A
Arca de Noé
Depois de voltarem do processo de congelamento, ainda
demoraram três dias para se adpatarem e
recuperarem todas funções biológicas e mentais. Ainda assim teriam de esperar
mais 37 dias até que todas as condições externas fossem conhecidas. Foram horas
e horas de exaustivo trabalho para Vilhelm e sua equipe.
Havia centenas de grupos seletos como esse, espalhados
pelos Estados Unidos, América do Sul, Europa e Ásia. Se todos tivessem
sobrevivido, haveria mais de 200 mil pessoas em todo o mundo para tentar
recomeçar a civilização. O grupo de Vilhelm era de 113 pessoas e os outros
espalhados pelo globo variavam de 90 a 120 cada. Eram pessoas especiais, cada
uma com características e qualidades únicas.
Poderia se dizer que se tratavam de arcas de Noé dos
tempos modernos. As gigantescas cápsulas
ou “Kapsoverlevs”, como eram chamadas, tinham dentro de si, embriões
congelados, sementes de plantas conservadas de maneiras diversas, espécies
animais, aparelhos elétricos e eletrônicos e pequenas unidades de energia
atômica para que tudo funcionasse. Obviamente havia as pessoas também, numa
proporção de três mulheres para cada homem.
Por mais de 10 anos esperaram em estado de criogenia
até que os computadores iniciaram o processo de ressuscitação, alertados por
sensores na superfície do solo, indicando que os efeitos do impacto dos
meteoros haviam cessado. Havia condições mínimas de sobrevivência. As enormes
cápsulas estavam enterradas a mais de cem metros de profundidade.
Era o ano de 2102 e a humanidade estava preparada para
se defender de meteoros com dimensões razoáveis. O grande meteoro “Jagare”,
entretanto, enganou a todos. Três anos
antes de sua passagem a uma distância razoável da Terra e que não representava
perigo, ele teve uma inexplicável e súbita mudança de rota. Era quase
imperceptível mas suficiente para nos destruir. Além disso, ele era acompanhado
de inúmeros outros meteoros menores, mas que, juntos, significariam o fim da
nossa civilização. Certamente, entre outras coisas óbvias, haveria deslocamento
do eixo do planeta.
Não havia mais tempo para enviar uma esquadrilha de
naves com poder suficiente para alterar a nova rota. Estudar por que acontecera aquela pequena
alteração de itinerário era irrelevante a essa altura e a única opção era
colocar em ação o “Projeto Noaks” que consistia em ativar uma quantidade enorme
de abrigos subterrâneos. Na verdade todo o projeto era uma gota de água num
oceano, apenas uma forma de mitigar os efeitos da tragédia e, principalmente,
dar uma esperança ao povo. A parte secreta do projeto, porém, era sofisticada e
tinha grandes chances de preservar parte da humanidade. Eram as “Kapsoverlev”,
nome dado pelo sueco que concebeu o projeto inicial em 2050. Obviamente não
eram suficientes para salvar a todos. Por isso, o segredo. Por isso também, a
importância da seleção. Teriam de ser preservados os elementos essenciais para
“recriar” nossa raça e nosso planeta. As cápsulas eram projetadas para ficarem
soterradas por mais de cem anos, se fosse necessário.
Segundo os sensores externos da “Kapsoverlev”
US3228KS, os 10 anos que haviam se passado desde a tragédia, eram suficientes e
eles poderiam sair, embora a destruição externa era muito maior do que se
imaginara. A temperatura estava baixíssima em todo o planeta, embora ainda
suportável por um ser humano.
Infelizmente o grupo de 113 de Vilhelm estava reduzido
a 37. Boa parte do sistema de criogenia da cápsula havia sido destruída pelo
“evento”, apesar da profundidade em que estavam. Provavelmente movimentos
sísmicos violentíssimos causaram rupturas não previstas. Não é necessário dizer
que os abrigos normais simplesmente tinham sido pulverizados nos primeiros
segundos da tragédia.
