Autor: Flávio Cruz
A
Dona Maria e a Eternidade
A
Dona Maria, pouco antes de morrer, comoveu a todos. Não havia uma só pessoa que
não gostasse dela. Ela era doce e suave. Não sofreu quase nada. Teve uma doença
breve, o coração falhou e e ela se foi.
Na
verdade, embora todos amassem a Maria, ninguém a conhecia por dentro. Era uma
verdadeira selvagem. Quando moça, tinha aquelas ideias super liberais. Não
tinha tabus nem preconceitos. Era, com certeza, uma das cabeças mais liberadas
da sua época, pelo menos a sua volta. Estranhamente suas amigas e conhecidos
nada sabiam a respeito. Ela não queria chocar ou envergonhar ninguém. Sabia como
as pessoas se sentiam. Para que abalar aquelas cabecinhas todas, pensava ela,
se do jeito que estava, estava todo mundo feliz? O tempo foi passando, ela se
casou e nem seu marido nunca ficou sabendo de nada. Coitado do Armando, ela
raciocinava, teria um enfarte se conhecesse metade de suas opiniões. Ele era
feliz com ela desse jeito, para que mudar? E mais tempo se passou e vieram os
netos. Nem quando eles ficaram jovens chegaram a ser tão “avançados” como ela.
Mas ela nunca passava da quota certa para não escandalizar. Quem a conhecesse
por dentro, entretanto, saberia que ela estava à frente de todos. E lá estava
ela com aquela carinha festeira, sempre alegre, sempre disposta a tudo.
Assim
foi que quando chegou a hora de partir, todos estavam torcendo por ela.Uns
oravam, outros rezavam, cada um de acordo com sua fé. Certeza de que ela iria
para o céu, todos tinham, era unanimidade. O que ninguém sabia era o que ela
pensava a respeito da eternidade, do paraíso. Não era que ela não acreditasse
em Deus ou coisa assim. Ela não acreditava no Deus das pessoas em geral. Para
ela, Ele era mais sofisticado, mais grandioso, mais tudo. O mais próximo que
alguém tinha chegado perto da sua concepção divina eram aqueles cientistas que
ela vira um dia na televisão. Eles tinham descoberto aquelas partículas ultra,
ultra pequenas e que vibravam o tempo todo, doidamente, dentro dos átomos.
Aquilo sim podia ser uma coisa de Deus. Não gostava daquele Deus descrito por
alguns que ficava agindo como se fosse a gente, fazendo coisas banais, sentindo
sentimentos de homens e mulheres. Como sempre, não falava nada para ninguém,
não queria ser arrogante, não queria humilhar os outros. Outra ideia muito
diferente da Dona Maria era que ela não entendia por que as pessoas deduziam
automaticamente que Deus existindo, nós seríamos imortais também e viveríamos
para sempre.
E
se Deus tivesse nos criado para viver só aqui na Terra? Sabe, como uma experiência? Depois seria o
nada. Por
que não? Não seria tão mau assim ficar sem saber, durante todo o infinito dos
tempos, das desumanidades dos humanos. Ela achava o ser humano arrogante por
pensar que teria direito à eternidade. Pode até ser mas...certeza ninguém tinha
de nada. Você pode ter fé, aí é outra coisa, pensava consigo mesmo. Mas saber
mesmo, ninguém sabia.
Bom,
agora ela está lá do outro lado...ou não está? Como ela dizia, ninguém sabe.
Uma coisa é certa, porém: aqui, neste mundo, a Dona Maria, ironicamente, de certa
maneira virou eterna, ela que não acreditava na eternidade. Ela ficou para sempre no coração de todos...
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