou, a população ficou meio desconfiada. Aquele
homem calmo, cheio de paz, e certamente
muita sabedoria, seria uma aquisição e tanto para qualquer rebanho. Para
frustração de todos, logo ficou-se sabendo – o que não se sabe em um lugar tão
pequeno? – que o professor não tinha religião nenhuma. Era ateu. O vigário – não se sabe por quê – achou melhor
chamá-lo de agnóstico. Não deu muitas explicações para o palavreado estranho.
Espero que eu não seja excomungado por isso dizer, mas acho que ele estava com
segundas intenções. Aquela palavra parecia mais pesada e certamente os seus
fieis ficariam com mais medo.
O fato é que o homem
era muito inteligente e culto. Certamente
ninguém queria entrar em um debate com ele, embora sua simplicidade e modéstia fossem
óbvias. Passado algum tempo, as pessoas
foram se acostumando com o fato de que um “agnóstico” não é um bicho-papão.
Quase todos. A Dona Zulmira e suas comadres, que ficaram muito impressionadas
com a inusitada alcunha, resolveram continuar sua campanha. Aquela era um pessoa
perigosa, ainda mais ensinando nossas crianças. O que se pode esperar de alguém
que não acredita em Deus? Pior mesmo foi quando ela começou a falar que o
demônio tem muitos truques. Às vezes veste uma máscara de bondade, de
fraternidade, de paz e até de sabedoria. E aí é que estava o perigo. A maior
parte das pessoas não levava isso a sério, mas, lá no fundo, muitos, inclusive
seus alunos, passaram a olhar para o rosto do professor de um jeito diferente.
Começaram a ver, escondido atrás daquela face sadia e honesta, o rosto do tinhoso.
É uma coisa do inconsciente. Claro, ninguém tinha certeza. Alguns, porém, até
tinham medo. Essas coisas são assim, pessoas
fanáticas podem destruir o mundo.
O professor Carlos,
com muito jeito e paciência, foi levando sua vida. Era até bom não ter muita
interação com algumas pessoas. Podia ter seu “retiro”, podia observar a
natureza, ele gostava muito disso. Dava passeios longos, às vezes a pé, às
vezes de bicicleta. O lugar para o qual ele mais gostava de ir, era,
ironicamente, o “Monte do Santo”. Uma pequena elevação, de onde se podia ver a
pequena cidade, o “pedaço de céu” , se espelhando pela paisagem. Ao redor, três
estradas que ligavam aquela pequena população com o resto do mundo. O pôr de
sol e o amanhecer eram, desculpem o jogo de palavras, divinos, visto dali.
Era um domingo ao
anoitecer. O professor tinha acabado de subir o pequeno monte, que, aliás, era
praticamente na beira da cidade. Admirava o final do dia. O sol ainda podia ser
visto lá do outro lado, mas sombras já se espalhavam pelas casas, pelos
pequenos prédios. A cidade não era muito iluminada e, por isso, cinco lugares
se destacavam por ter um pouco mais de luz. Havia a luz da igreja católica, a
luz de uma igreja protestante tradicional, a luz de duas igrejas avivadas e,
finalmente, a luz do Centro Espírita. Se Carlos resolvesse se converter, não
seria pela força da luz que vinha das congregações. Ali, do alto do morro,
todas pareciam fracas e iguais. Era, no entanto, uma paisagem bonita. Ele
estava satisfeito. De repente, porém, viu uma luz nova, diferente, que, depois
de começar pequena, começou a aumentar. Se ele tivesse um só poquinho de fé,
poderia ver aí um milagre, um sinal divino. Mais uma nova religião, dessa vez,
a certa. Mas aquele seu pensamento científico não deixava margem para
imaginação. Em poucos minutos tirou uma conclusão lógica. Um incêndio estava
começando. Ele sabia que ninguém viria socorrer, ajudar. Estavam todos bem no
meio das orações, dos pedidos. Sabia que estava sozinho na empreitada. Pegou a
bicicleta, desceu como um raio pela ladeira, aproveitou o impulso e “voou” pela
rua deserta. Era uma casa de esquina, e, pasmem vocês, era a casa da Dona
Zulmira. O mestre sabia que ele não conseguiria combater o incêndio, pois não
havia mangueiras, nem água suficiente, nem nada. Raciocinou, porém, que, embora
fosse improvável, poderia haver alguém lá dentro. Deu um pontapé na porta e
entrou correndo, gritando. Foi aí que ouviu o choro de um garoto. Era o Mindinho, neto da Dona Zulmira, de oito anos.
Não tinha se sentido bem, a avó o havia deixado em casa, na cama. Carlos pegou
o menino nos braços e correu para fora. Foi até o vizinho, abriu a torneira do
jardim e umedeceu o corpo do garoto, Ele estava com algumas pequenas
queimaduras, mas estava salvo. Ficou com o garoto no colo, olhando para o fogo
que punha um vermelho sinistro nas faces dos dois. Dali a pouco escutou carros
buzinando. Vários. Começaram a estacionar. Várias pessoas correram em direção à
casa. Mas daí todos paravam, duas paredes já tinham caído e o telhado pendia
quase até chão na direção delas. Era uma
fogueira só. Foi aí que ele ouviu os gritos desesperados da Dona
Zulmira. Ela havia acabado de chegar e estava enlouquecida, gritando com todos
os pulmões:
Meu netinho, meu
netinho! Alguém socorre meu Mindinho!
Alguém veio junto a
ela e segurou-a pelo braço. Era óbvio, nada podia ser feito.
Enquanto isso, o
professor ateu foi andando apressadamente, no meio das pessoas, em direção a
ela. Bateu em seu ombro, dizendo:
-Dona Zulmira, seu neto está aqui. Ele está
bem, só tem umas queimadurinhas.
O alívio que aquela
mulher sentiu não está em lugar nenhum da Bíblia e em nenhum outro livro
qualquer. Com o neto em seus braços, olhou então para o rosto vermelho – pelo reflexo
do fogo – do professor. Em circunstâncias normais, seria um sinistro rosto do
diabo, ardendo com o fogo do inferno. Mas o que ela viu, foi outra coisa. Um anjo,
bonito, cheio de luz, uma luz branca que alumiava toda a cidade. Foi o único
anjo de verdade que ela viu em toda a sua vida. E daí ela entendeu por que o
professor não tinha religião. Ele não precisava, ele tinha vindo direto do céu.
Tinha vindo para salvar o seu netinho.
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