Céu
Verde
“Só há uma diferença entre um
louco e eu.
O louco pensa que é sadio. Eu sei
que sou louco.”
Salvador Dali
Eu
gosto do Dr. Ross, acho que é um homem decente, correto. Ele não duvida de mim,
ou pelo menos não fala. Nunca faz cara de incrédulo quando eu conto minhas
histórias. Ainda bem que ultimamente ele tem tratado de mim mais do que o
Dr.Reinard. O Dr. Reinard foi o meu primeiro médico. Dizem que ele é um grande
psiquiatra, mas eu acho que ele trabalha para o governo. Desde o começo ele
sempre falou que as coisas que falo são coisas imaginadas, que não aconteceram.
Diz que é uma doença. Ele sabe tanto quanto eu que as coisas que eu falo
realmente aconteceram. Diz que não, acho que é pago para isso.
Eu
nunca vou esquecer as coisas que vi. Eles estão me dando cada vez mais
remédios. Quando posso, seguro os comprimidos na boca. Quando o enfermeiro vai
embora, cuspo fora. Eu sei o que eles querem, querem me deixar dopado, querem
fritar meu cérebro. Daí ninguém vai acreditar em mim mesmo, é isso o que eles
querem. Acho que o Dr. Ross não pertence ao esquema. Eu vi tudo, é como se
tivesse acontecido ontem. Acho que já
faz uns dois anos, foi daí que me trouxeram para cá. Imagina, o Dr. Reinard fica
falando que estou aqui há mais de 9 anos. Eu sei que o que aconteceu foi há dois
anos. Por que ele insiste em falar que estou aqui há 9 anos? Algum motivo tem...
As
pessoas daqui...Não dá para conversar com elas. São loucas de verdade. Não está
certo me colocarem com elas. Existe um engenheiro, seu nome é Scott, com ele dá
para conversar. Não sempre. Às vezes ele está muito por baixo, fica com os
olhos distantes e eu sei que ele não está ouvindo. Para ele eu conto as coisas.
Acho que ele acredita. Em quase tudo.Ele só fica meio assim quando falo que o
céu ficou verde. Uma vez ele falou que provavelmente era a minha vista. Mas eu
sei que não. Minha vizinha, a dona Raquel, também viu. Coitada, ela morreu na
explosão. Todos morreram na explosão, Quase todos. Ela falou comigo. Ela saiu
gritando, “o céu ficou verde” e foi pela rua atrás do marido que tinha saído a
pé para fazer compras. Os dois morreram. Acho que sim.
Foi
a manhã mais estranha de minha vida. Acordei assustado. Fazia um calor
completamente fora do normal. Logo notei que não havia energia elétrica. Isso
não seria tão estranho se eu não tivesse percebido que não era só isso. As
baterias também não funcionavam. Nada, nem computador, nem rádio. Resolvi sair
de casa. Era o caos. Pessoas deitadas na rua, umas se mexendo, outras não.
Carros parados no meio da pista. Poucas pessoas andando...todas cambaleando.
Foi daí que resolvi olhar meu rosto no retrovisor de um carro. O céu atrás de
mim estava verde, sinistramente verde. Daí percebi que havia um som, como se
fosse um som de fundo, sinistro, numa vibração baixa. Lembrei-me então de Rose,
minha namorada. Ela morava a uns cinco blocos de casa. O celular não
funcionava, nem ligava. Nada que tivesse bateria funcionava. Comecei a
andar...Já contei tantas vezes essa história para o Dr. Reinard. Ele sempre diz
que é tudo minha imaginação. Ele diz que eu criei essa história para desviar
minha própria mente de algo muito horrível que havia acontecido comigo ou algo
que eu fizera. Mas eu não acredito nele. Eu sei que vi, eu sei o que vi. Aquele
ruído horrível começou a aumentar. A frequência começou a mudar, começou a
ficar insuportável. Eu senti que a cor do céu estava mudando novamente. Não
quis olhar. Aquele som estranho agora doía no ouvido. Vi uma casa vazia. Entrei.
Havia um porão. Entrei e me tranquei lá. Dentro era um pouco melhor. Foi aí
então que ouvi uma grande explosão. Barulho de coisas caindo, acho que a casa
estava caindo. Foi então que algo bateu em minha cabeça. Não sei mais o que
aconteceu. Acordei, não sei quanto tempo depois, num hospital. Via mas não
ouvia. Não conseguia falar também. Acho que tinha estado em coma.
Algum
tempo depois me mandaram para esse hospício. Acho que é um hospício. E eu tenho
contado os dias e os meses. Faz um pouco mais de dois anos. E o Dr. Reinard
continua dizendo que estou aqui há nove anos. Até mostrou minha ficha. Mas é
mentira. Eles querem esconder o que aconteceu. Eu até encontrei um fulano de
minha cidade, que eu conhecia de vista. Tentei falar com ele para ele confirmar
minha história. Mas ele está muito mal, não consegue se comunicar.
