O
Sullivan apareceu em casa
Cheguei um pouco mais cedo em casa,
estacionei e me dirigi para a porta.
Para minha absoluta surpresa havia um jovem sentado na soleira. Já fui
ficando zangado e me preparando para
falar umas boas. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele deu um sorriso,
estendeu a mão e falou:
-Eu sou o Sullivan, mas claro que você já
me conhece...Você, eu sei muito bem quem é!
Fui pego de surpresa. Não tinha a menor
ideia de quem era Sullivan.
-Sullivan?
-Claro, seu personagem, não se lembra?
-Personagem?
-Claro, você não escreve histórias?
-Sim, mas não me lembro de ter escrito
nenhuma história com um personagem Sullivan...
-Este é exatamente o problema, vim aqui
para reclamar.
Achei que era melhor ir para dentro. Essa
conversa parecia coisa de louco. Não queria nem pensar na ideia de aparecer
algum conhecido e começar a ouvir aquela conversa absurda. Como o “Sullivan”
não parecia oferecer perigo, convidei-o para entrar.
Sentamo-nos no sofá e reiniciamos o
diálogo. Pensei que talvez ele fosse um vendedor, que aquilo fosse uma e+
stratégia inovadora de marketing e sei lá...vamos ver.
stratégia inovadora de marketing e sei lá...vamos ver.
-Sério que você não se lembra? Acho
impossível. Você ficou mais de duas horas deitado na rede me “bolando”...O
problema é que depois que você me completou, não escreveu história nenhuma,
deixou-me vagando por aí como se fosse uma alma penada.
Finalmente eu me lembrei. Era verdade o que
ele estava falando. Tinha decidido primeiro criar o personagem e depois criar a
história, ao contrário do que fizera outras vezes. Depois acabei me esquecendo.
Senti um calafrio, aquilo era impossível! Será que comentei com alguém as
minhas ideias e esse alguém estava aprontando uma brincadeira comigo? Não,
impossível, eu nunca comento esse tipo de coisa com ninguém.
-Eu sei que você se lembra. Assim como você
sabe muita coisa sobre seus personagens, nós também sabemos sobre os escritores
que nos criam. De qualquer forma, vim aqui para reclamar. Não se pode fazer
isso. Fazer a personagem inteirinha, com roupas, aparência, pensamento e tudo
mais e depois não nos dar uma história, um enredo. Eu me senti completamente
desprezado e não tive outra alternativa senão vir até sua casa.
A história toda estava ficando tão surreal
que não sabia o que fazer. Para ganhar tempo e tentar entender o que estava
acontecendo, resolvi navegar na história completamente.
-E então?
Olhou com um olhar quase de súplica.
Retruquei então meio ansioso:
- O que exatamente você quer de mim?
-Eu quero minha história. Uma história
bonita, com emoção. Por favor, não me coloque nesses contos doidos de ficção
científica. Veja bem, nós já não somos personagens de cinema ou de novela que todos
consideram verdadeiros. No nosso caso, os leitores têm que usar a imaginação. Se
você nos manda viajar em espaçonaves e, pior ainda, nos manda para mundos
paralelos ou através de máquinas do tempo...sabe, ficamos mais irreais ainda.
Além disso, não quero me transformar em subpartículas quânticas num desses
relatos estranhos que você escreve. Quero uma história aqui na Terra, com vida
e emoção. Pelo amor de Deus, nem pense em me dar essas personalidades doentias,
gente esquisita que às vezes você inventa. Além disso, o pessoal está reclamando
que tem muita personagem morrendo. Sabe, acidentes de carro? Você já me deixou
por aí sem rumo, só falta me matar logo de cara num desses relatos.
Estava perplexo. Sullivan parecia tão real,
tão convincente, nem de longe parecia um ser fictício. Estava para responder,
quando ele continuou:
-Por falar nisso, a Ana Lúcia estava para vir
comigo para reclamar, mas daí você a colocou numa história e tudo bem, não
houve necessidade.
Ela até que ficou contente com a história,
achou bonita. A única coisa que ela não gostou...
-Ana Lúcia?, interrompi.
-Sim, a Ana Lúcia. “A menina que andava nas
nuvens”, não lembra? Você acabou de escrever.
Fiquei estupefato. Mesmo assim, perguntei:
-Você estava falando que ela não gostou de
alguma coisa...
-Ah, sim. Ela disse que no conto inteiro
ela falou uma só palavra:”Pronto”. Ela achou meio estranho. Mas do enredo ela
gostou sim, achou comovente.
-Ainda bem, que eu escrevi aquela história
com muito carinho.
Ia continuar falando sobre aquele conto,
quando a campainha tocou. Tremi de medo só de pensar que poderia ser outro
personagem. Já pensou se a mania pega e todos eles começam a aparecer aqui em
casa? E aqueles que morreram, então. Nossa, era só essa que faltava. Abri a
porta e não havia ninguém. Olhei para os lados e nada. Talvez algum garoto
brincando, sei lá. Voltei-me para continuar a conversa mas o Sullivan não
estava mais lá. Olhei nos quartos, no resto da sala.
Eu não sei se foi tudo minha imaginação,
mas o Sullivan parecia tão real, muito mais real que algumas pessoas de verdade
que conheço. Só para garantir, vou tentar inventar uma história para ele. Não custa nada e não acho uma boa ele ficar aparecendo aqui em casa para reclamar...
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