Os tanques estão nas ruas
Os padres tinham falado para a gente que uma revolução estava começando. Os comunistas tinham chegado e nós precisávamos lutar. Nós, não, pois éramos crianças. Eles tinham tomado o governo, o povo brasileiro precisava lutar. Para nós, isolados no seminário, foi uma festa, sair assim, bem na época das aulas e ir para casa, passar uns dias. Certamente não achavam seguro ficarmos ali e sermos alvos fáceis dos perigosos e impiedosos vermelhos. A bandeira cor de sangue, com a foice e o martelo, tremia nos píncaros de nossa pátria.
O trem da Sorocabana ia veloz pelos trilhos, levando-nos em segurança, para o seio de nossas famílias em São Paulo. Vez ou outra, víamos pela janela, blindados e soldados. Chegando à capital, o movimento era maior. Havia militares armados nas ruas, havia veículos de guerra no asfalto.
Era 31 de março de 1964. Estava começando o golpe militar. Eu, de guerra, só conhecia o velho armamento e pedaços de balas de canhão da revolução de 32, exibidos no pequeno museu de Lavrinhas, onde tinha frequentado o seminário há alguns anos atrás. Por isso, fiquei todo maravilhado com o movimento. Por algum motivo não estava com medo dos socialistas. O que me deixava excitado era aquela movimentação toda. Algo diferente estava acontecendo. Adolescente gosta dessas coisas.
Em casa, ouvia o rádio. Havia dois tipos de estação. Algumas pertenciam à Rede da Legalidade, o pessoal do governo, outras pertenciam à Rede da Democracia, o pessoal que apoiava a derrubada de Jango Goulart. Por algum motivo, eu achava que os da legalidade tinham razão. Mas isso era opinião de moleque, que não entendia nada.
Devagar, tudo foi se acalmando, o governo caiu, o sangue não foi derramado. Acho que brasileiro não gosta de briga feia, de tiros de verdade. Sempre é possível apartar uma briga, deixar as coisas para lá. Foi isso o que fizemos. E a vida continuou, aparentemente calma, em nosso país.
A minha dolescência terminou e eu fui para a Universidade, alguns anos depois. Foi só aí, que descobri que a luta havia recomeçado. Era, entretanto, uma luta diferente. Não havia canhões, nem tropas, nem soldados. A batalha era em outros campos. Havia os que podiam falar e os que não tinham esse direito. Havia a censura e os censurados. Havia os que puniam e os que eram punidos. Havia aqueles que tinham as armas do governo e havia aqueles que assaltavam bancos para poderem comprar armas para lutar. A guerra era à noite, às escondidas. A guerra era também de dia, nos porões. Os “soldados” presos, geralmente estudantes e jornalistas, eram torturados, queimados com pontas de cigarros, pendurados nos “paus de arara”. Alguns tinham agulhas enfiadas por baixo das unhas. Os médicos cuidavam deles para que não morressem. Precisavam ficar vivos, para sentir dor e poder confessar, delatar os companheiros. Se alguém morresse, precisavam de um médico para dizer que era suicídio.
Antes, quando vi os tanques nas ruas, não sabia que a revolução ia ser desse jeito. Se soubesse, talvez não tivesse achado bonito eles desfilarem nas ruas. Até nisso o país foi o país do jeitinho. Fizeram uma guerra, mas foi uma guerra que não parecia guerra. Fizeram uma revolução, mas foi uma revolução de poucos. Quase ninguém foi convidado, e, sem convite, ninguém entrava, a não ser pela porta dos fundos.
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