Havia um longo túnel, feito de um material especial,
que ligava a grande cápsula à suferfície. Houve muita dificuldade para o grupo
dos 37 chegar até a superfície. Depois de quase 15 horas conseguiram. Finalmente abriram a última escotilha.
O céu estava coberto de uma nuvem cinza, porém deveria
ser dia, pois ainda podiam ser vistos os contornos da paisagem. Obviamente não
havia plantas, nem construções, nada. Embora o local escolhido para a
“Kapsoverlev” US3228KS “dormir” fosse longe
da cidade, quem conhecia o local sabia que, à distância, construções poderiam
ser vistas, se algo houvesse resistido. Obviamente tudo estava devastado e
mesmo os contornos das pequenas elevações ao redor estavam completamente
alterados. A temperatura era de 25 graus Fahrenheit, como indicavam os
sensores, porém não havia vento nem umidade. O sol certamente não aparecia
sempre ali, mas certamente por algum tempo teria atravessado a espessa de
nuvens, pois, ao contrário, deveria haver gelo por toda a parte...
-A não ser que...
-O quê? Gustav? A não ser o quê?
-Que tenha havido algum aquecimento vindo da terra,
alguma erupção vulcânica, não longe daqui. Deve ter havido algo... Você viu a
quantidade de atividade sísmica registrada nos últimos anos em nossos registros
lá na cápsula?
-Já temos apocalipse demais, Gustav. Essa conversa é
inútil.
Vilhelm estava um pouco irritado com a atitude do
grupo. Lá no fundo sabia que era inevitável, a situação era completamente
irreal, dantesca. Ele tinha consigo os comprimidos e produtos injetáveis, caso
alguém ficasse fora de controle. Fez um sinal para o pequeno grupo, subiu em uma
pedra e fez um pequeno discurso:
-Vamos ter de andar, vocês sabem. Pelo que indicam nossos aparelhos, o
magnetismo dos polos está invertido, não que isso importe muito para nós, no
momento.
Alguns
esboçaram um riso.Vilhelm pensou que aquilo era bom, precisava de um certo
ânimo. Lá no fundo sabia, entretanto, que era mais nervosismo que senso de
humor.
-Sabemos também que para o sul de agora, antes o
norte, a temperatura deve estar um pouco mais alta, embora os aparelhos só
alcancem cerca de 50 milhas. Cada um sabe a cota de suprimentos e aparelhos
básicos que deve carregar. Vamos caminhar 5 milhas por dia, se conseguirmos,
até encontrarmos um lugar viável. Daí começaremos a fazer a avaliação de
sobrevivência.
Alguns esboçaram uma manifestação de aplauso, mas logo
pararam. Todos sabiam que aquilo era uma tarefa além da capacidade humana.
Havia, no entanto, a possibilidade de encontrarem outros grupos. Talvez
tivessem conseguido sair antes, talvez tivessem descoberto coisas importantes.
Pelo menos não estavam diante de um planeta congelado, cheios de gases mortais.
Tudo isso tinha sido verificado. Era uma pena deixar ali toda aquela
tecnologia, mas eles tinham uma missão, tinham de prosseguir. E começaram a
caminhar...
Eram vinte homens e dezessete mulheres. Todos com
idade entre 30 e 40 anos. O local foi sinalizado eletronicamente e de outras
formas não tão tecnológicas. Dentro da cápsula, havia preciosidades. Embriões
congelados, espécies animais e vegetais de uma diversidade enorme. E as
máquinas todas... Muita coisa só os “tripulantes” de nível A e B sabiam. Apenas
dois do nível A, Vilhelm e Dennis, e um do nível B, Sarah, haviam sobrevivido,
mas isso era suficiente para comandar o grupo. Quando tudo estivesse acertado deveriam
voltar ao local da “Kapsoverlev”. Primeiro tinham de cuidar da própria
sobrevivência.
A caminhada foi mais difícil do que pensavam. Apesar
da incrível tecnologia de criogenia e recuperação e outros avanços médicos,
ainda assim era muito para o corpo humano. Depois de onze horas andando,
resolveram parar para descansar, desta vez um descanso mais longo, o repouso da
noite.
