Autor: Flávio Cruz
A Estátua sem Cabeça
Rafael
era funcionário público de Serena. A
cidade era muito, muito pequena, e obviamente todos se conheciam. Não havia o que fazer por lá e por isso
fofocar era o esporte preferido. Havia até reuniões especiais com tal objetivo.
Obviamente ninguém admitia qual era a
real meta dos encontros e nem precisava, pois era óbvio. A desculpa podia ser
qualquer coisa: caridade, discussão sobre o rendimento escolar, poluição, limpeza,
enfim
não importava. Cinco minutos depois de iniciado o evento, começava um
falatório sobre todo mundo que não
estava na reunião e também sobre quem estava, desde que estivesse na outra
ponta da sala e não pudesse ouvir. Era uma verdadeira sem-vergonhice, uma falta
de respeito. Rafael nunca gostara dessa atitude
e jamais participava. Quando alguém tentava falar algo, ele saía rapidinho.
Havia até gente que não gostava dele por causa disso. Onde se viu, que
arrogância não participar!
Realmente
Rafael era diferente dos demais. Era inteligente, educado, culto e entendia um
pouco de tudo: literatura, línguas, história, pintura, escultura. Seu trabalho
na prefeitura era, no entanto,um trabalho normal de escritório.Por outro lado
era vantagem para ele ter um emprego estável e foi por isso que se casou com
sua linda noiva, que morava em uma cidade vizinha. A mulherada – não pense que
os homens não fofocavam - sentia uma pequena esperança de que ela se juntasse
às demais no esforço de bisbilhotar a vida do próximo. Engano. Ela seguiu os
passos do marido. Só Deus sabe o que não estariam falando agora do casal. Ainda
bem que eles não se interessavam em saber. Assim não se perturbavam.
Rafael
e sua esposa Linda não participavam mas também não provocavam. As coisas iam
andando relativamente bem até que um dia o prefeito anunciou que a cidade iria
se voltar para suas raízes e, como primeiro passo, mandariam fazer uma estátua
do fundador e a colocariam no centro da praça principal. Começaram a consultar
preços de escultores. Era um absurdo. Imaginem que um deles pediu o equivalente
a 40% de todo o orçamento da cidade para confeccionar o monumento. Daí
começaram a consultar empresas que faziam essas estátuas de jardim. Ainda assim
era muito caro. Foi aí então que um dos assessores do prefeito sugeriu falarem
com o Rafael. Afinal, ele era metido nesses assuntos e havia um boato que ele
andara confeccionando umas estatuetas em sua casa. Para surpresa de todos,
Rafael aceitou a empreitada com muita alegria. O prefeito disse que ele poderia
se ausentar do seu serviço normal para começar a trabalhar no projeto. Rafel
agradeceu e disse que seria melhor trabalhar nos finais de semana. Afinal de
contas não haveria uma crise municipal se a obra demorasse um pouco mais e não
ficaria bem faltar ao trabalho. Ofereceram a ele o valor que tinha sido antes
aprovado pelo Departamento de Finanças e que era um valor apreciável se
considerarmos a receita da cidade. Rafael sabia que aquilo geraria falatório e disse
então que ficaria satisfeito em ganhar por hora o mesmo que ganhava em suas horas
normais de dias de semana na repartição.
Examinou
as antigas fotos do fazendeiro que tinha
sido o iniciador daquela comunidade, fez desenhos, projetos e começou a trabalhar
diretamente no local. Resolveu fazer a estátua de concreto, pois sabia que não era um grande artista em pedra. Era um
pequeno show todo final de semana. As pessoas ficavam ao redor olhando o moço
trabalhar. Ele era meticuloso, tinha várias ferramentas e fazia tudo com muito
capricho, cuidado e método. À noite, quando ia para casa, deixava tudo
limpinho.
