Thursday, August 23, 2012

Por onde andará Fred?


Por onde andará Fred?

“Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
(Chico Buarque- “Pedaço de Mim”)





Você nunca imagina que certas coisas –bizarras, trágicas – possam acontecer com você, pois elas só acontecem com os outros. Com Beth porém elas aconteceram. E ela era uma pessoa bem simples, moça do campo, com costumes e hábitos bem prosaicos e comuns.Vivia na zona rural de uma cidadezinha no interior de Iowa. O lugar era tão retirado e tão longe de tudo que, até mesmo se a pessoa quisesse, era difícil entrar em confusão. Mas sabe de uma coisa? O destino é cheio de surpresas, cheio de histórias e Beth entrou para a lista de pessoas que...Bem vamos aos fatos.
Beth e seu marido eram os pais de um garoto de 9 anos chamado Fred. Ele era um bom menino, especialmente se considerarmos  que vivia naquele fim de mundo. O único contato que ele tinha com o povo de fora – que não era tão “de fora” assim – era a escola. Para chegar até lá era uma dificuldade. Seus pais tinham de dirigir por uns quatro quilômetros só para alcançar um ponto onde o ônibus escolar passava. Ali se encontrava com outros alunos que também viviam na zona rural e então a condução chegava e levava todo mundo. Segundo os pais de Fred isto era absolutamente necessário pois, além da educação em si, ele precisava de pelo menos um pouco de contato com o mundo exterior.
No princípio as coisas iam bem, Beth e o marido trabalhando, fazendo as coisas do dia a dia. Dirigiam sua caminhonete pelas estradas da região, encontravam aqui e ali, moradores locais, andando ou guiando seus carros. Cumprimentavam a todos, mesmo sem conhecê-los pessoalmente. A casa mais próxima à deles estava a cerca de cinco quilômetros. Entre outros, havia um senhor baixo, que os cumprimentava sem levantar a cabeça. Tinha um bigode, andava sempre ligeiro e usava um chapéu que, além da cabeça, usava para encobrir também o rosto. Dele o marido de Beth não gostava. Não havia motivo. Alguma intuição talvez, ou simplesmente porque ele não levantava a cabeça, parecia esquisito.
Quando tudo parecia melhorar, um pouco de dinheiro guardado do que produziam no sítio, o Fred fazendo amigos na escola, não é que de repente o marido morre, sem mais nem menos, de um ataque do coração? Parecia mentira, Beth não conseguia acreditar. O mundo de Fred parecia estar desmoronando. Mas, como se diz, o que não tem solução, solucionado está, e a esposa e filho, inconsoláveis, juntaram os pedaços da desgraça, fizeram as adaptações necessárias e continuaram a viver. Quando se vive isolado desse jeito, é muito mais difícil. O tempo todo as lembranças continuam a aparecer. Além de tudo, agora a Beth tinha de fazer o trabalho dela e o do marido. Tinha de se consolar e consolar o menino. Foi por isso que ela não pode acreditar quando a próxima tragédia aconteceu. Morrer, sabia ela, era parte da vida e um dia acontece para todos. Mas acontecer algo para seu menino Fred era algo insuportável. Além de ele ser a única razão dela existir, era apenas um menino, tinha toda a vida pela frente .Pois bem, aconteceu o que de pior poderia acontecer. Um dia, quando ela estava na estrada para ir buscar o menino no ponto de ônibus, vindo da escola, o pneu furou. Ela já estava acostumada com esse tipo de coisa, pois era “homem” e “mulher” da casa ao mesmo tempo e não demorou para trocá-lo. Mesmo assim uns quinze minutos se passaram e seu coração de mãe ficou apreensivo. Ela sabia que o menino ia ficar sozinho por algum tempo, pois todos os seus colegas saiam rápido dali e ela não tinha intimidade com nenhum outro pai ou mãe para socorrê-los numa situação dessas. Ela sabia que Fred ia ficar sozinho algum tempo e, pela lógica, não deveria haver problemas, mas a sua cabeça estava até latejando de preocupação. Também com a vida que estava tendo ultimamente não era para menos. Procurou se acalmar e racionalizar. Tentou pensar o que