Por
onde andará Fred?
“Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu”
(Chico Buarque- “Pedaço de Mim”)
Você
nunca imagina que certas coisas –bizarras, trágicas – possam acontecer com você,
pois elas só acontecem com os outros. Com Beth porém elas aconteceram. E ela
era uma pessoa bem simples, moça do campo, com costumes e hábitos bem prosaicos
e comuns.Vivia na zona rural de uma cidadezinha no interior de Iowa. O lugar
era tão retirado e tão longe de tudo que, até mesmo se a pessoa quisesse, era
difícil entrar em confusão. Mas sabe de uma coisa? O destino é cheio de
surpresas, cheio de histórias e Beth entrou para a lista de pessoas que...Bem
vamos aos fatos.
Beth
e seu marido eram os pais de um garoto de 9 anos chamado Fred. Ele era um bom
menino, especialmente se considerarmos
que vivia naquele fim de mundo. O único contato que ele tinha com o povo
de fora – que não era tão “de fora” assim – era a escola. Para chegar até lá
era uma dificuldade. Seus pais tinham de dirigir por uns quatro quilômetros só
para alcançar um ponto onde o ônibus escolar passava. Ali se encontrava com
outros alunos que também viviam na zona rural e então a condução chegava e
levava todo mundo. Segundo os pais de Fred isto era absolutamente necessário
pois, além da educação em si, ele precisava de pelo menos um pouco de contato
com o mundo exterior.
No
princípio as coisas iam bem, Beth e o marido trabalhando, fazendo as coisas do
dia a dia. Dirigiam sua caminhonete pelas estradas da região, encontravam aqui
e ali, moradores locais, andando ou guiando seus carros. Cumprimentavam a
todos, mesmo sem conhecê-los pessoalmente. A casa mais próxima à deles estava a
cerca de cinco quilômetros. Entre outros, havia um senhor baixo, que os
cumprimentava sem levantar a cabeça. Tinha um bigode, andava sempre ligeiro e
usava um chapéu que, além da cabeça, usava para encobrir também o rosto. Dele o
marido de Beth não gostava. Não havia motivo. Alguma intuição talvez, ou simplesmente
porque ele não levantava a cabeça, parecia esquisito.
Quando
tudo parecia melhorar, um pouco de dinheiro guardado do que produziam no sítio,
o Fred fazendo amigos na escola, não é que de repente o marido morre, sem mais
nem menos, de um ataque do coração? Parecia mentira, Beth não conseguia
acreditar. O mundo de Fred parecia estar desmoronando. Mas, como se diz, o que
não tem solução, solucionado está, e a esposa e filho, inconsoláveis, juntaram
os pedaços da desgraça, fizeram as adaptações necessárias e continuaram a
viver. Quando se vive isolado desse jeito, é muito mais difícil. O tempo todo as
lembranças continuam a aparecer. Além de tudo, agora a Beth tinha de fazer o
trabalho dela e o do marido. Tinha de se consolar e consolar o menino. Foi por
isso que ela não pode acreditar quando a próxima tragédia aconteceu. Morrer,
sabia ela, era parte da vida e um dia acontece para todos. Mas acontecer algo
para seu menino Fred era algo insuportável. Além de ele ser a única razão dela
existir, era apenas um menino, tinha toda a vida pela frente .Pois bem,
aconteceu o que de pior poderia acontecer. Um dia, quando ela estava na estrada
para ir buscar o menino no ponto de ônibus, vindo da escola, o pneu furou. Ela
já estava acostumada com esse tipo de coisa, pois era “homem” e “mulher” da
casa ao mesmo tempo e não demorou para trocá-lo. Mesmo assim uns quinze minutos
se passaram e seu coração de mãe ficou apreensivo. Ela sabia que o menino ia
ficar sozinho por algum tempo, pois todos os seus colegas saiam rápido dali e
ela não tinha intimidade com nenhum outro pai ou mãe para socorrê-los numa
situação dessas. Ela sabia que Fred ia ficar sozinho algum tempo e, pela
lógica, não deveria haver problemas, mas a sua cabeça estava até latejando de
preocupação. Também com a vida que estava tendo ultimamente não era para menos.
