O
Leilão
Sanz sempre se interessou pelas coisas dos séculos 20 e 21.
Achava interessante como as pessoas viveram nessa época, como pensavam. Como
eram suas músicas, seus costumes. Ele tinha especial curiosidade sobre o
conceito de “família”. A ideia havia desaparecido completamente no início do
século 22. A necessidade de controlar a densidade demográfica mais o avanço
enorme da ciência genética acabaram entregando o controle dos nascimentos ao
Estado, mais precisamente à Administração Central. Não havia mulheres grávidas
desde cerca do ano 2110 A.D. As pessoas viviam muito mais e a existência com um
certo conforto só era possível com um controle rígido dos nascimentos. Além
disso as concepções via laboratório eram extremamente seguras e garantiam um corpo
extremamente saudável e eficiente. A ideia de família foi substituída pelo
conceito de grupos genéticos. Cada grupo “tinha direito” a um certo número de
concepções, o que, além de ser justo, garantia uma diversidade importante para
o ser humano. Os novos seres recebiam um
código, ao invés de um nome, que ao mesmo tempo era um indicador da “família
genética” a qual pertenciam. Mais tarde
Sanz consultara dados da época e descobrira que esse nome significava
“sagrado”. Achou que a ideia combinava com seu interesse por essa fase da
civilização humana. Tinha interesse principalmente por tudo que se referia ao
final do século 20 e começo do século 21. Para ele, esta época é que deu o
“click”para tudo que ele via agora, 300 anos depois. Sempre que podia, adquiria objetos antigos desse
período, que eram raríssimos. Os leilões eram obviamente eletrônicos, exceto
por um que se chamava “Newdoyle”. Esses faziam questão de fazer tudo à moda
antiga, de verdade. Era um lugar físico, não virtual, onde as pessoas se sentavam
e o leiloeiro batia o martelo e tudo mais. Era uma coisa incrível. A decoração
era uma réplica exata da época.
Nesse dia, lá estava Sanz para participar de um leilão que
iria colocar à disposição dos participantes o que antigamente se chamava de “celulares”, “laptops”, muito dos quais ainda funcionavam.
Claro, eram necessárias certas adaptações, pois o sistema de energia era
absolutamente diferente então. Nesse dia havia também um objeto muito especial:
uma unidade de DVR. Sanz havia pesquisado muito sobre o assunto. Esse aparelho
“gravava” imagens e sons em uns discos especialmente designados para isso e
depois tinha a capacidade de tocá-los novamente. Seria possível fazer
funcioná-lo, de acordo com as instruções do leilão, mas seria extremamente
custoso e, além disso, haveria necessidade de se obter um disco da época, o que
talvez não fosse tão difícil assim em locais especiais.
Sanz estava bastante excitado com o evento e foi um dos primeiros
a chegar. Conversou um pouco com os outros participantes. Ficou sabendo de um
dos participantes, que havia um local, relativamente grande, onde antigamente
era a Europa, em que se fazia uma simulação de toda a tecnologia antiga e onde
– pasmem – poderia se usar os tais dos “celulares” e outros aparelhos da época
do mesmo jeito que antigamente. Era uma novidade para todos os colecionadores.
Todo mundo estava falando da novidade. Sanz achou interessante mas estava interessado era mesmo no DVR. As pessoas não
usavam mais dinheiro. Cada pessoa tinha “pontos” e o valor dos mesmos , ou
seja, sua “cotação” dependia muito do papel do indivíduo na comunidade. Para os
mais “uteis”, os pontos valiam mais. A cotação de Sanz era muito boa.
Não foi muito difícil para ele, pois quase não havia
concorrência para o item. Ainda assim quando o leiloeiro bateu o velho e
estranho martelo de madeira no balcão, Sanz sentiu um alívio e uma excitação
que poucas vezes sentira antes. Ele era o proprietário do objeto.
Em casa, começou a examinar o seu “troféu”. Colocou-o no simulador de energia da época e,
para sua surpresa, um disco foi ejetado.Os organizadores do leilão não
perceberam que ele estava ali. Sanz cuidadodamente colocou–o no DVR. E aí
vieram as imagens, Uma família com duas crianças, junto a um lago. As carinhas
iam e vinham, faziam caretas. O pai segura as duas pelas mãos e depois
ameaçava, brincando, jogá-las na água. A esposa sorri, se aproxima e dá-lhe um
beijo na face. Em outra cena estão sentados à mesa, comendo. Passam a comida de
um para outro. Em outro momento a mãe estende o garfo para a filha.
Sanz havia estudado como funcionavam as “famílias” mas
aquilo era uma amostra real, viva. Não é possível se descrever o que ele
sentia. Uma coisa, porém, é certa. Ele havia criado, de repente, uma ligação
com aquela família, apesar dos 300 anos que os separavam. De repente criou uma
esperança no coração. Mandou o disco e o DVR para os especialistas em recuperação e identificação de DNA.
Alguns dias depois vieram os resultados. Após recuperação
de fragmentos de DNA do disco e do DVR, eles conseguiram levantar dados nos
grupos genéticos pelos últimos trezentos anos. E aí a surpesa: as pessoas
daquela fmília eram tataravós de seus bisavós, geneticamente falando. Ele mal
podia acreditar. Será que foi por isso que ele sentiu aquela ligação?
Ninguém mais acreditava em milagres ou em sobrenatural.
Restou a explicação da coincidência. Mas Sanz não se importava com isso. Sentia
uma felicidade grande, enorme. Poderíamos dizer que ela se alastrava por – 300
anos ou mais. Quanto à “coincidência”, poderíamos dizer – já que ninguém mais
acreditava em milagre – que era um problema da ciência de estatísticas.De
qualquer forma, uma coincidência milagrosa!
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