Consertando
o destino
Marcos e Renato eram primos
mas pareciam irmãos. Sempre que possível, faziam as coisas juntos. Agora os
dois estavam indo um para cado lado em suas vidas e as chances de estarem
juntos eram cada vez mais raras. Foi por isso que, quando coincidiu de os dois
terem 20 dias livres na mesma época, a primeira coisa que lhes veio à mente foi
fazer uma viagem juntos.
Prepararam tudo às pressas,
colocaram o material no carro do
Marcos e partiram. Tinham um esboço de
viagem, não um plano propriamente dito. Embora fossem bem diferentes em suas
personalidades, eles se davam tão bem que não havia muita necessidade de
planejamento.
Depois de rodarem cerca de
110 quilômetros, eles teriam de fazer
uma parada obrigatória. Ficariam lá no mínimo uma hora e meia. A tia Suzana,
irmã da mãe de Marcos, não deixaria por menos. Embora ele gostasse muito da
tia, chegou a pensar em passar reto para adiantar a viagem. Mas a mãe não
deixou. Já tinha telefonado para a irmã Suzana e acertado tudo. Conformado com
o atraso que ia ter, Marcos planejou assim mesmo dirigir mais quatro horas necessárias
para se chegar no mesmo dia ao grande rio em cujas margens acampariam. No
carro, escutavam as músicas que Renato escolhera, por enquanto. O gosto musical
não era o mesmo, mas Marcos fizera uma concessão, como sempre. Depois de passar
pela casa da tia Suzana, entrariam as suas seleções.
Fazia tempo que não passavam
por aquela estrada. As coisas tinham mudado bastante, não reconheciam mais
nada. Depois de uma hora de viagem, Renato anunciou que estava com fome, não
tinha tomado café. Um posto de gasolina, novinho em folha, estava anunciado no
outdoor. Pararam, Marcos resolveu cochilar uns quinze minutos enquanto Renato
iria tomar o seu café. Sonhou. Sonhou que estava ali mesmo, com o Renato de
volta, já saindo de novo para a estrada. Dia bonito de sol, uma propaganda de carro
à direita. Na esquerda, uma grande propriedade vazia, depois uma grande
construção. À direita, mais à frente, um homem de idade andando cabisbaixo. Tem
um chapéu e olha para baixo. Na mão esquerda carrega um saco plástico marrom
claro cheio de coisas. O carro acelera cada vez mais, mas não é ele que está
acelerando. Tudo passa muito rápido, como num filme em velocidade. De repente o
carro desacelera e um caminhão grande de combustível começa a ultrapassá-lo
pela esquerda. Marcos olha para as placas, para uns dizeres – daqueles que os
motoristas gostam de colocar na traseira do caminhão – e vê o desenho de uma
sedutora bailarina seminua sorrindo. Daí o caminhão roda mais rápido e some na
estrada. O carro de Marcos acelera e passa por uma grande churrascaria. Ganha
mais velocidade ainda e então ele consegue ver de novo o caminhão, que fica
cada vez mais perto. Agora Marcos está ainda mais próximo e o carro acelera
ainda mais, agora para ultrapassar. Renato fala algo, Marcos olha e vê que ele
mostra pavor em seu rosto. Marcos não está controlando o veículo. O caminhão,
de repente, começa a sair da estrada, para o lado direito, descontrolado,
parece que vai tombar. Num esforço desesperado para controlar o grande veículo,
o motorista joga-o de volta para a estrada e avança para cima do carro deles. Marcos
não vê mais a estrada. No seu parabrisa tudo que vê é o a cor prateada do aço
inox do tanque do caminhão. Um barulho enorme, metal se retorcendo e nesses
segundos, ou frações, Marcos sabe que a morte chegou. Ele não quer morrer, não
é sua hora. Sempre acreditou na força do pensamento. Quer voltar no tempo,
evitar o acidente. Ele realmente acredita que pode voltar o relógio.
Ele acorda com umas batidas
na vidro. Renato tinha voltado, estava pronto.
-Nossa, Marcos, o que
aconteceu? Você está assustado mesmo..
-Tive um sonho, um sonho
besta...
-Ainda bem que estamos
tirando estas férias. Você precisa relaxar...
Partiram. Marcos estava
começando a se acalmar quando viu à sua direita a propaganda de carro, a mesma
do sonho, e depois, à esquerda, um terreno vazio e uma grande construção. Que
coincidência...mais ainda: agora, à
direita, o velho andando, cabisbaixo, com um saco plástico na mão...Marcos apavorou-se
mas mesmo assim não quis dizer nada para o Renato, ele não acreditaria. Estava
confuso, pensou, estava misturando o sonho com a realidade. Agora Renato estava
falando algo. Tentou prestar atenção. Respondeu qualquer coisa. O carro estava
normal, ele tinha controle. Fora tudo um pesadelo e agora ele estava trocando o
que estava vendo pelo que sonhara ou vice-versa. Responde que sim para o Renato
sem saber o que ele tinha perguntado. Ele tinha controle do carro, podia
acelerar e diminuir a velocidade. O carro obedecia, estava tudo normal. Normal.
Marcos estava mais calmo
agora. Foi para a pista da direita, resolveu ir bem devagar.
-Desse jeito nós vamos
conseguir chegar amanhã bem cedinho...