o garoto estaria pensando e foi acelerando com força. Algum tempo depois fez a última curva e, na distância, tentou avistar o seu filho. Não viu ninguém. Talvez estivesse um pouco para trás, escondido no meio das árvores. Chegou perto. Definitivamente não havia ninguém. Estava desesperada mas tentou se acalmar, tentou pensar. Quem sabe ele foi embora com algum colega? Não havia lógica, mas , quem sabe, no desespero de ficar sozinho...Lembrou-se então de que ele explicara onde era a casa de um de seus amigos, um daqueles que estava sempre ali no ponto. Ligou o carro e saiu voando. Não demorou vinte minutos e lá estava ela. A explicação de Fred tinha sido boa. Conversou com a mãe do outro aluno. Ela informou que, quando ela saiu de lá, Fred era o último, não havia mais ninguém. Insistiu para levá-lo para casa, ele não aceitou. Era bastante tímido, o Fred. Depois ofereceu a ele trazê-lo para a casa dela, deixariam um bilhete espetado na árvore para a Beth. Disse que não se preocupassem, que ele sabia que a mãe chegaria logo, tinha certeza. Era questão de minutos. No mesmo segundo as duas mães pensaram que o certo era ter esperado junto até a Beth chegar. Mas nenhuma das  duas ousou falar nada. A cabeça de Beth começou a girar. Pegou com a mãe do colega os endereços de quem costumava esperar no ponto. Foi de casa em casa, demorou mais de duas  horas. Sempre a mesma história, todos foram indo embora e Fred acabou ficando sozinho. A essa altura o coração começou a pesar como chumbo.Voltou até sua casa, quem sabe, ele teria andado pelo meio da mata para cortar caminho e já estaria em casa. Sua alma se encheu de esperança só para ficar frustrada mais uma vez. Era quase noite quando chegou ao posto policial no centro da cidade. Falou com os policiais, foram feitas anotações, dariam uma olhada no mesmo dia, mas investigações oficiais só no dia seguinte.
A escuridão da noite quase sem dormir oficializou a tragédia. Quando o filho definitivamente não dormiu em casa, a desgraça estava confirmada.  Ela já sabia, no fundo do coração, que algo horrível havia acontecido. A dor era tão grande que nem conseguiu sentir culpa por não ter ido mais cedo pegá-lo ou por não ter feito tudo de um jeito diferente.  Nos próximos dias, a velha rotina nesse tipo de casos. Depoimentos, entrevistas, até um helicóptero sobrevoou a região durante dois dias para ver se descobria algo. Nada. Estranhamente, às vezes ela se pegava pensando como o Fred ficaria excitado com o movimento, com aquele helicóptero para lá e para cá.
Dor desse tipo não vai embora nunca, mas  vai cicatrizando ou fica como uma brasa debaixo das cinzas, você não vê, mas continua queimando. O marido há um tempo atrás e agora o menino. Deus, pensou ela, não estava tendo dó dela mesmo. O que mais poderia acontecer? Ela morrer? Até que seria bom!
E não é que aconteceu outra desgraça? A Beth não morreu não, mas acabou matando alguém.  Estava guiando pela estrada, bem no meio de árvores altas dos dois lados, quando, do nada, alguém apareceu em frente a sua caminhonete. Aquele barulhão, ela ainda passou por cima do corpo. O veículo sendo alto e a vítima pequena, o atropelado foi parar embaixo. Sai desesperada do carro e reconhece a vítima. Nada mais nada menos do que aquele senhor que não levantava a cabeça para cumprimentar e de quem o marido não gostava muito mesmo sem conhecer. E agora o que fazer? Colocar o defunto em cima da caçamba não era uma opção, além disso de que adiantaria? Ele já estava morto. Provavelmente isso, de qualquer forma não pudesse ser feito, pois era um evidência, ela não poderia mudar a cena do atropelamento. Deixou passar um tempo, recuperou-se parcialmente. Cobriu o pobre homem com alguns arbustos, sinalizou a estrada como pode, e dirigiu-se para a polícia. Foi pensando que desta vez Deus exagerou. Depois disso tudo ainda a transformou em uma criminosa. Daí seu pensamento começou a voltar para o ocorrido. Voltou bem