Friday, August 17, 2012

A Estátua sem Cabeça

Autor: Flávio Cruz







A Estátua sem Cabeça












Rafael era funcionário público de Serena.  A cidade era muito, muito pequena, e obviamente todos se conheciam.  Não havia o que fazer por lá e por isso fofocar era o esporte preferido. Havia até reuniões especiais com tal objetivo. Obviamente ninguém admitia  qual era a real meta dos encontros e nem precisava, pois era óbvio. A desculpa podia ser qualquer coisa: caridade, discussão sobre o rendimento escolar, poluição, limpeza,  enfim  não importava. Cinco minutos depois de iniciado o evento, começava um falatório sobre  todo mundo que não estava na reunião e também sobre quem estava, desde que estivesse na outra ponta da sala e não pudesse ouvir. Era uma verdadeira sem-vergonhice, uma falta de respeito.  Rafael nunca gostara dessa atitude e jamais participava. Quando alguém tentava falar algo, ele saía rapidinho. Havia até gente que não gostava dele por causa disso. Onde se viu, que arrogância não participar!
Realmente Rafael era diferente dos demais. Era inteligente, educado, culto e entendia um pouco de tudo: literatura, línguas, história, pintura, escultura. Seu trabalho na prefeitura era, no entanto,um trabalho normal de escritório.Por outro lado era vantagem para ele ter um emprego estável e foi por isso que se casou com sua linda noiva, que morava em uma cidade vizinha. A mulherada – não pense que os homens não fofocavam - sentia uma pequena esperança de que ela se juntasse às demais no esforço de bisbilhotar a vida do próximo. Engano. Ela seguiu os passos do marido. Só Deus sabe o que não estariam falando agora do casal. Ainda bem que eles não se interessavam em saber. Assim não se perturbavam.
Rafael e sua esposa Linda não participavam mas também não provocavam. As coisas iam andando relativamente bem até que um dia o prefeito anunciou que a cidade iria se voltar para suas raízes e, como primeiro passo, mandariam fazer uma estátua do fundador e a colocariam no centro da praça principal. Começaram a consultar preços de escultores. Era um absurdo. Imaginem que um deles pediu o equivalente a 40% de todo o orçamento da cidade para confeccionar o monumento. Daí começaram a consultar empresas que faziam essas estátuas de jardim. Ainda assim era muito caro. Foi aí então que um dos assessores do prefeito sugeriu falarem com o Rafael. Afinal, ele era metido nesses assuntos e havia um boato que ele andara confeccionando umas estatuetas em sua casa. Para surpresa de todos, Rafael aceitou a empreitada com muita alegria. O prefeito disse que ele poderia se ausentar do seu serviço normal para começar a trabalhar no projeto. Rafel agradeceu e disse que seria melhor trabalhar nos finais de semana. Afinal de contas não haveria uma crise municipal se a obra demorasse um pouco mais e não ficaria bem faltar ao trabalho. Ofereceram a ele o valor que tinha sido antes aprovado pelo Departamento de Finanças e que era um valor apreciável se considerarmos a receita da cidade. Rafael sabia que aquilo geraria falatório e disse então que ficaria satisfeito em ganhar por hora o mesmo que ganhava em suas horas normais de dias de semana na repartição.
Examinou as antigas fotos  do fazendeiro que tinha sido o iniciador daquela comunidade, fez desenhos, projetos e começou a trabalhar diretamente no local. Resolveu fazer a estátua de concreto, pois sabia que  não era um grande artista em pedra. Era um pequeno show todo final de semana. As pessoas ficavam ao redor olhando o moço trabalhar. Ele era meticuloso, tinha várias ferramentas e fazia tudo com muito capricho, cuidado e método. À noite, quando ia para casa, deixava tudo limpinho.