Dá
para imaginar o que aquele povo ficava falando naquelas intermináveis horas dos
sábados e domingos. Especulavam sobre o valor da obra, que favores especiais
ele teria, etc., etc...Quando o assunto acalmava sempre vinha alguém com mais
lenha. Não dava para calcular quanto ele ia ganhar, falou alguém da prefeitura.
Claro, porque ele não sabia quantas horas iria durar. Mas a conclusão do povo
era outra. O preço da obra era “incalculável”. A cidade iria à falência. E a
esposa que nunca estava lá? Onde andava? Daí veio uma história ainda mais
absurda. Disseram que a esposa do pobre Rafael estava “saindo” com o prefeito
para agradecer a “fortuna” que ele iria receber pela obra de arte. A imaginação
perniciosa do povo não tinha limites.
A
estátua, indiferente a tudo, ia crescendo e ficando mais bonita e imponente. A
paciência do Rafael, no entanto, estava terminando. Ouvia gracinhas o tempo
todo, insinuações maldosas. Até bilhetes com a histórias mais escabrosas e
mentirosas jogavam perto da estátua. Recebia cartas anônimas com coisas
absurdas sobre ele e a esposa. O fato de ambos ficarem calados mais a excitação
de tudo que estava acontecendo deixou um povo doentio mais doentio ainda.
Rafael pensou em parar várias vezes. Sua consciência do dever e sua
personalidade porém o impediam de
desistir. Mesmo quando o prefeito anunciou que ele estava trabalhando por um
salário muito baixo – o mesmo que ganhava na prefeitura – os comentários não
cessaram. Pelo contrário, até tomaram rumos piores.
Faltava
só a cabeça da estátua. Rafael resolveu fazê-la no quintal de sua casa, pois
teria mais tranquilidade e, além disso, iria usar uns moldes especiais.
Obviamente isso gerou inúmeras outras fofocas.
Finalmente
a cabeça ficou pronta. Havia um espigão de ferro que saía do pescoço da
estátua. Era simplesmente enfiar a cabeça lá e pronto. Na segunda-feira Rafael
não veio trabalhar na prefeitura. Nem na terça e nem na quarta. O prefeito
ficou muito preocupado e foi até sua casa que era um pouco retirada do centro,
num lugar isolado. Entrou pelo jardim e já foi percebendo algo estranho.
Parecia tudo vazio. Havia um bilhete na porta. Dizia que a cabeça estava lá
dentro. Realmente lá estava sobre a mesa da sala. Um envelope amarelo
dizia:”instruções”. O que surpreendeu, no entanto, que havia mais do que simples
instruções. Rafael deixava bem claro que o povo de Serena havia passado do
limite. Que ele jamais voltaria para aquele “buraco”. Que agora eles teriam de
fazer uma opção. Se a estátua ficasse sem a cabeça, nada aconteceria. Ou seja,
a diária visão daquele solene pescoço nu apontando insolitamente para o céu
azul seria a lembranca perpétua para o povo de Serena de como as pessoas lá eram
mesquinhas, diminutas e pobres de espírito, ou até mesmo “sem cabeça”. A outra
opção seria colocar a cabeça no lugar. Nesse caso, ele, Rafael, se sentia no
direito de divulgar tudo que sabia sobre todos da cidade. Durante muito tempo
colecionara informações a respeito de todos. Sua posição na repartição mais
tudo que ouvira ali por meses e anos
davam-lhe substanciosa carga de informação. As pessoas nunca se preocuparam em
tomar cuidado quando ele estava por perto, pois sabiam que ele não passaria
adiante. Segundo o próprio Rafael, a única diferença era que o que ele tinha
eram fatos, pessoas e casos reais, com prova e tudo e não simples fuxicos de
comadres. Enviaria uma carta para todos, contando tudo de todos.Coisas
horríveis. Era uma coisa que o prefeito
e o povo tinham de decidir: com cabeça
ou sem cabeça.
Foi
assim que a cidade de Serena ficou, para vergonha geral, com uma estátua sem cabeça para sempre no
meio da praça. Até hoje lá está ela grandiosa, magnífica e ...decapitada!
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