clara para sua mente a imagem. O homenzinho saiu da floresta, parou um pouco na beirada, olhou para ela – como nunca havia feito antes – e deu dois passos bem em cima da hora, quando não daria mais para brecar. Foi suicídio. Estava tão claro. Não, ela não estava se enganando. Lembrou-se vividamente da imagem. Parou bem em frente do posto policial. Saiu do veículo e, ao invés de entrar lá, entrou numa mercearia do outro lado da rua. Agindo como se fosse uma máquina, um robô, comprou algumas coisas e voltou para casa, evitando passar no local do acidente. Você sabe como é a mente humana, muita desgraça junta, o cérebro arruma algum jeito de se enganar. Assim ela conseguiu passar umas semanas. Por incrível que pareça, não sentia culpa. Era como se, mesmo tendo cometido um crime, já tinha pago por ele antes, com a morte do marido e o desaparecimento do filho. Agora Deus tinha que dar um jeito, tinha aque fazer a contabilidade dele. Na dela, ela tinha certeza de que estava positiva.
Alguns meses depois ninguém mais falava do homem atropelado. Virou estatística, como dizem. A Beth lembrava-se dele frequentemente mas, para ser franco, não sentia culpa. No entanto começou a sonhar. Alguém batia à sua porta, ela ia atender e não havia ninguém. Depois começou a sonhar que, quando atendia, via só o vulto de alguém desaparecer no mato. Ela, entretanto, sabia quem era. Um dia, ela atendeu à porta – no sonho – e lá estava ele, o homenzinho de bigode. Pela primeira vez pode observar como era sua face com detalhes. Ele ficou lá parado, com cara de besta, não falou nada e foi embora. E assim fez inúmeras vezes. Até que um dia o sonho de Beth foi diferente. Ela estava dormindo – um sono leve – e percebeu que alguém tinha entrado na casa. Ela não sentiu medo. A pessoa chegou bem perto dela, no escuro , e sussurou umas palavras, umas explicações. Ela deu um pulo mas o homenzinho não estava lá, pois era apenas um sonho. Mas ela se lembrava detalhadamente de tudo o que ele dissera. Ele tinha dado explicações precisas de onde estava enterrado o corpo de seu filho.
Ela pensou, pensou e decidiu. Foi até a polícia e disse que tinha recebido um telefonema anônimo revelando o local. No dia seguinte três carros policiais, num deles a Beth, foram até o local. Era muito específico, não dava para errar. Para assombro de todos  lá estava o corpo decomposto do coitadinho. Beth desmaiou, foi levada para o hospital. Alguns dias depois fez um enterro decente para o filho e, de certa forma, a alma de Beth teve um pouco de paz após tanto tempo.
A figura do homenzinho, entretanto, não saía da cabeça da Beth e ela tinha uma suspeita terrível no coração. Com cuidado levantou toda a informação que conseguiu e obteve o endereço do homem que atropelara. Já sabia que ele vivia sozinho e que tinha uma velha caminhonete que raramente usava. Foi chegando ao local e viu que estava tudo abandonado. Os arbustos haviam crescido muito e escondiam praticamente o veículo. Logo atrás, havia uma garagem, separada da casa. Intuitivamente, dirigiu-se à mesma. Fez um pouco de esforço e conseguiu abrir a prota de madeira. No meio havia uma dessas mesas que se usa para fazer trabalhos de marcenaria. Viu algo em cima dela que a deixou petrificada. Lá estava, sem dúvida alguma, o boné que Fred usava para ir à escola. Chegou perto, pegou-o na mão e teve certeza. Havia uma mancha na aba, que ela pensou várias vezes em tirar mas não conseguira pois Fred estava sempre com ele na cabeça. Numa das pontas da mesa, uma mancha de sangue. Ela não quis ver mais nada. Ficou tudo claro para ela. O assassino num ato de remorso, se jogou na frente de seu carro. Nos seus sonhos, veio para tentar se redimir e pelo menos informar onde estava o corpo.
 Não dá para saber o que é verdade e o que é falso nesta história. Para Beth, no entanto, finalmente, veio um pouco de paz, de justiça e de redenção.

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