Lucille e seus dois
filhos estavam sentados na recepção da IEE, International Entertainment
Enterprises, quando foram chamados para entrarem na sala de reuniões da
empresa. Após cumprimentos efusivos, todos se acomodaram e o senhor Preston
começou o seu pequeno discurso:
-Em primeiro lugar,
quero cumprimentá-la, sra. Medina, pela sua sábia decisão. Pensar no bem-estar da família, neste momento
de dor e sofrimento, é uma coisa nobre. Colocar o futuro de seus filhos na
frente de conceitos comuns, populares, é coisa de gente que tem dignidade.
Lucille deu um sorriso
indefinido, que continha certamente uma boa dose de constrangimento.
Não muito longe dali,
no grande centro de testes e criação, Angel estava tendo dificuldades em entender
o que estava acontecendo. Em primeiro lugar, todos o chamavam de “Crazy Rabbit”
e isso era muito esquisito. O que mais o incomodava, porém, era o fato de que
perdera o controle do que estava fazendo. Em outras palavras, ele queria fazer
algo, mas alguma força maior o obrigava a fazer outra. Tinha completamente
perdido sua capacidade de decisão.
Tudo começava sempre num
grande corredor com inúmeras portas dos dois lados. Ele precisava abri-las. Não
queria, mas precisava. Tinha de achar material para se proteger: escudos,
capacete, um mini carro blindado, roupas especiais, etc. Mas isso era difícil
de se encontrar. Cada vez que abria uma porta, havia uma ameaça, um perigo.
Numa, um bando de cães ferozes e famintos, noutra, um gigante mal encarado, que
o queria esmurrar. Mais na frente, uma outra porta dava num abismo onde ele
quase caía. Da última vez que ele abriu a porta, ele estava desconfiado, iria
ser fatal. E foi. Havia vários atiradores e ele não teve chance. Uma bala
penetrou seu coração. Pensou ter morrido, mas não. Lá estava ele de volta, para
o começo do corredor.
Tinha decorado algumas
portas perigosas e uma boa, que tinha um capacete, que ele ficou com medo de
pegar. Desta vez, ele seria mais esperto. Foi evitando as portas ruins e foi
direto à porta onde estava o capacete. Quando ele colocou a mão para alcançar o
seu “prêmio”, uma cobra, que estava embaixo, tentou picá-lo. Ele conseguiu
escapar. Assim que começou a abrir mais uma porta, lembrou-se de que já a tinha
aberto antes e que lá havia um abismo, perigoso abismo. Para sua surpresa,
entretanto, um capacete dourado rolou a seus pés. Imediatamente agarrou-o.
Sabia que tinha de se proteger melhor antes de ir para a porta do fundo do
corredor, mas já estava cansado e correu até lá, assim mesmo. Dava para uma
grande avenida. Das janelas, pessoas atiravam, tentando acertá-lo. Pensou em
retroceder, mas alguém tinha jogado, logo mais à frente, uma roupa, que ele
sabia ser para sua proteção. Correu até ela, mas antes que pudesse pegá-la,
levou um tiro no pescoço. Sentiu o sangue quente escorrer pela pele. Tentou
levantar-se, mas desmaiou. Quando acordou, estava novamente de volta ao início
de tudo. Agora sabia que as portas mudavam seu conteúdo, não adiantava decorar
o que vira antes. Crazy Rabbit estava ficando desesperado por um lado, mas por
outro, sabia que sempre podia recomeçar.
Na outra sala, Preston
continuava seu discurso:
-Apesar de toda a
evolução da Medicina, como essa técnica de reconstruir órgãos, refazer
completamente o corpo, infelizmente, no caso de seu marido não foi possível.
Seu corpo foi queimado a um ponto além da capacidade da tecnologia de
reconstrução. Quase por um milagre, boa parte de seu cérebro ficou imune. E o
que a senhora fez, parabéns novamente, foi uma coisa admirável. Permitir que
ele fosse utilizado numa coisa útil. É quase o mesmo que doá-lo para a Ciência.
Neste caso, com uma vantagem. Uma grande soma de dinheiro que vai garantir o
futuro de seus filhos. Tenho certeza de que o senhor Medina, se pudesse,
estaria aprovando o que a senhora fez. Que pai não quer o bem de seus filhos?