Todos dormiram, Vilhelm também. Acordou várias vezes,
porém, e notou algo estranho. A noite nunca tinha vindo e certamente não viria.
Ele sabia que aquilo não era bom, embora não soubesse o que significava. A
tênue luz que tinham e que era constante e que certamente atravessava a camada
de nuvens cinzas, o que era? O sol? Vinte e quatro horas por dia? Resolveu não
comentar o assunto com ninguém, nem mesmo com Sarah e Dennis, os outros dois
que tinham patentes como ele. Sabia, entretanto, que o assunto viria à tona a
qualquer momento.
Algumas horas depois, quase todos tinham acordado.
Sarah aproximou-se. Vilhelm já sabia qual seria sua pergunta:
-Vilhelm, não escurece à noite?
-Devemos estar num dos polos. Talvez tenhamos meses de
“dias” e depois meses de “noite”...
Por mais absurdo que parecesse, nas circunstâncias a
afirmação de Vilhelm pareceu razoável. Sarah fez um sinal de que entendia e se
afastou para acordar os que ainda estavam dormindo. Um deles, entretanto, não
se mexeu. Sanford, o mais novo do grupo, estava morto. Fizeram uma pequena
cerimônia de enterro e continuaram.
A caminhada em si não era árdua, o que agredia era a
monotonia da paisagem. O céu era de um cinza claro, o resto era de um cinza
mais escuro, com pouca variação. Machucava o espírito, machucava a alma. E se
aquilo continuasse indefinidamente? Até onde aguentariam? Haveria um “oásis”,
onde pudessem parar e tentar começar a nova vida? Um lugar para onde pudessem
trazer o que havia no abrigo e começar os projetos que tinham de executar? Até
então, entretanto, nem sinal de água ou qualquer coisa viva.
Ninguém falava nada, mas era possível notar nas faces
um desânimo misturado com desespero. Vilhelm pensou que, como líder do grupo,
teria que fazer alguma coisa. Ele mesmo estava num estado de espírito horrível,
mas precisaria buscar força em alguma parte de seu ser e tentar reverter aquela
situação. Parou, fez um sinal e falou:
- Vamos parar por aqui. Podemos descansar junto
àquelas rochas e depois continuamos.
A maioria ainda não estava com sono.Começaram a
conversar em pequenos grupos. Pareciam furtivos. Vilhelm logo percebeu que
aquilo não era bom. Numa situação como essa é difícil saber o que se está
passando pelas cabeças. Novamente veio à sua mente que precisaria exercer
melhor a liderança.
Meia hora depois todos estavam dormindo. Seu sono ia e
vinha. Finalmente adormeceu profundamente.
Quando acordou, Vilhelm percebeu que alguns do grupo
já estavam em pé. Olhavam todos para o mesmo lado e apontavam. Pensou em se
levantar. Foi aí então que percebeu que havia no ar um zumbido, quase
imperceptível. Era misterioso e uma sensação quase sinistra percorreu seu
corpo. Deu um pulo, caminhou uns passos e olhou para onde os outros olhavam
também. Havia um facho de luz vindo do céu. Atravessava a densa camada cinza e
se espalhava pelo grande descampado que havia à frente. Mas havia mais. Um
objeto, razovelmente grande, no chão, parecia refletir a luz que vinha de cima.
Poderia ser água, poderia ser outra coisa. Normalmente Vilhelm agiria com
cautela, mas aquela mesmice terrível pela qual estavam passando, fez com que a
reação imediata fosse avançar:
-Vamos!
A essa altura todos já estavam em pé. Juntaram o que
tinham e caminharam. O quer que fosse que estivesse brilhando estava a umas
três ou quatro milhas de distância. Agora era óbvio que a “coisa” estava refletindo a luz que vinha de cima.
Enquanto avançavam, de repente ficou claro para Vilhem que a pouca claridade
que viam o tempo todo não era o sol. Era tudo reflexo daquela fonte de luz que
certamente ia até muito longe. Talvez os verdadeiros raios solares simplesmente
não estivessem chegando até o solo.
