Morar no morro, segundo
alguns compositores populares, é poético. Quando eu era pequeno, achava isso
também. Na verdade, não era bem poesia, era emoção. Ver tudo lá do alto, bem
alto, era como se tudo fosse meu. O campo de futebol do Portland Perus, o rio,
a estação da estrada de ferro, tudo. A
família era simples, a casa era simples, mas que importava, se eu podia possuir
tudo lá do alto, lá do morro São Jorge?
Mas havia as enchentes.
Sem avisar, elas chegavam. Se havia previsão de tempo naquela época, ninguém
sabia. De nada adiantaria, se soubéssemos. O morro era o único lugar seguro. Lá
embaixo, a água cor de barro invadia
tudo, apagava os contornos dos lotes, das ruas, era tudo uma coisa só. Telhados
e copas de árvores eram as referências. A estrada de ferro, mais alta, ficava a
salvo e dividia, do outro lado, os alagados dos não alagados.
Éramos crianças e não
víamos o lado da tragédia, pessoas perdendo as coisas que tinham, perdendo as
casas, sofrendo. Na nossa inocência, não víamos nada daquilo. Só conseguíamos
ver um grande espetáculo, os adultos comentando, tudo acontecendo.
Depois, tudo passava,
tudo voltava ao normal. Para nós. Para muitos, entretanto, muita coisa mudava.
Muito sacrifício pela frente, muita dureza e destruição.
Mais tarde, adulto,
aprendi. Todos nós temos nossas enchentes. Enchentes de todos os tipos, destruidoras
e fatais, as de verdade e as metafóricas. Passam sim, seca tudo depois. Fica, porém,
um grande estrago que só a gente consegue ver. Fica um estrago danado nas
coisas, um estrago danado nas almas, lá dentro da gente. Agora não gosto mais de
ver as enchentes: nem as de água barrenta, nem as outras enchentes da vida... Nem
a dos outros, nem as minhas.
Histórias do Futuro
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