Vida
depois da morte
Os dois conversavam na varanda do apartamento e olhavam a
fantástica paisagem que se descortinava diante deles. Havia muitas daquelas
unidades de transporte pessoal cruzando o espaço e elas eram muito rápidas. O
que ficava e era bonito, eram seus rastros azuis cruzando o céu. Formavam uma
intricada rede de luz que, junto com as
unidades residenciais de tons metálicos, poderia ser considerada como uma visão
celestial. Estavam numa região que há muito, muito tempo atrás, tinha sido
“South Dakota”, uma espécie de divisão de um país que se chamava “Estados
Unidos da América”.
Cyrrus e Caius conversavam. Poucos ainda cultivavam esse hábito
de se encontrar só por amizade, de simplesmente “conversar”.
-Você continua insistindo nisso. Caius, se você quer insistir
nesse ponto, tudo bem. Eu só acho um desperdício você perder tempo com essas
preocupações quando a nossa “Mãe Ciência” já resolveu tudo para você.
-Eu sei que agora você vai falar, de novo, que depois do “Ponto
X”, que a “sua” querida “Mãe Ciência”
alcançou, há pouco ou quase nada para se avançar. Sabe de uma coisa, você pode
estar errado, todos podem estar errados,
a “Mãe Ciência” pode estar errada.
Depois de alguns segundos em silêncio, Caius continuou:
-Desculpe, a “Mãe Ciência” nunca erra, eu estava me esquecendo...
Depois de alguns segundos em silêncio, Caius continuou:
-Desculpe, a “Mãe Ciência” nunca erra, eu estava me esquecendo...
Podia se notar uma ironia amarga na voz de Caius.
-Nós já falamos sobre isto antes...
-Eu sei, o “Ponto X”...Descobrimos a “matrix” da vida,
entendemos o tempo em sua essência, descobrimos a essência da existência. Nunca
ocorreu a você, Cyrrus, que esse “Ponto
X” existe justamente porque há coisas que a “Mãe Ciência” não pode
e não deve entender?
Cyrrus interrompeu Caius com um gesto de enfado.
-Nós já passamos por isso, Caius. Se você não tem a ciência como
referência, não dá nem para discutir. Não existe nada mais óbvio do que o fato
de que não há nada depois que você interrompe sua vida biológica. Nada, você
entende? São séculos e séculos de experiência, de avanço na ciência e isso é
algo que nem se discute mais. Só você mesmo, para pensar que pode existir vida
depois...
-Só eu, Cyrrus? Você que trabalha para o Sistema, no
Departamento de Comportamento Humano, como você pode dizer algo assim?
-Está bem, existem casos raríssimos como o seu. Mas não me
lembro de ninguém que insistisse na ideia de “vida após a morte” como você faz.
Todos acabaram optando por algum outro caminho.
-Eu sei, alguns optaram pela
“Perpetuação Virtual”, o “céu teconológico” que a ciência inventou. O
indivíduo, quero dizer, o que sobrou do indivíduo, fica lá instalado num “hardware” cumprindo a
missão de ser feliz para sempre. “Todas as boas memórias da vida multiplicadas
por mil”, não é esse o marketing que eles fazem?
Caius continua com ironia:
-Claro, você pode optar pelo “Happy Delete” ...Você fica em
estado de êxtase enquanto eles terminam com sua existência, maravilhoso, não é?
-É melhor do que ficar com ideias de 500 anos atrás...
-Por que não pode a “Mãe Ciência” estar errada e haver uma
espécie de consciência após a morte?
-Caius, Caius...Não seja ridículo.
Ficaram um minuto em silêncio e daí Cyrrus falou novamente:
-Se você acredita mesmo no que está falando, por que não
experimenta?
-De que adianta? Nem morte normal não existe mais. Ou você vive
num “céu quântico”, que preserva seus prazeres para sempre ou morre feliz
enquanto eles extraem sua essência, todos seus dados para guardar num banco de
memórias existencial...É mais ou menos
isso, não é? Não sei se usei as palavras corretas, você é quem trabalha para
eles, deve saber melhor.
-Você está enganado mais uma vez, Caius. Você pode morrer como
antigamente.
-É mesmo? Tenho de passar por uma carnificina?
-Não, Caius. Você usa o “Happy Delete” e exclui a opção de
armazenamento de dados. Ë como ter uma morte natural.
-É mesmo? Eu não sabia disso. Como vocês não explicam uma coisa dessas
para um cidadão comum?
- Cidadão comum? Definitivamente isso é o que você não é. Além
disso, que cidadão comum quer simplesmente “morrer”? Morrer como antigamente,
sem preservar os dados, para quem sabe, voltar daqui a mil anos ou mais? Você
acha que alguém quer morrer definitavemente, sem opção de voltar? Eu só conheci
uma pessoa assim, Caius...Você!
Continuaram conversando mais um pouco e Cyrrus explicou para
Caius como funcionava o sistema. De casa, você se liga ao terminal central. Faz
mentalmente a opção pelo “Happy Delete” O sistema pergunta mentalmente se
deseja conhecer alguma opção alternativa de “Delete”. Nunca ninguém faz isso,
mas se você quer, você opta por “sem registro de dados” e pronto, você tem uma
elegante morte ao estilo do século vinte e um...Cyrrus pensou, que idiotice,
estar falando de um assunto desses. O que Caius precisa é de uma “reengenharia
genética”. Pensava tudo isso enquanto acionava sua unidade de transporte, que
em minutos o levou de volta para seu apartamento.
Passaram-se dois dias, tempo durante o qual Cyrrus esteve
profundamente envolvido com algumas alterações técnicas que estavam
introduzindo em sua área de trabalho. Daí passou um dia inteiro em casa,
refletindo sobre a sua conversa com Caius. Talvez houvesse algo de errado com
sua configuração genética, algo com seu DNA, algum fator reminiscente. Difícil
dizer. Mandou-lhe uma mensagem – que Caius não respondeu - e acionou seu
transportador em direção a seu apartamento. Entrou e viu Caius ligado ao
sistema, inerte. Ele estava morto e era muito recente, pois a equipe de resgate
ainda não chegara para recolher seu corpo. Tinha uma suspeita. Olhou os dados e
confirmou. Havia optado por “deletação sem recuperação de dados”. Morte definitiva, morte mesmo. Sentiu remorso
por ter falado sobre o assunto com ele. Nunca pensou que seu amigo fosse levar
aquilo a sério. Foi aí que Cyrrus olhou para o rosto de Caius. Havia um sorriso
sincero e largo, tanto quanto a morte permitia. E obviamente não era o sorriso
típico do “Happy Delete”. Cyrrus achou ao mesmo tempo estranho e reconfortante.
Afinal ele gostava muito do Caius.
À noite em casa, Cyrrus ainda pensava no sorriso do Caius. Será?
Será que Caius sentiu algo diferente? Provavelmente a expectativa de “conhecer
o que existe do outro lado” como ele ingenuamente dizia...Depois ele mesmo deu
um sorriso. Que idiotice, vida
depois da morte...Só mesmo o Caius.E foi dormir...
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