Monday, July 4, 2016

A Arca de Noé





A Arca de Noé

Depois de voltarem do processo de congelamento, ainda demoraram três dias para se adpatarem  e recuperarem todas funções biológicas e mentais. Ainda assim teriam de esperar mais 37 dias até que todas as condições externas fossem conhecidas. Foram horas e horas de exaustivo trabalho para Vilhelm e sua equipe.
Havia centenas de grupos seletos como esse, espalhados pelos Estados Unidos, América do Sul, Europa e Ásia. Se todos tivessem sobrevivido, haveria mais de 200 mil pessoas em todo o mundo para tentar recomeçar a civilização. O grupo de Vilhelm era de 113 pessoas e os outros espalhados pelo globo variavam de 90 a 120 cada. Eram pessoas especiais, cada uma com características e qualidades únicas.
Poderia se dizer que se tratavam de arcas de Noé dos tempos modernos. As gigantescas  cápsulas ou “Kapsoverlevs”, como eram chamadas, tinham dentro de si, embriões congelados, sementes de plantas conservadas de maneiras diversas, espécies animais, aparelhos elétricos e eletrônicos e pequenas unidades de energia atômica para que tudo funcionasse. Obviamente havia as pessoas também, numa proporção de três mulheres para cada homem.
Por mais de 10 anos esperaram em estado de criogenia até que os computadores iniciaram o processo de ressuscitação, alertados por sensores na superfície do solo, indicando que os efeitos do impacto dos meteoros haviam cessado. Havia condições mínimas de sobrevivência. As enormes cápsulas estavam enterradas a mais de cem metros de profundidade.
Era o ano de 2102 e a humanidade estava preparada para se defender de meteoros com dimensões razoáveis. O grande meteoro “Jagare”, entretanto, enganou a todos.  Três anos antes de sua passagem a uma distância razoável da Terra e que não representava perigo, ele teve uma inexplicável e súbita mudança de rota. Era quase imperceptível mas suficiente para nos destruir. Além disso, ele era acompanhado de inúmeros outros meteoros menores, mas que, juntos, significariam o fim da nossa civilização. Certamente, entre outras coisas óbvias, haveria deslocamento do eixo do planeta.
Não havia mais tempo para enviar uma esquadrilha de naves com poder suficiente para alterar a nova rota.  Estudar por que acontecera aquela pequena alteração de itinerário era irrelevante a essa altura e a única opção era colocar em ação o “Projeto Noaks” que consistia em ativar uma quantidade enorme de abrigos subterrâneos. Na verdade todo o projeto era uma gota de água num oceano, apenas uma forma de mitigar os efeitos da tragédia e, principalmente, dar uma esperança ao povo. A parte secreta do projeto, porém, era sofisticada e tinha grandes chances de preservar parte da humanidade. Eram as “Kapsoverlev”, nome dado pelo sueco que concebeu o projeto inicial em 2050. Obviamente não eram suficientes para salvar a todos. Por isso, o segredo. Por isso também, a importância da seleção. Teriam de ser preservados os elementos essenciais para “recriar” nossa raça e nosso planeta. As cápsulas eram projetadas para ficarem soterradas por mais de cem anos, se fosse necessário.
Segundo os sensores externos da “Kapsoverlev” US3228KS, os 10 anos que haviam se passado desde a tragédia, eram suficientes e eles poderiam sair, embora a destruição externa era muito maior do que se imaginara. A temperatura estava baixíssima em todo o planeta, embora ainda suportável por um ser humano.
Infelizmente o grupo de 113 de Vilhelm estava reduzido a 37. Boa parte do sistema de criogenia da cápsula havia sido destruída pelo “evento”, apesar da profundidade em que estavam. Provavelmente movimentos sísmicos violentíssimos causaram rupturas não previstas. Não é necessário dizer que os abrigos normais simplesmente tinham sido pulverizados nos primeiros segundos da tragédia.
