O
Quarto Controle
-Matt, eu acho que você é completamente ingênuo. O Sistema é o
sistema, ele não se interessa por você. Ele apenas quer que você pense que ele
se interessa por você.
-O que eu acho é que você perdeu completamente o senso de
social, de coletivo. O que seria de nós sem o Sistema? Seria o caos. Todos nós
precisamos de um elemento de controle, é para o bem de todos.
-Matt, Matt...que inocência. O Sistema, para nos ajudar, não
precisaria nem de 10% do controle que atualmente exerce sobre nós.Os 90% restantes
são intrusão indevida, desnecessária, e obviamente desonesta. Eu não consigo
entender como um cérebro de primeira linha, como o seu, não consegue chegar a
uma conclusão tão simples como esta.
-Você, Louis, realmente é diferente e você sabe por quê...Você
teve pais naturais, viveu com eles até os cinco anos, foi influenciado por eles. Você sabe muito bem
que eles eram saudosistas com ideias sociais que eram comuns há mais de cem
anos atrás. Felizmente eu, como a maioria, fui feito com engenharia genética
perfeita, não sou influenciado por esses
sentimentos simples. Eu já falei para você recorrer ao Sistema e fazer uma
reengenharia genética. Você teria uma vida muito melhor. Você só usa o Controle
número um e só porque é obrigatório. É inacreditável que você abra mão dos
Controles dois e três.
-O próprio nome já está dizendo, Matt, “controle” . Que tipo de
ser humano pode achar que “controle” é bom? Talvez seja bom para o Sistema, não
para o indivíduo. Por falar em pais naturais, essa é a coisa preciosa que eu
tenho. Não sei como você pode lamentar uma coisa dessas e achar que é bom ter
sido feito em laboratório. Realmente, Matt, você perdeu toda a
individualidade...E ainda por cima você ainda vem me falar desta história do
“Quarto Controle” . Eu acho que isso é definitivamente o fim do ser humano.
Os dois estavam um pouco tensos, principalmente o Louis.
Reclinaram em suas poltronas especiais com sensores eletrônicos especiais para
relaxamento e se calaram por algum tempo.
O “Primeiro Controle” do
qual Matt estava falando era o equivalente
ao sistema de GPS de 150 anos atrás. Era um controle central
representado por dois nano-implantes que todas as pessoas tinham, eram
obrigatórios. Eram dois extremamente minúsculos aparelhos inseridos um na corrente sanguínea e outro em
algum ponto aleatório, porém profundo, do corpo. Havia várias hipóteses para
explicar o fato de o Sistema colocar dois implantes, todas elas vindas de
pessoas leigas. Ninguém sabia ao certo. A mais comum era de que o que ia na
corrente sanguínea era mais difícil de se anular pois o sangue está sempre
circulando e junto com ele o implante. O fato é que era uma maravilha da
engenharia de informação. O Primeiro Controle não fazia só o óbvio: saber com
extrema precisão onde você estava. Ia muito mais além. Sabia quem estava com
você, que tipo de interação você estava tendo e com quem, sabia o que você
estava vendo e em que ângulo, tudo com um detalhamento assustador. Além disso
continha o registro histórico de tudo que se passara com você, desde foi
colocado em seu corpo, ou seja, em seu primeiro dia de vida.
Havia ainda outras coisas incríveis que o Primeiro Controle
poderia fazer, mas ainda assim, o Sistema acabou instituindo mais dois. O
Segundo Controle e o Terceiro Controle não eram obrigatórios. Mas eram oferecidos
de tal forma que praticamente se tornavam irresistíveis. O Segundo era um
controle que oferecia total segurança em termos de bem-estar e saúde. Além de
um transmissor central no corpo, ele tinha outros micro-implantes que poderiam
emitir tanto quimíca quanto eletrônicamente “socorro” para o corpo. Todos os
dados biológicos, seu estado de saúde e
até a solução de um problema, antes de acontecer, estavam ali à disposição do
Sistema, que em troca, garantia assistência total. De uma grande central, o Sistema
tomava conhecimento detalhado de todos os mínimos detalhes de saúde do
participante do programa.Num caso mais grave, o implante acionava uma unidade externa
que chegaria até você em segundos, para resolver o problema. Quem se recusaria a
ter uma assistência dessas? Privacidade? Que diferença fazia? O Sistema já
sabia de tudo.
Havia incríveis formas de se comunicar, do jeito que o cidadão
quisesse, o tempo todo. No entanto, o Sistema oferecia um Terceiro Controle: o
de comunicações. Através do implante de comunicações você poderia pensar e se
comunicar com quem quisesse. O pensamento teria de ser em palavras. A sua
conversa precisava ser em palavras mas elas não precisavam ser faladas, só
pensadas.
-Matt, você ainda não entendeu? O Segundo e o Terceiro Controles
parecem dádivas do sistema, tudo de graça, uma maravilha, porém são exatamente
o contrário. Você não percebe que isso é controle total sobre você, você não
existe mais como indivíduo? E o Sistema, Matt, quem é o Sistema? Há 30 anos
atrás eu poderia te dizer quem era o Sistema. Havia nomes, havia rostos. Podiam
ser intocáveis, inatingíveis, mas eles existiam. Agora não existem mais
pessoas, só o Sistema. Você não sabe, eu não sei, ninguém sabe quem é o
Sistema...
-E o que importa? Não está tudo bem com você? Mesmo sem aderir
ao Segundo e ao Terceiro Controles, você tem assistência total, não tem de se
preocupar com nada. Você deveria ter um pouco mais de gratidão pelo Sistema. Há
duzentos anos atrás as pessoas sabiam quem as comandava. E de que adiantava
isso? Havia miséria, pobreza, injustiça, desigualdade. De que adiantava
conhecer os líderes?
