Monday, August 6, 2012

O Sullivan apareceu em casa


O Sullivan apareceu em casa

Cheguei um pouco mais cedo em casa, estacionei e  me dirigi para a porta. Para minha absoluta surpresa havia um jovem sentado na soleira. Já fui  ficando zangado e me preparando para falar umas boas. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, ele deu um sorriso, estendeu a mão e falou:
-Eu sou o Sullivan, mas claro que você já me conhece...Você, eu sei muito bem quem é!
Fui pego de surpresa. Não tinha a menor ideia de quem era Sullivan.
-Sullivan?
-Claro, seu personagem, não se lembra?
-Personagem?
-Claro, você não escreve histórias?
-Sim, mas não me lembro de ter escrito nenhuma história com um personagem Sullivan...
-Este é exatamente o problema, vim aqui para reclamar.
Achei que era melhor ir para dentro. Essa conversa parecia coisa de louco. Não queria nem pensar na ideia de aparecer algum conhecido e começar a ouvir aquela conversa absurda. Como o “Sullivan” não parecia oferecer perigo, convidei-o para entrar.
Sentamo-nos no sofá e reiniciamos o diálogo. Pensei que talvez ele fosse um vendedor, que aquilo fosse uma e+
stratégia inovadora de marketing e sei lá...vamos ver.
-Sério que você não se lembra? Acho impossível. Você ficou mais de duas horas deitado na rede me “bolando”...O problema é que depois que você me completou, não escreveu história nenhuma, deixou-me vagando por aí como se fosse uma alma penada.
Finalmente eu me lembrei. Era verdade o que ele estava falando. Tinha decidido primeiro criar o personagem e depois criar a história, ao contrário do que fizera outras vezes. Depois acabei me esquecendo. Senti um calafrio, aquilo era impossível! Será que comentei com alguém as minhas ideias e esse alguém estava aprontando uma brincadeira comigo? Não, impossível, eu nunca comento esse tipo de coisa com ninguém.
-Eu sei que você se lembra. Assim como você sabe muita coisa sobre seus personagens, nós também sabemos sobre os escritores que nos criam. De qualquer forma, vim aqui para reclamar. Não se pode fazer isso. Fazer a personagem inteirinha, com roupas, aparência, pensamento e tudo mais e depois não nos dar uma história, um enredo. Eu me senti completamente desprezado e não tive outra alternativa senão vir até sua casa.
A história toda estava ficando tão surreal que não sabia o que fazer. Para ganhar tempo e tentar entender o que estava acontecendo, resolvi navegar na história completamente.
-E então?
Olhou com um olhar quase de súplica. Retruquei então meio ansioso:
- O que exatamente você quer de mim?
-Eu quero minha história. Uma história bonita, com emoção. Por favor, não me coloque nesses contos doidos de ficção científica. Veja bem, nós já não somos personagens de cinema ou de novela que todos consideram verdadeiros. No nosso caso, os leitores têm que usar a imaginação. Se você nos manda viajar em espaçonaves e, pior ainda, nos manda para mundos paralelos ou através de máquinas do tempo...sabe, ficamos mais irreais ainda. Além disso, não quero me transformar em subpartículas quânticas num desses relatos estranhos que você escreve. Quero uma história aqui na Terra, com vida e emoção. Pelo amor de Deus, nem pense em me dar essas personalidades doentias, gente esquisita que às vezes você inventa. Além disso, o pessoal está reclamando que tem muita personagem morrendo. Sabe, acidentes de carro? Você já me deixou por aí sem rumo, só falta me matar logo de cara num desses relatos.
Estava perplexo. Sullivan parecia tão real, tão convincente, nem de longe parecia um ser fictício. Estava para responder, quando ele continuou:
-Por falar nisso, a Ana Lúcia estava para vir comigo para reclamar, mas daí você a colocou numa história e tudo bem, não houve necessidade.
Ela até que ficou contente com a história, achou bonita. A única coisa que ela não gostou...
-Ana Lúcia?, interrompi.
-Sim, a Ana Lúcia. “A menina que andava nas nuvens”, não lembra? Você acabou de escrever.
Fiquei estupefato. Mesmo assim, perguntei:
-Você estava falando que ela não gostou de alguma coisa...
-Ah, sim. Ela disse que no conto inteiro ela falou uma só palavra:”Pronto”. Ela achou meio estranho. Mas do enredo ela gostou sim, achou comovente.
-Ainda bem, que eu escrevi aquela história com muito carinho.
Ia continuar falando sobre aquele conto, quando a campainha tocou. Tremi de medo só de pensar que poderia ser outro personagem. Já pensou se a mania pega e todos eles começam a aparecer aqui em casa? E aqueles que morreram, então. Nossa, era só essa que faltava. Abri a porta e não havia ninguém. Olhei para os lados e nada. Talvez algum garoto brincando, sei lá. Voltei-me para continuar a conversa mas o Sullivan não estava mais lá. Olhei nos quartos, no resto da sala.
Eu não sei se foi tudo minha imaginação, mas o Sullivan parecia tão real, muito mais real que algumas pessoas de verdade que conheço. Só para garantir, vou tentar inventar uma história para ele. Não custa nada e não acho uma boa ele ficar aparecendo aqui em casa para reclamar...

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