Havia um longo túnel, feito de um material especial, que ligava a grande cápsula à suferfície. Houve muita dificuldade para o grupo dos 37 chegar até a superfície. Depois de quase 15 horas conseguiram.  Finalmente abriram a última escotilha.
O céu estava coberto de uma nuvem cinza, porém deveria ser dia, pois ainda podiam ser vistos os contornos da paisagem. Obviamente não havia plantas, nem construções, nada. Embora o local escolhido para a “Kapsoverlev” US3228KS “dormir”  fosse longe da cidade, quem conhecia o local sabia que, à distância, construções poderiam ser vistas, se algo houvesse resistido. Obviamente tudo estava devastado e mesmo os contornos das pequenas elevações ao redor estavam completamente alterados. A temperatura era de 25 graus Fahrenheit, como indicavam os sensores, porém não havia vento nem umidade. O sol certamente não aparecia sempre ali, mas certamente por algum tempo teria atravessado a espessa de nuvens, pois, ao contrário, deveria haver gelo por toda a parte...
-A não ser que...
-O quê? Gustav? A não ser o quê?
-Que tenha havido algum aquecimento vindo da terra, alguma erupção vulcânica, não longe daqui. Deve ter havido algo... Você viu a quantidade de atividade sísmica registrada nos últimos anos em nossos registros lá na cápsula?
-Já temos apocalipse demais, Gustav. Essa conversa é inútil.
Vilhelm estava um pouco irritado com a atitude do grupo. Lá no fundo sabia que era inevitável, a situação era completamente irreal, dantesca. Ele tinha consigo os comprimidos e produtos injetáveis, caso alguém ficasse fora de controle. Fez um sinal para o pequeno grupo, subiu em uma pedra e fez um pequeno discurso:
-Vamos ter de andar, vocês  sabem. Pelo que indicam nossos aparelhos, o magnetismo dos polos está invertido, não que isso importe muito para nós, no momento.
 Alguns esboçaram um riso.Vilhelm pensou que aquilo era bom, precisava de um certo ânimo. Lá no fundo sabia, entretanto, que era mais nervosismo que senso de humor.
-Sabemos também que para o sul de agora, antes o norte, a temperatura deve estar um pouco mais alta, embora os aparelhos só alcancem cerca de 50 milhas. Cada um sabe a cota de suprimentos e aparelhos básicos que deve carregar. Vamos caminhar 5 milhas por dia, se conseguirmos, até encontrarmos um lugar viável. Daí começaremos a fazer a avaliação de sobrevivência.
Alguns esboçaram uma manifestação de aplauso, mas logo pararam. Todos sabiam que aquilo era uma tarefa além da capacidade humana. Havia, no entanto, a possibilidade de encontrarem outros grupos. Talvez tivessem conseguido sair antes, talvez tivessem descoberto coisas importantes. Pelo menos não estavam diante de um planeta congelado, cheios de gases mortais. Tudo isso tinha sido verificado. Era uma pena deixar ali toda aquela tecnologia, mas eles tinham uma missão, tinham de prosseguir. E começaram a caminhar...
Eram vinte homens e dezessete mulheres. Todos com idade entre 30 e 40 anos. O local foi sinalizado eletronicamente e de outras formas não tão tecnológicas. Dentro da cápsula, havia preciosidades. Embriões congelados, espécies animais e vegetais de uma diversidade enorme. E as máquinas todas... Muita coisa só os “tripulantes” de nível A e B sabiam. Apenas dois do nível A, Vilhelm e Dennis, e um do nível B, Sarah, haviam sobrevivido, mas isso era suficiente para comandar o grupo. Quando tudo estivesse acertado deveriam voltar ao local da “Kapsoverlev”. Primeiro tinham de cuidar da própria sobrevivência.
A caminhada foi mais difícil do que pensavam. Apesar da incrível tecnologia de criogenia e recuperação e outros avanços médicos, ainda assim era muito para o corpo humano. Depois de onze horas andando, resolveram parar para descansar, desta vez um descanso mais longo, o repouso da noite.