-Está bem, Matt, eu desisto, eu sei que seu problema não é
entender. Você não “sente” o que eu estou falando. Agora, essa história do
Quarto Controle, meu amigo, foi muito além da conta. Como você pode sequer
considerar uma coisa como essa?
-Louis, isso não é uma coisa que eu vou considerar, já é uma
coisa certa. Estou só aguardando minha inclusão no programa e vou me submeter
aos implantes.
-É mesmo. Como é mesmo? O Quarto Controle é uma questão de
consciência coletiva, é isso que você estava explicando? Explica mais, Matt, eu
acho interessante.
Louis usou toda a ironia que podia nas palavras, mas Matt não se
importou:
-Você deve tudo ao Sistema e o Sistema somos nós. Você se
entrega ao Sistema, deixa que ele tome conta das decisões, mesmo as mais
importantes. Afinal de contas, ele têm muito mais capacidade de tomar as
decisões do que nós. Ele conhece todos os ângulos, ele conhece todos os interesses
coletivos, ele sabe o que é melhor para todos. É muito simples. Como eles
dizem, a nossa única preocupação é ser feliz. O resto deixamos para eles.
-Por que, Matt, eles fariam uma coisa dessas? Só por amor aos
cidadãos? Ele já têm o controle total e ainda querem mais. Não de mim, Matt. De
mim eles só tem o Primeiro Controle, pois sem ele eu seria uma pessoa morta.
Fora isso, nem segundo, nem terceiro. O Quarto Controle? Eles vão precisar me
matar para fazer esse implante.
Louis deu então uma grande gargalhada. Matt, um pouco ofendido,
disse que o Sistema não matava, tudo que eles faziam era em favor da vida. No
Sistema não havia morte, só vida.
Alguns dias se passaram e Matt foi chamado para fazer o
implante. Deu o consentimento formal através de reconhecimento de retina, e
deitou-se na confortável cama. Não demorou nem sequer 30 minutos, ele não viu
nada, não sentiu nada. Saiu muito feliz, muito disposto, preparado para
aproveitar melhor a vida. Contou ao Louis, que fez uma cara de desaprovação. Agora
não tinha mais jeito. Estava feito, pobre do Matt, pensou Louis.
Na semana seguinte, Matt contou para Louis, as grande vantagens
do Quarto Controle. Em poucos dias, tinha se livrado completamente de qualquer
problema financeiro. Tudo que precisasse, mesmo que fosse uma extravagância,
ele teria a segurança de poder adquirir. Tinha acesso a inúmeras informações
sobre o sistema, se quisesse. Mas não tinha interesse nisso. Havia sido
convidado para participar, na semana seguinte de um programa de conscientização
de grupo. O Sistema levantava uma quantidade astronômica de dados e por outro
lado fazia um levantamento das maiores necessidades da comunidade. Cada um
cederia no que fosse necessário para o grupo e em troca receberia ainda mais
vantagens, que viriam de concessões que outros haviam feito. O Sistema fazia
uma espécie de balanço de todos os elementos positivos e negativos dentro de um
grande grupo e redistribuía tudo. Como a sociedade estava tremendamente
adiantada, havia muito mais elementos positivos para serem distribuídos do que
coisas negativas para serem delegadas, Era uma situação em que só se ganhava,
brincou ele com Louis.
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Na semana seguinte, Louis não viu Matt. Provavelmente ele estava
muito envolvido na tal semana de equilíbrio do Quarto Controle e não teve tempo
de se socializar com Louis. Quando dez dias haviam se passado e não houve
notícia de Matt, Louis resolveu investigar. Teve uma certa dificuldade com o
Sistema pois ele não era participante do Segundo e Terceiro Controles. Afinal
conseguiu informação através de um amigo que tinha acesso a dados dentro do
Sistema, pois ele participava dos três controles.
Ron era seu nome.Quando ele explicou o que havia acontecido para o Louis, ele mal podia acreditar, embora ele
soubesse que o Sistema era capaz de tudo. Matt era extremamente otimista e
confiante no Sistema. Assim sendo, na escala de prioridades que ele apresentou
para benefício próprio dentro da “redistribuição de vantagens”, como eles
chamavam, as suas pretensões eram muito baixas. Ele confiava tanto no Sistema
que ele sabia que seria compensado. Pois bem, disse Ron, uma das coisas
negativas apresentadas no grupo de Matt era excesso de pessoas com a mesma
carcterística e função na sociedade. Era o caso de Matt. O Sistema precisava de algumas “desistências”
dentro desse grupo específico. Matt, pertencendo ao grupo, e tendo colocado
requisições tão baixas, foi considerado ideal como indivíduo que pudesse ser
“deletado”. Tudo de de acordo com as normas. Matt havia concordado e tudo mais.
Matt foi eliminado para que houvesse mais harmonia e balanço dentro de seu
grupo. Havia muitos “Matts”. Lá estava o
registro. Há cinco dias atrás ele havia se apresentado a um escritório de
controle demográfico e cumpriu seu “dever” como cidadão que respeita as regras,
nesse caso as regras do Quarto Controle. Claro que não sofreu, ninguém mais
sofria para morrer.
Se ele pudesse falar, pensou Louis, provavelmente iria achar
tudo normal. “O sistema sabe o que faz”, ele diria, como disse tantas vezes.
Louis olhou de sua janela a incrível paisagem urbana que o “Sistema” havia construído.
Agora, no entanto, ele já tinha uma ideia de quanto custava viver na incrível
sociedade do futuro. Lembrou-se do olhar quase infantil de Matt e foi dormir.
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