Procurou se acalmar e racionalizar. Tentou pensar o que o garoto estaria
pensando e foi acelerando com força. Algum tempo depois fez a última curva e,
na distância, tentou avistar o seu filho. Não viu ninguém. Talvez estivesse um
pouco para trás, escondido no meio das árvores. Chegou perto. Definitivamente não
havia ninguém. Estava desesperada mas tentou se acalmar, tentou pensar. Quem
sabe ele foi embora com algum colega? Não havia lógica, mas , quem sabe, no
desespero de ficar sozinho...Lembrou-se então de que ele explicara onde era a
casa de um de seus amigos, um daqueles que estava sempre ali no ponto. Ligou o
carro e saiu voando. Não demorou vinte minutos e lá estava ela. A explicação de
Fred tinha sido boa. Conversou com a mãe do outro aluno. Ela informou que,
quando ela saiu de lá, Fred era o último, não havia mais ninguém. Insistiu para
levá-lo para casa, ele não aceitou. Era bastante tímido, o Fred. Depois
ofereceu a ele trazê-lo para a casa dela, deixariam um bilhete espetado na
árvore para a Beth. Disse que não se preocupassem, que ele sabia que a mãe
chegaria logo, tinha certeza. Era questão de minutos. No mesmo segundo as duas
mães pensaram que o certo era ter esperado junto até a Beth chegar. Mas nenhuma
das duas ousou falar nada. A cabeça de
Beth começou a girar. Pegou com a mãe do colega os endereços de quem costumava
esperar no ponto. Foi de casa em casa, demorou mais de duas horas. Sempre a mesma história, todos foram
indo embora e Fred acabou ficando sozinho. A essa altura o coração começou a
pesar como chumbo.Voltou até sua casa, quem sabe, ele teria andado pelo meio da
mata para cortar caminho e já estaria em casa. Sua alma se encheu de esperança
só para ficar frustrada mais uma vez. Era quase noite quando chegou ao posto
policial no centro da cidade. Falou com os policiais, foram feitas anotações,
dariam uma olhada no mesmo dia, mas investigações oficiais só no dia seguinte.
A
escuridão da noite quase sem dormir oficializou a tragédia. Quando o filho
definitivamente não dormiu em casa, a desgraça estava confirmada. Ela já sabia, no fundo do coração, que algo
horrível havia acontecido. A dor era tão grande que nem conseguiu sentir culpa
por não ter ido mais cedo pegá-lo ou por não ter feito tudo de um jeito
diferente. Nos próximos dias, a velha
rotina nesse tipo de casos. Depoimentos, entrevistas, até um helicóptero
sobrevoou a região durante dois dias para ver se descobria algo. Nada. Estranhamente,
às vezes ela se pegava pensando como o Fred ficaria excitado com o movimento,
com aquele helicóptero para lá e para cá.
Dor
desse tipo não vai embora nunca, mas vai
cicatrizando ou fica como uma brasa debaixo das cinzas, você não vê, mas
continua queimando. O marido há um tempo atrás e agora o menino. Deus, pensou
ela, não estava tendo dó dela mesmo. O que mais poderia acontecer? Ela morrer?
Até que seria bom!
E
não é que aconteceu outra desgraça? A Beth não morreu não, mas acabou matando
alguém. Estava guiando pela estrada, bem
no meio de árvores altas dos dois lados, quando, do nada, alguém apareceu em
frente a sua caminhonete. Aquele barulhão, ela ainda passou por cima do corpo.
O veículo sendo alto e a vítima pequena, o atropelado foi parar embaixo. Sai
desesperada do carro e reconhece a vítima. Nada mais nada menos do que aquele
senhor que não levantava a cabeça para cumprimentar e de quem o marido não gostava
muito mesmo sem conhecer. E agora o que fazer? Colocar o defunto em cima da
caçamba não era uma opção, além disso de que adiantaria? Ele já estava morto.