Todos dormiram, Vilhelm também. Acordou várias vezes, porém, e notou algo estranho. A noite nunca tinha vindo e certamente não viria. Ele sabia que aquilo não era bom, embora não soubesse o que significava. A tênue luz que tinham e que era constante e que certamente atravessava a camada de nuvens cinzas, o que era? O sol? Vinte e quatro horas por dia? Resolveu não comentar o assunto com ninguém, nem mesmo com Sarah e Dennis, os outros dois que tinham patentes como ele. Sabia, entretanto, que o assunto viria à tona a qualquer momento.
Algumas horas depois, quase todos tinham acordado. Sarah aproximou-se. Vilhelm já sabia qual seria sua pergunta:
-Vilhelm, não escurece à noite?
-Devemos estar num dos polos. Talvez tenhamos meses de “dias” e depois meses de “noite”...
Por mais absurdo que parecesse, nas circunstâncias a afirmação de Vilhelm pareceu razoável. Sarah fez um sinal de que entendia e se afastou para acordar os que ainda estavam dormindo. Um deles, entretanto, não se mexeu. Sanford, o mais novo do grupo, estava morto. Fizeram uma pequena cerimônia de enterro e continuaram.
A caminhada em si não era árdua, o que agredia era a monotonia da paisagem. O céu era de um cinza claro, o resto era de um cinza mais escuro, com pouca variação. Machucava o espírito, machucava a alma. E se aquilo continuasse indefinidamente? Até onde aguentariam? Haveria um “oásis”, onde pudessem parar e tentar começar a nova vida? Um lugar para onde pudessem trazer o que havia no abrigo e começar os projetos que tinham de executar? Até então, entretanto, nem sinal de água ou qualquer coisa viva.
Ninguém falava nada, mas era possível notar nas faces um desânimo misturado com desespero. Vilhelm pensou que, como líder do grupo, teria que fazer alguma coisa. Ele mesmo estava num estado de espírito horrível, mas precisaria buscar força em alguma parte de seu ser e tentar reverter aquela situação. Parou, fez um sinal e falou:
- Vamos parar por aqui. Podemos descansar junto àquelas rochas e depois continuamos.
A maioria ainda não estava com sono.Começaram a conversar em pequenos grupos. Pareciam furtivos. Vilhelm logo percebeu que aquilo não era bom. Numa situação como essa é difícil saber o que se está passando pelas cabeças. Novamente veio à sua mente que precisaria exercer melhor a liderança.
Meia hora depois todos estavam dormindo. Seu sono ia e vinha. Finalmente adormeceu profundamente.
Quando acordou, Vilhelm percebeu que alguns do grupo já estavam em pé. Olhavam todos para o mesmo lado e apontavam. Pensou em se levantar. Foi aí então que percebeu que havia no ar um zumbido, quase imperceptível. Era misterioso e uma sensação quase sinistra percorreu seu corpo. Deu um pulo, caminhou uns passos e olhou para onde os outros olhavam também. Havia um facho de luz vindo do céu. Atravessava a densa camada cinza e se espalhava pelo grande descampado que havia à frente. Mas havia mais. Um objeto, razovelmente grande, no chão, parecia refletir a luz que vinha de cima. Poderia ser água, poderia ser outra coisa. Normalmente Vilhelm agiria com cautela, mas aquela mesmice terrível pela qual estavam passando, fez com que a reação imediata fosse avançar:
-Vamos!
A essa altura todos já estavam em pé. Juntaram o que tinham e caminharam. O quer que fosse que estivesse brilhando estava a umas três ou quatro milhas de distância. Agora era óbvio que a “coisa”  estava refletindo a luz que vinha de cima. Enquanto avançavam, de repente ficou claro para Vilhem que a pouca claridade que viam o tempo todo não era o sol. Era tudo reflexo daquela fonte de luz que certamente ia até muito longe. Talvez os verdadeiros raios solares simplesmente não estivessem chegando até o solo.