Dá para imaginar o que aquele povo ficava falando naquelas intermináveis horas dos sábados e domingos. Especulavam sobre o valor da obra, que favores especiais ele teria, etc., etc...Quando o assunto acalmava sempre vinha alguém com mais lenha. Não dava para calcular quanto ele ia ganhar, falou alguém da prefeitura. Claro, porque ele não sabia quantas horas iria durar. Mas a conclusão do povo era outra. O preço da obra era “incalculável”. A cidade iria à falência. E a esposa que nunca estava lá? Onde andava? Daí veio uma história ainda mais absurda. Disseram que a esposa do pobre Rafael estava “saindo” com o prefeito para agradecer a “fortuna” que ele iria receber pela obra de arte. A imaginação perniciosa do povo não tinha limites.
A estátua, indiferente a tudo, ia crescendo e ficando mais bonita e imponente. A paciência do Rafael, no entanto, estava terminando. Ouvia gracinhas o tempo todo, insinuações maldosas. Até bilhetes com a histórias mais escabrosas e mentirosas jogavam perto da estátua. Recebia cartas anônimas com coisas absurdas sobre ele e a esposa. O fato de ambos ficarem calados mais a excitação de tudo que estava acontecendo deixou um povo doentio mais doentio ainda. Rafael pensou em parar várias vezes. Sua consciência do dever e sua personalidade porém  o impediam de desistir. Mesmo quando o prefeito anunciou que ele estava trabalhando por um salário muito baixo – o mesmo que ganhava na prefeitura – os comentários não cessaram. Pelo contrário, até tomaram rumos piores.
Faltava só a cabeça da estátua. Rafael resolveu fazê-la no quintal de sua casa, pois teria mais tranquilidade e, além disso, iria usar uns moldes especiais. Obviamente isso gerou inúmeras outras fofocas.
Finalmente a cabeça ficou pronta. Havia um espigão de ferro que saía do pescoço da estátua. Era simplesmente enfiar a cabeça lá e pronto. Na segunda-feira Rafael não veio trabalhar na prefeitura. Nem na terça e nem na quarta. O prefeito ficou muito preocupado e foi até sua casa que era um pouco retirada do centro, num lugar isolado. Entrou pelo jardim e já foi percebendo algo estranho. Parecia tudo vazio. Havia um bilhete na porta. Dizia que a cabeça estava lá dentro. Realmente lá estava sobre a mesa da sala. Um envelope amarelo dizia:”instruções”. O que surpreendeu, no entanto, que havia mais do que simples instruções. Rafael deixava bem claro que o povo de Serena havia passado do limite. Que ele jamais voltaria para aquele “buraco”. Que agora eles teriam de fazer uma opção. Se a estátua ficasse sem a cabeça, nada aconteceria. Ou seja, a diária visão daquele solene pescoço nu apontando insolitamente para o céu azul seria a lembranca perpétua para o povo de Serena de como as pessoas lá eram mesquinhas, diminutas e pobres de espírito, ou até mesmo “sem cabeça”. A outra opção seria colocar a cabeça no lugar. Nesse caso, ele, Rafael, se sentia no direito de divulgar tudo que sabia sobre todos da cidade. Durante muito tempo colecionara informações a respeito de todos. Sua posição na repartição mais tudo que ouvira ali  por meses e anos davam-lhe substanciosa carga de informação. As pessoas nunca se preocuparam em tomar cuidado quando ele estava por perto, pois sabiam que ele não passaria adiante. Segundo o próprio Rafael, a única diferença era que o que ele tinha eram fatos, pessoas e casos reais, com prova e tudo e não simples fuxicos de comadres. Enviaria uma carta para todos, contando tudo de todos.Coisas horríveis.  Era uma coisa que o prefeito e  o povo tinham de decidir: com cabeça ou sem cabeça.
Foi assim que a cidade de Serena ficou, para vergonha geral,  com uma estátua sem cabeça para sempre no meio da praça. Até hoje lá está ela grandiosa, magnífica e ...decapitada!

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