O
Dr. Ross continua insistindo que tudo vai ficar bem, Ele mudou meus remédios.
Mesmo assim, quando dá, eu cuspo tudo fora. Existem umas coisas que estou esquecendo. Não sei mais o nome de minha
cidade. Seria importante lembrar. Ficaria mais fácil provar para todos o que
aconteceu se eu me lembrasse. Será que era Rock...? Rock alguma coisa? Estava tentando me lembrar do
nome de minha irmã. Não consigo também, mas me lembro bem de seu rosto, de seu
sorriso. Tenho saudades de seu sorriso.
Acho
que me dão injeções enquanto durmo. Pensei que era um sonho, mas depois vi que
havia picadas na minha pele. Não gosto disso. O que será que eles querem fazer
comigo? Será que querem me fazer esquecer tudo? Algumas coisas eu já estou
esquecendo. Não me lembro mais como vim parar aqui. O médico que me aplica as
injeções enquanto durmo é o Dr. Reinard, mas a cara dele é a cara do Dr. Ross.
É estranho...Agora, toda vez que me encontra, o Dr. Ross diz que eu vou ficar
bem, que tudo vai ficar em ordem. Ele fala isso o tempo todo. Ele fala que vou
ter uma vida feliz. Para ser franco, eu acho mesmo que estou mais feliz agora.
Penso muito menos nas coisas que aconteceram. Algumas já nem lembro mais. Eu
não sei mais o que estava fazendo na rua naquela manhã. Lembro-me de que havia
pessoas na rua. Elas estavam com algum problema. O Dr. Ross falou de novo que
tudo iria melhorar. Por que eu estava na rua? Por que não voltei para casa?
Eu me lembro vagamente que era um dia
bonito. O céu era azul. Estava tudo bem. O Dr. Ross sempre fala que as coisas
já estão melhores. Eu me sinto melhor.
Hoje
falei falei com o Scott, o engenheiro. Ele não está nada bem. Ele piorou
ultimamente. O Dr. Ross falou que eu não deveria ficar ou falar com ele. Disse
que não era boa companhia para mim. Faz tempo que não vejo o Dr. Reinard. Existe um
enfermeiro novo que é muito parecido com ele.
Coitado
do Scott, ele não está nada bem. Ele tem umas conversas estranhas. Hoje de
manhã ele estava me falando da explosão que houve na minha cidade. Que ele
tinha descoberto algumas coisas. Seria interessante eu saber. Coitado do Scott,
eu sei que ele quer me ajudar, mas ele está pior do que eu. Fica falando em
explosões, em um laboratório de pesquisas avançadas em física lá na minha
cidade. Ele não sabe que minha cidade é aqui mesmo. Coitado, acho que andou
lendo coisas em algum livro. Disse que eu tinha razão, que o céu tinha ficado
verde. Acho que o Scott não tem mais jeito, imagina, céu verde...Esse Scott...
Imagina,
que coisa, de onde ele tirou essa ideia de céu verde? Scott, pelo amor de Deus,
o céu é azul! Todo mundo sabe que o céu é azul.
O
Scott continua piorando. Agora ele está me falando que é mentira que eu estou
aqui há 9 anos. Ele já está aqui há muitos anos e se lembra de quando eu
cheguei. Coitado, ele nem sabe que eu sempre morei aqui. O céu lá do pátio
sempre foi azul. Ele fala de coisas estranhas. Sabe, acho que não vou falar
mais com ele. Eu tenho muita pena, mas o Dr. Ross falou que é pela minha
própria saúde mental. Não é nada bom falar com o Scott. Eu estou muito bem agora, estou feliz. Tenho tudo de
que preciso aqui.
Estou
preocupado com o Scott. Eu parei de falar com ele e faz tempo que eu não o
vejo. Talvez tenha piorado, talvez tenham levado o coitadinho embora. Eu gosto
daqui. O Dr. Ross continua dizendo que eu vou ficar bem. Não sei porque ele
continua falando isso. Estou já estou bem, sempre estive bem. Adoro aqui. Não
tem porque o Dr. Ross falar isso. Sempre morei aqui, sempre foi bom. Da próxima
vez que o Dr. Ross passar pelo meu quarto, vou falar para ele. Ele precisa
entender, o Dr Ross. Eu sou daqui, eu sou feliz. Ele precisa mais é cuidar do Scott. O Scott sim, que tem
problemas. Imagina, fica falando aquelas
coisas estranhas. Coitado! Imagina só! Céu verde! Que ideia mais estranha! Onde
foi que ele arrumou uma coisas
dessas...Céu verde? Pobre Scott...Que absurdo! Céu verde!?
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