Provavelmente isso, de qualquer forma não pudesse ser feito, pois era um evidência,
ela não poderia mudar a cena do atropelamento. Deixou passar um tempo,
recuperou-se parcialmente. Cobriu o pobre homem com alguns arbustos, sinalizou
a estrada como pode, e dirigiu-se para a polícia. Foi pensando que desta vez
Deus exagerou. Depois disso tudo ainda a transformou em uma criminosa. Daí seu
pensamento começou a voltar para o ocorrido. Voltou bem clara para sua mente a
imagem. O homenzinho saiu da floresta, parou um pouco na beirada, olhou para
ela – como nunca havia feito antes – e deu dois passos bem em cima da hora,
quando não daria mais para brecar. Foi suicídio. Estava tão claro. Não, ela não
estava se enganando. Lembrou-se vividamente da imagem. Parou bem em frente do
posto policial. Saiu do veículo e, ao invés de entrar lá, entrou numa mercearia
do outro lado da rua. Agindo como se fosse uma máquina, um robô, comprou
algumas coisas e voltou para casa, evitando passar no local do acidente. Você
sabe como é a mente humana, muita desgraça junta, o cérebro arruma algum jeito
de se enganar. Assim ela conseguiu passar umas semanas. Por incrível que
pareça, não sentia culpa. Era como se, mesmo tendo cometido um crime, já tinha
pago por ele antes, com a morte do marido e o desaparecimento do filho. Agora
Deus tinha que dar um jeito, tinha aque fazer a contabilidade dele. Na dela, ela
tinha certeza de que estava positiva.
Alguns
meses depois ninguém mais falava do homem atropelado. Virou estatística, como
dizem. A Beth lembrava-se dele frequentemente mas, para ser franco, não sentia
culpa. No entanto começou a sonhar. Alguém batia à sua porta, ela ia atender e
não havia ninguém. Depois começou a sonhar que, quando atendia, via só o vulto
de alguém desaparecer no mato. Ela, entretanto, sabia quem era. Um dia, ela
atendeu à porta – no sonho – e lá estava ele, o homenzinho de bigode. Pela
primeira vez pode observar como era sua face com detalhes. Ele ficou lá parado,
com cara de besta, não falou nada e foi embora. E assim fez inúmeras vezes. Até
que um dia o sonho de Beth foi diferente. Ela estava dormindo – um sono leve –
e percebeu que alguém tinha entrado na casa. Ela não sentiu medo. A pessoa
chegou bem perto dela, no escuro , e sussurou umas palavras, umas explicações.
Ela deu um pulo mas o homenzinho não estava lá, pois era apenas um sonho. Mas
ela se lembrava detalhadamente de tudo o que ele dissera. Ele tinha dado
explicações precisas de onde estava enterrado o corpo de seu filho.
Ela
pensou, pensou e decidiu. Foi até a polícia e disse que tinha recebido um
telefonema anônimo revelando o local. No dia seguinte três carros policiais,
num deles a Beth, foram até o local. Era muito específico, não dava para errar.
Para assombro de todos lá estava o corpo
decomposto do coitadinho. Beth desmaiou, foi levada para o hospital. Alguns
dias depois fez um enterro decente para o filho e, de certa forma, a alma de
Beth teve um pouco de paz após tanto tempo.
A
figura do homenzinho, entretanto, não saía da cabeça da Beth e ela tinha uma
suspeita terrível no coração. Com cuidado levantou toda a informação que conseguiu
e obteve o endereço do homem que atropelara. Já sabia que ele vivia sozinho e
que tinha uma velha caminhonete que raramente usava. Foi chegando ao local e
viu que estava tudo abandonado. Os arbustos haviam crescido muito e escondiam
praticamente o veículo. Logo atrás, havia uma garagem, separada da casa.
Intuitivamente, dirigiu-se à mesma. Fez um pouco de esforço e conseguiu abrir a
prota de madeira. No meio havia uma dessas mesas que se usa para fazer
trabalhos de marcenaria. Viu algo em cima dela que a deixou petrificada. Lá
estava, sem dúvida alguma, o boné que Fred usava para ir à escola. Chegou perto,
pegou-o na mão e teve certeza. Havia uma mancha na aba, que ela pensou várias
vezes em tirar mas não conseguira pois Fred estava sempre com ele na cabeça.
Numa das pontas da mesa, uma mancha de sangue. Ela não quis ver mais nada.
Ficou tudo claro para ela. O assassino num ato de remorso, se jogou na frente
de seu carro. Nos seus sonhos, veio para tentar se redimir e pelo menos
informar onde estava o corpo.
Não dá para saber o que é verdade e o que é
falso nesta história. Para Beth, no entanto, finalmente, veio um pouco de paz,
de justiça e de redenção.
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