Marcos demorou uma fração de
segundo para captar a ironia do Renato. Deu uma risadinha e quando virou o
rosto de volta, percebeu que um grande caminhão o ultrapassava, o caminhão de
combustível. Dessa vez ele já tinha certeza do que iria ver. E viu. Os três
últimos números da placa – 637 – a bailarina seminua sorrindo. O caminhão sumiu
na estrada. Pensou em parar. Mas aquilo seria ridículo, não poderia estar
acontecendo. Tentou se lembrar so sonho, dos fatos. Será que ele tinha sonhado
mesmo? Será que sonhou outra coisa e agora estava pensando que o real era o
sonho? Pensou em falar com o Renato mas ele estava cochilando. Ficou perdido em
outros pensamentos, pensou na velha tia Arminda, irmã mais velha de sua mãe.
Quando era viva tinha mania de falar no sobrenatural. Ela acreditava em um
monte de coisas. Tinha o olhar distante. Boa mulher.
O cérebro de Marcos estava
arrumando um jeito de distraí-lo da realidade, pois essa realidade era
pertubadora. Durou pouco. Marcos percebeu que estava se aproximando novamente do
grande caminhão.
Desta vez foi tudo mais
rápido. Lembrou-se de que seu pensamento era poderoso, que ele poderia voltar
no tempo. E desejou,com força. Voltar para um tempo onde isto não tinha
acontecido. Voltar no tempo.
Marcos acordou assustado com
as batidas de Renato em sua janela.
-Nossa, Marcos, o que
aconteceu? Você está assustado mesmo..
-Tive um sonho, um sonho
besta...
Saíram novamente. Desta vez,
Marcos tinha certeza de tudo: outdoor, terreno vazio, construção e o homem
andando na beira da estrada.Tinha certeza de que iria acontecer tudo de novo, absolutamente
igual. Estava com tanta certeza que conseguiu falar com o Renato sem se
apavorar:
- Renato, parece que já vi
esse homem da estrada, antes...
-Sabe de uma coisa. Eu senti
a mesma coisa. Talvez a gente tenha visto uma cena semelhante em alguma viagem
anterior. Como é mesmo que se fala, dejavu?
-Bom, daí tem de ser muito
tempo. Pois a última viagem juntos foi há anos.
Marcos já sabia: o caminhão,
o acidente, aquele desejo forte de voltar no tempo.
Marcos acordou assustado com
as batidas de Renato em sua janela.
-Nossa, Marcos, o que
aconteceu? Você está assustado mesmo..
-Tive um sonho, um sonho
besta...
Desta vez Marcos tinha
certeza de que tudo tinha acontecido muitas e muitas vezes. Inúmeras vezes.
Pensou. Estava preso no tempo. Por sua própria vontade. Por necessidade, não
queria morrer.Tudo era absurdamente real.
Pensou, pensou enquanto se
preparava para enfrentar o acidente pela...Quantas vezes? Perdera a conta.
Precisava voltar mais no tempo. Uma semana, no mínimo. Sim, precisava voltar
para a época anterior à decisão sobre a
viagem, precisava de mais tempo. Ficou se lembrando do jantar com Renato quando
combinou a viagem. Lembrou-se do vinho que estava tomando. Renato estava
tomando cerveja. O caminhão estava ficando mais perto, Marcos ficou se lembrando
do jantar.
-Renato, então você vai de
cerveja? Está vendo como sou mais fino do que você? Eu só tomo vinho.
-Sem essa, eu me lembro muito
bem da última viagem que fizemos. Você deve ter desequilibrado o estoque de cerveja
da região. Eu sei, agora você está namorando a Dra. Sales, mulher fina. Sabe
como é o amor...A gente muda os hábitos. Eu entendo, Marcos, eu entendo. Eu um
dia também vou encontrar uma mulher com essa finesse...Daí nós vamos ter de
escolher só vinhos finos. Eu vou te ajudar, eu sou bom de vinhos, embora não
pareça.
-Eu sei, você aprendeu com
seu pai. Por falar nisso, como está ele, o “seu” Tomás?
-Está viajando. Ainda bem, depois
de muito tempo que minha mãe faleceu, como você sabe, nós o convencemos a viajar
em uma excursão. Ele nunca mais tinha saído para uma viagem longa e ele
precisava...Por falar nisso, bem que nós poderíamos sair e acampar, nós temos
quase vinte dias pela frente. Faz um tempão que a gente não sai!
Por algum motivo, pela cabeça
de Marcos, passou a cena de um acidente, um caminhão de combustível, um grande
incêndio. Viu seu corpo jogado na estrada e o Renato preso nas ferragens do
carro, agonizando. As cenas, em seu cérebro, eram brutalmente reais.Viu
detalhes, eram eles mesmos, os dois, mortos.
-Renato, dessa vez você vai
me perdoar. Eu prometi para a Sales que faria uma pequena viagem com ela. É
nossa primeira chance. Você é meu amigo, eu sei que você entende.
Marcos nunca havia mentido
para seu amigo. Mas ele estava aliviado com o que fizera. De uma maneira
misteriosa, ele tinha certeza absoluta
de que acabara de mudar o próprio destino e o do Renato.
-Caramba, Marcos, nós podemos
fazer isso noutra data, no futuro. Claro, vai passear com a Sales, o que eu mais quero é que vocês se divirtam e sejam
felizes.
Fizeram um brinde. O copo de
vinho e o de cerveja tilintaram . Era um brinde à vida.
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