Conforme foram se aproximando, o zumbido foi ficando
mais intenso mas não parecia incomodar nem assustar. Qualquer coisa que fosse
diferente, que representasse qualquer esperança, era boa. Se aquilo
significasse o fim de tudo, também não seria mau. Precisavam de uma definição.
Agora estava claro. Era um enorme objeto metálico de
formato oval, alongado. Não tinha suporte por baixo, não parecia ter portas ou
janelas ou qualquer outra coisa em sua superfície. Ninguém estava com medo.
Estavam excitados, admirados, maravilhados. Vilhelm e Sarah foram bem à frente
e pararam a uns cinco metros do grande aparelho. Deveria ter uns dez metros de altura e uns
cinquenta de comprimento. Sua estrutura parecia ser feita de um metal especial.
Se não fosse pela sua cor ligeiramente azulada, poderia se dizer que era aço inoxidável.
Finalmente Sarah avançou mais. O zumbido ficou mais
intenso e, de repente uma espécie de porta, também oval, abriu para cima. Como
se fossem autômatos, foram entrando sem discutir, sem falar. Por dentro não
parecia ter dez metros de altura. Ao contrário, no máximo uns três. Havia
poltronas, de um material quase transparente, dispostas em círculo. Jonathan, o engenheiro genético, foi o
primeiro a sentar. Todos viram com surpresa, que assim que ele o fez, a
poltrona se reclinou e se estendeu suavemente, tornando se numa espécie de
cama. Ao mesmo tempo o local por onde haviam entrado, fechou-se suavemente, sem
ruído. Não havia mais aquele zumbido infernal e todos começaram a procurar um
assento, como se isso fosse a coisa natural a ser feita.
O último a fazê-lo foi Anthony e, com surpresa, todos
se viram repentinamente cobertos com uma espécie de cúpula transparente. Uma
voz, então, com um inglês diferente, começou a falar. Era suave, feminina e ao
mesmo tempo metálica, artificial. Enquanto recebiam as boas vindas, podia se
notar que o oxigênio entrava por dentro da cúpula. A sensação era de bem estar,
talvez houvesse algum tipo de droga junto com o ar que que estavam recebendo.
A voz explicou que eles eram a única “Kapsoverlev”
sobrevivente, que a devastação provocada pelos meteoros era tremedamente maior
do que se havia previsto. Por uns instantes Vilhelm pensou que aquilo também
fizesse parte do projeto de recuperação, mas à qual ele não tivera tido acesso
e... A voz se encarregou de tirar todas as dúvidas. Eles eram de um outro
planeta distante, Betek, estavam a cinco anos luz dali e tinham acompanhando
toda a tragédia. Por três anos, depois que chegaram, estiveram monitorando as
cápsulas subterrâneas para detectar vida. Todas, exceto eles, haviam sido
massacradas pela súbita movimentação da Terra, por gigantescas acomodações de
camadas. Seriam necessários centenas de milhares de anos antes que a vida
pudesse brotar novamente.
A essa altura todos estavam dormindo. Ainda assim,
estavam recebendo claramente a mensagem.
Na verdade, eles estavam voltando “para casa”. Era
como eles fossem irmãos interplanetários. Há milhões de anos atrás, o planeta
deles também havia sido destruído por calamidade semelhante, e eles, como
tiveram mais tempo, haviam enviado “sementes” para a Terra, que milhões de anos
mais tarde, criaram vida inteligente: eles, os homens.
Estavam em sono profundo. A cápsula azul havia se acoplado
à nave mãe e esta já alacançava uma “altura” equivalente a da Lua, numa
velocidade jamais atingida por qualquer ser
humano até então.
Se houvesse algum sobrevivente no nosso planeta, ele
poderia ver um ponto azul, cinco vezes maior do que Vênus no céu, porém
deixando uma graciosa cauda no escuro do firmamento.
À procura de Lucas
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À procura de Lucas
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