Além disso, vocês todos devem se orgulhar. O senhor Medina é pioneiro. É a
primeira vez que um jogo online tem a participação de um cérebro vivo. É como
jogar com um ser de histórias em quadrinhos, porém vivo. Ele vai ficar na
história da evolução dos jogos. E a senhora sabe como é importante para a nossa
sociedade, hoje em dia, a criação de novos “games”. Precisamos de diversão,
ocupação. Nosso povo inteiro, não só os jovens, corre um grande perigo de
entrar em depressão profunda. E a solução que temos hoje, além dos jogos, qual
é? Drogas violentíssimas, nada mais. Os jogos virtuais online são a nossa
grande salvação.
A essa altura, o
senhor Preston percebeu que estava exagerando e achou melhor ir para a parte econômica. Preparou-se para declarar o
valor que estava oferecendo, agora que já estava claro que o cérebro de Angel
estava funcionando perfeitamente para seu intuito. Pegou o cheque nas mãos e antes de revelar o
valor, deu mais uma espiada no cantinho da tela de seu computador. A quantidade
de internautas que estavam participando do jogo online “Crazy Rabbit”, naquele
exato momento, era de 11.349.177
participantes. Aquilo era um recorde. Havia alguns que já estavam no jogo há
mais de 17 horas sem parar.
Por outro lado,
finalmente, Angel – o “Crazy Rabbit” – tinha passado da fase dos corredores e
da Grande Avenida, sem levar tiros ou ser ferido, e tinha atingido um terceiro nível. Ficou
sabendo então quem era o seu “companheiro” de luta: o finlandês Kaaprel Ikola,
33 anos. Foi aí que ficou conhecendo o grande desafio. Uma grande área,
inóspita, cheia de perigos e adversidades teria de ser atravessada para
enfrentar o desafio final: chegar até a “Taça do Prazer”, cheia até a boca com
um líquido azul e que estava colocada sobre um pedestal. O problema era que este
estava sendo guardado por uma mulher vestida de preto e com um lenço azul na
cabeça. O rosto da mulher mudava, de acordo com o participante do jogo. Para
ele, Angel, o rosto era de Lucille. E ele sabia que isso iria ser um grande
obstáculo. Ele teria de matar aquela mulher para chegar até a taça. E, ele
repetia para si mesmo, ela tinha a face de sua mulher. Antes de começar a
travessia, Kaaprel Ikola, que estava liderando o jogo, optou pela opção do
espelho. Angel teria de olhar para o espelho, bem ali a seu lado, para adquirir
força. Assim o fez, mesmo porque Kaaprel é quem decidia. Ficou admirado e
confuso quando, ao invés de ver seu rosto, via a cara de um coelho maluco. O
coelho falava alguma coisa com os lábios. Angel não tinha certeza, mas
aparentemente, ele estava avisando para ele que não tinha mais corpo ou rosto,
por isso precisava da cara dele, do “Crazy Rabbit”. Angel Molina não entendeu
bem o que ele queria dizer, mas podia sentir a vibração do finlandês quando
aqueles pontos todos foram acrescentados no seu “chart”, só por causa daquela
olhada no espelho. E iniciou a perigosa travessia.
Alheio a esses
detalhes, finalmente, o senhor Preston anunciou o valor do cheque: cinco
milhões de dólares. Nem a Lucille, nem seus filhos, conseguiram disfarçar a
surpresa e a alegria. Pelo menos, naqueles momentos, ela se esqueceu do marido
Angel. Mal podia acreditar no valor que estava ouvindo. Pegou o cheque,
conferiu, agradeceu e saiu com as crianças.
No caminho para o
carro, foi falando com as crianças, o que na verdade era uma justificativa para
si mesma:
-O seu pai deve estar
feliz. Tenho certeza que sim. Ele sempre dizia que a coisa mais importante do
mundo para ele eram vocês. Que ele faria qualquer coisa...
No seu subconsciente,
uma voz martelava insistentemente: “um cérebro de 5 milhões de dólares, um
cérebro de 5 milhões de dólares...”
Lá, no mundo dos
jogos, Angel Medina ainda lutava consigo mesmo. Tinha sido programado para
pensar que, se matasse aquela mulher e conseguisse a taça, seu companheiro de
lutas, Kaaprel Ikola, poderia beber da taça e ele, poderia voltar a sua vida
normal, viver como um pai de família, etc.. Mas ele jamais voltaria. Voltaria
sim, mas para o começo do corredor, onde recomeçaria a luta. Aí, porém, não se
lembraria de mais nada e seria um novo jogo. Por enquanto, tinha decidido que
iria assassinar a mulher com o rosto de Lucille, ele precisava fazer isto. E
foi o que o Crazy Rabbit fez. O sangue estava correndo pela face lívida da
mulher, mas, a essa altura, Angel Medina, o Crazy Rabbit, já estava de novo no
começo do corredor, reiniciando o jogo, com outros milhões de participantes.
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