Sunday, July 21, 2013

Os paralelepípedos do Morro do Cartório

Os paralelepípedos do Morro do Cartório



Era uma rua de paralelepípedos e era dura de subir. Não uma rua. Era uma rampa. Íngreme, longa, cruel. Não era uma opção, era uma necessidade. Uma obrigação.
Era como eu chegava em casa, era a ladeira da minha casa. Quando subia, olhava para baixo. Olhar para cima, desanimava. Ver o que faltava para subir era muito desalentador. Isso mesmo, causava dor antecipada. Olhando para o chão, eu me distraía com as pedras, paralelepípedos, que nada mais são que pedras paralelas. Pedras, umas atrás das outras, cortadas em forma de retângulos, paralelos, par a par uns com outros,  pares, iguais, num infernal repetir.
Fechava os olhos, às vezes, e dava uns passos mais longos. Era para me enganar, fingir que ainda faltava muito, para eu mesmo me surpreender. Pensar que estava mais atrás, estando, de verdade mais na frente. Paralelepípedos. Ilusão, paralela ilusão.
Chegava, então, o Cartório do “seu” Ernesto. Tabelião, tabelionato, reconhecimento de firmas, escrituras com assinaturas que são reconhecidamente dos assinantes. Casórios, matrimônios. Gente se comprometendo sem saber se podia se comprometer. Sonhos de verdade, ilusões. Nascimentos. Registros. Menino lindo, é a cara do pai. Da mãe, também. Sorriso do avô. Às vezes, o seu Ernesto estava lá, com seus supensórios, a olhar quem subia o morro, pisando os paralelepípedos, que, insistentemente, insistiam em quadricular a visão.Visão da vida. Qual seria a visão de vida do “seu” Ernesto? Difícil saber.
Será que é por isso que inventaram a expressão “chorar na rampa”? Chorar eu não chorava, mas suava e suspirava. Quando eu via o “seu” Ernesto, era porque já tinha ido um terço do caminho. Da rampa. Era bom, mas ainda havia muitos paralelepípedos para pisar. Daí pensava nos Carpenters. Cantarolava uma música, mas eu não sabia Inglês. Cantarolava os Beatles mas não sabia a letra. Mas era bonito, distraía. Distraía daqueles paralelepípedos sem fim.  Que não paravam de se suceder numa sucessão racional, irracional. Do lado esquerdo, aquele casarão. Do “seu” Jamil e da “dona” Rosa. Depois a casa do dentista. Homem bom. Era ele que cuidava dos meus pobres dentes. Gente especial, de valor.
Ah, se eu soubesse, que ali era também a casa do irmão do meu futuro amor. Como poderia saber? Mas acho que eu sabia, bem lá no fundo da alma. Como poderia? Não sei. Loiros cabelos, olhos com cores mil, uma blusa branca, de gola alta. Um sorriso. O sorriso.
A segunda parte ia terminando. Já não aguentava mais. Tantos paralelepípedos.  Pípedos, Lelos, quem inventou esta combinação, essa composição, essa paralela complicação?
A terceira parte não era mais uma rampa, era uma vertical. Apontava para o céu. E ali o morro se bifurcava. A esquerda, suave,  se aquietava e ia mansa até o correio. A direita era a minha, a rampa vertical. Já não via mais nada, fechava os olhos procurando chegar. Havia o muro, o longo muro da direita, que parecia não ter mais fim. À esquerda, o casarão do meu amigo da loteria. Esperança de uma vida melhor. Não era um subir, era escalar.
Enfim, chegava o final do morro. O morro do Cartório. Das  escrituras, das assinaturas e de outras coisas que nem sei. Uma pequena reta à direita, mais uma subidinha e lá estava a casa construída pelo senhor Bonifácio. A minha casa. Que alívio. Mais um pouco, se quisesse,   eu chegaria na Igreja de São Jorge. São Jorge, o Jorge do Morro de São Jorge. Quem demitiu o santo? Por quê?
Um dia não precisei mais contar os paralelepípedos, os dias. Passei a morar numa reta, gostosa de se chegar. Ainda assim tenho saudades. Dos paralelepípedos, cuidadosamente, paralelos, assentados na ladeira sem fim. Projeto de vida. Visão de vida.

Mal sabia que pedras duras, duros paralelepípedos, iria  encontrá-los sempre, pela vida afora. Pedras de dentro, pedras de fora, duras, granito de lei. Pedras no caminho, pedras no corpo, na alma pedras também. A existência é um caminho de pedras. São paralelepídos com outras formas, colocados em desigual disposição. Mas são elas mesmas, as mesmas  pedras duras da vida, as pedras de antes, que continuam agora e para sempre,  pavimentando a rampa, perpetuando a ladeira sem fim...




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