Conforme foram se aproximando, o zumbido foi ficando mais intenso mas não parecia incomodar nem assustar. Qualquer coisa que fosse diferente, que representasse qualquer esperança, era boa. Se aquilo significasse o fim de tudo, também não seria mau. Precisavam de uma definição.
Agora estava claro. Era um enorme objeto metálico de formato oval, alongado. Não tinha suporte por baixo, não parecia ter portas ou janelas ou qualquer outra coisa em sua superfície. Ninguém estava com medo. Estavam excitados, admirados, maravilhados. Vilhelm e Sarah foram bem à frente e pararam a uns cinco metros do grande aparelho.  Deveria ter uns dez metros de altura e uns cinquenta de comprimento. Sua estrutura parecia ser feita de um metal especial. Se não fosse pela sua cor ligeiramente azulada, poderia se dizer que era aço inoxidável.
Finalmente Sarah avançou mais. O zumbido ficou mais intenso e, de repente uma espécie de porta, também oval, abriu para cima. Como se fossem autômatos, foram entrando sem discutir, sem falar. Por dentro não parecia ter dez metros de altura. Ao contrário, no máximo uns três. Havia poltronas, de um material quase transparente, dispostas em círculo.  Jonathan, o engenheiro genético, foi o primeiro a sentar. Todos viram com surpresa, que assim que ele o fez, a poltrona se reclinou e se estendeu suavemente, tornando se numa espécie de cama. Ao mesmo tempo o local por onde haviam entrado, fechou-se suavemente, sem ruído. Não havia mais aquele zumbido infernal e todos começaram a procurar um assento, como se isso fosse a coisa natural a ser feita.
O último a fazê-lo foi Anthony e, com surpresa, todos se viram repentinamente cobertos com uma espécie de cúpula transparente. Uma voz, então, com um inglês diferente, começou a falar. Era suave, feminina e ao mesmo tempo metálica, artificial. Enquanto recebiam as boas vindas, podia se notar que o oxigênio entrava por dentro da cúpula. A sensação era de bem estar, talvez houvesse algum tipo de droga junto com o ar que que estavam recebendo.
A voz explicou que eles eram a única “Kapsoverlev” sobrevivente, que a devastação provocada pelos meteoros era tremedamente maior do que se havia previsto. Por uns instantes Vilhelm pensou que aquilo também fizesse parte do projeto de recuperação, mas à qual ele não tivera tido acesso e... A voz se encarregou de tirar todas as dúvidas. Eles eram de um outro planeta distante, Betek, estavam a cinco anos luz dali e tinham acompanhando toda a tragédia. Por três anos, depois que chegaram, estiveram monitorando as cápsulas subterrâneas para detectar vida. Todas, exceto eles, haviam sido massacradas pela súbita movimentação da Terra, por gigantescas acomodações de camadas. Seriam necessários centenas de milhares de anos antes que a vida pudesse brotar novamente.
A essa altura todos estavam dormindo. Ainda assim, estavam recebendo claramente a mensagem.
Na verdade, eles estavam voltando “para casa”. Era como eles fossem irmãos interplanetários. Há milhões de anos atrás, o planeta deles também havia sido destruído por calamidade semelhante, e eles, como tiveram mais tempo, haviam enviado “sementes” para a Terra, que milhões de anos mais tarde, criaram vida inteligente: eles, os homens.
Estavam em sono profundo. A cápsula azul havia se acoplado à nave mãe e esta já alacançava uma “altura” equivalente a da Lua, numa velocidade jamais atingida por qualquer  ser humano até então.
Se houvesse algum sobrevivente no nosso planeta, ele poderia ver um ponto azul, cinco vezes maior do que Vênus no céu, porém deixando uma graciosa cauda no escuro do firmamento.

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